"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Fialho de Almeida – Ensaio de um (auto) - retrato




Fialho de Almeida

Para variar e, como introdução a um dos seus livros, vou apresentar hoje um autor português pouco conhecido. Aliás o seu nome permanecerá para sempre ligado a uma só obra «Os Gatos». No entanto, pelo seu encadeamento com os artigos anteriores, parece-me importante lembrá-lo. Trata-se dum representante do jornalismo, de tipo panfletário, que se fazia nos finais do século XIX.

José Valentim Fialho de Almeida nasceu em Vila de Frades a 7 de Maio 1857 e faleceu em Cuba a 4 de Março de 1911.

Em 1866 foi para Lisboa, para o Colégio Europeu, fazer os estudos elementares, que seguiu regularmente até 1872.
Na sua Autobiografia, publicada em «À Esquina», Fialho relata: «uma criaturinha triste e sossegada», razões que se juntam ao facto de seu pai nunca o poder vir visitar e de, devido à sua pobreza, não poder mandar bons presentes ao director, para lhe valerem seis anos de privações e de maus tratos, suportados por uma «resistência aparentemente submissa e tímida de orgulho», que pela vida fora irá ser, segundo ele, a sua independência e a sua força. Escutemos então a voz do próprio Fialho: «No meu tempo de colegial [...] a vida no internato era a seguinte. Erguíamo-nos da cama às cinco horas, Verão e Inverno, estudávamos até às oito, hora regulamentar do almoço [...] depois do que, entrávamos de novo nas salas de estudo, onde nos amesendávamos até às quatro da tarde [...] Quatro horas dadas, caligrafia durante hora e meia, e ia-se jantar.[...] Nas aulas. quase sempre fechadas, sem respiradouros, nem capacidade aérea, nem tiragem, havia constantemente um fétido morno a leite azedo [...] Os dormitórios eram no andar de cima dum prédio velho, grosseiramente adaptado à moradia de tamanha tropa de indivíduos [...] Os banhos raríssimos. Aos domingos de manhã, meia hora de ginástica em argolas e barras, não obrigatória, mas à vontade das famílias, que ainda nesse tempo, as da província sobretudo, consideravam a ginástica como um exercício de palhaços.»

Nesse ano viu-se forçado, por circunstâncias da sua vida económica, a deixar o colégio e a empregar-se como praticante de farmácia, numa botica do Largo do Mitelo, perto do Campo de Santana.
«Ninguém pode imaginar os tormentos que eu passei. Davam-me três horas aos domingos para oxigenar os pulmões cansados de respirar fedentinas de drogas e ervas podres; a minha alimentação era uma berundaga que sobrava do jantar da família do patrão, e que mal poderei comparar como nutriência e aspecto, às mais asquerosas pastas que os soldados distribuem nos quartéis, à pobralhada. Dormia num cacifro de seis palmos de largo por vinte de comprido e dez de altura, numa enxerga metida numa espécie de gaveta, que, que de manhã reentrava na parede, e da qual tanta vez pedi a Deus me talhasse o caixão onde acabar os meus grotescos males por uma vez. A baiuca onde eu praticava era tão velha, infecta, escura e desordenada, que ainda hoje me surpreendo da triunfância vital deste arcabouço que pôde resistir sete anos àquele inferno de ratos, pias rotas, miséria alimentícia, e rançuns de unguentos pré-históricos.»

Apesar de mergulhado neste ambiente, consegue concluir os seus estudos secundários e ganhar mesmo um grande amor pela literatura: «Esta residência entre drogas estragou-me a saúde e além de outros achaques de espírito e de corpo, incutiu-me uma tendência mórbida para as letras.» e continua «Gastei sete anos a percorrer todos os lugares-comuns dos escritores nacionais, de 1830 para cá e a matar o tédio desta leitura com romances de cadernetas, e pequenos ensaios literários de fábrica própria para jornais de província, onde a petulância das minhas asneiras me acarretou, por Leiria e Viseu, foros de escritorinho esperançoso. Minavam-me o tédio e uma ânsia de liberdade insaciável, e alcancei que me deixassem ir findar os preparatórios do liceu, findos os quais, ao matricular-me na Escola Politécnica, o falecimento de meu pai me obrigou a abandonar botica e estudos, para ir acudir ao bem estar dos meus, ameaçado terrivelmente por aquela morte que nos deixara às portas da miséria. Por lá estive um ano inteiro, e tornado no ano seguinte, por aí fora vim vindo, té terminar o curso médico. Como vivi todo este tempo? Dos recursos do pouco que minha pobre mãe podia dar-me, de alguma colaboração avulsa por dicionários e pequenas folhas literárias, e enfim de lições que fui dando à hora em que os meus condiscípulos folgavam, descuidados, felizes, bem comidos, bem vestidos, ignorando o martírio do pão ganho aos patacos, e os prodígios de energia heróica, consumida a vencer economias de cigarros e de ceias, e a desaparecer enfim de toda a parte onde o ‘sucesso tem praça’, e poderia ser notado o nosso casaco velho, o nosso cabelo crescido e as nossas botas roídas nos tacões. Vencidos os cursos científicos, em vez de seguir, como os meus condiscípulos, nas facilidades profissionais que eles fomentavam, cometi a tolice de me lançar numa vida literária, de querer viver por uma pena donde continuamente espirravam revoltas, e que fatalmente havia de me agravar as dificuldades do caminho.»


«A Brasileira»

Enquanto prossegue, lenta mas com dedicação, os seus estudos (concluirá o Curso de Medicina com 38 anos!...) torna-se conhecido nos meios boémios, jornalísticos e literários e colabora em jornais e revistas, escreve folhetins, crónicas, críticas literárias e teatrais, faz traduções. Em 1881, publicou o seu primeiro livro, os «Contos», que dedicou a Camilo Castelo Branco, e no ano imediato a «Cidade do Vício», onde estão os seus melhores trabalhos de ficção. O seu local de trabalho e "residência" é a mesa do café - O Martinho, a Brasileira, são as suas paragens dilectas. «Nos meus primeiros anos de escolar, não me lembro de sair nunca do Martinho, com o pai Rosa e António Pedro e outros noctâmbulos, senão depois de terem batido no Carmo as quatro da alva.»

Em 1889, o editor portuense Alcino Aranha, seduzido pelo grande êxito que tinham tido as «Farpas» de Ramalho Ortigão, propôs-lhe a publicação de uma crónica mensal da vida portuguesa, tarefa que Fialho aceitou, e em Agosto desse ano saiu a público o primeiro panfleto, que foi tão bem recebido, que em breve passou de mensal a semanal. Durou a sua publicação até Janeiro de 1894, e estes artigos acham-se actualmente reunidos em seis volumes, que conservam o título primitivo de «Os Gatos». Esta obra ficou na literatura portuguesa como umas das grandes obras de panfletários, tão características da literatura jornalística do final do século XIX.
Porquê este título – «Os Gatos»? Fialho explica-o no pórtico do primeiro panfleto: «Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato. Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes e terrível com agressores e adversários. [...] Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato – isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque e o animal de humor e fantasia – porque não escolhermos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.»


«Os Gatos»

Define-se como um «prosador colérico», um crítico demolidor, impiedoso e, por vezes, excessivo e injusto. Terá sido o caso da sua polémica com Eça de Queirós.
Costuma dizer-se que os críticos literários mais severos e implacáveis foram ou são, em geral, escritores frustrados. Não escreveu, porém, um único romance. As tentativas que fez nesse sentido saíram frustradas.

Terá essa circunstância algo a ver com a violência com que analisa «Os Maias»?

Em jovem era um profundo admirador de Eça. Diz da grande, da profunda impressão que lhe causou, aos 16 anos, a leitura da primeira edição de «O Crime do Padre Amaro». Mais tarde faz também uma defesa de «O Primo Basílio», face aos que acusam a obra de imoralismo. É relativamente a «Os Maias» que a sua veia de «prosador colérico» irá abafar a sua admiração anterior. Numa crítica publicada em «O Repórter» em 20 de Julho de 1888 (mais tarde incluída no volume Pasquinadas) considerará o romance um «trabalho torturante, desconexo e difícil de um homem de génio que se perdeu num assunto, e leva 900 páginas a encontrar-lhe saída.» Na sua opinião, «Os Maias» não passa de «um livro estrangeiro, que não conhecendo da vida portuguesa senão exterioridades, cenas de hotel, artigos e jornais, e compte-rendus de reporters palavrosos, desatasse a apreciar-nos através de três ou quatro observações mal respigadas, e a inferir por intermédio da fantasia satírica, tudo o mais.»

Fialho de Almeida é um dos autores de difícil rotulação. Geralmente definido como um decadentista, mercê das múltiplas contradições que foi exibindo, percorreu toda uma variedade de estilos, mas, no que diz respeito à sua obra mais válida (os seus contos), pode-se colocá-lo numa plataforma realista-naturalista, ligada ás correntes francesas do seu tempo, mas também de alguns dos próceres da chamada Geração de 70, incluindo o seu «odiado» Eça de Queirós. Deve, no entanto, muito a Camilo Castelo Branco. Mas vejamos como ele fala de si na Autobiografia: «tendo escrito cerca de mil e trezentas páginas por ano, o que representa uma actividade rara num país onde a bagagem literária é um livro de versinhos e meia dúzia de artigos laudatórios, apenas consegui, na opinião dos meus contemporâneos, “arranjado” a reputação de um desequilibrado indolente, que arma à sensação por via do galicismo, e a de prosador colérico, proibido do sucesso pelo mau sestro de não poder ser lido por senhoras. Dos resultados materiais do meu trabalho acérrimo, baste a V. saber que nem logro auferir da pena o sustento necessário, ganhando menos que um carpinteiro ou um pedreiro, e tendo de resignar os meus gastos a condições de parcimónia de que só eu sei o mistério, e perante as quais forçoso me foi abdicar de todas as aspirações e vanglórias que entram pelo meio na confecção da alegria, e são neste mundo o factor principal da felicidade.»

Proclamada a República a 5 de Outubro de 1910, Fialho que, exceptuando o curto período de adesão ao franquismo, sempre criticara a instituição monárquica moribunda, não se dá bem com o novo regime. «Dada a ignorância e o desmazelo relaxado, que foi o que a Monarquia legou às classes médias, dadas as tendências vaziamente exibicionistas, que foi o que o partido republicano deu às multidões, a República, como forma de governo, há-de reproduzir todos os fracassos da Monarquia... Na essência, o País ficará o mesmo. Que digo eu? Ficará pior.»

Morre em 1911 e, vinte anos depois, os seus restos mortais são trasladados para um jazigo próprio no cemitério da vila de Cuba.


Fialho de Almeida

Publicou em volume: Pasquinadas (1890); Lisboa Galante (1890); Vida Irónica (1892); O país das uvas (1893); Madona do Campo Santo (1896); À Esquina (1903). Este, que é o último volume que publicou em vida, intitulou-o, como às Pasquinadas e à Vida Irónica, Jornal de um vagabundo. Postumamente publicaram-se as seguintes obras, que são, na quase totalidade dos casos, constituídas por colaboração dispersa em várias publicações: Barbear, Pentear (1911); Saibam quantos, cartas e artigos políticos (1912); Estâncias de Arte e Saudade e Aves migradoras (1921); Figuras de destaque (1924); Actores e autores, impressões de teatro (1925); e Vida Errante (1925). Traduziu a peça João Darlot em 3 actos, original de Legendre, que foi estreada no Teatro da Trindade a 9 Abril 1898. Em alguns dos seus trabalhos usou o pseudónimo de Valentim Demónio.


Bibliografia:
«In Memoriam de Fialho de Almeida», Porto, 1917.
ALMEIDA, Fialho de – «A Esquina», Coimbra, 1903
ALMEIDA, Fialho de – «Saibam Quantos, cartas e artigos políticos», Lisboa, 1912
BRANDÃO, Raul – «Memórias», vol. I - II, 2ª ed., Porto, 1919.
COELHO, Jacinto Prado – «Introdução à antologia Fialho de Almeida», Lisboa, 1944.
SOUSA, Clementina Ferreira de – «Fialho de Almeida e as artes plásticas», Lisboa, 1954.


Saudações bibliófilas.

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