"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

domingo, 8 de agosto de 2010

João Guimarães Rosa – o homem, o político e o escritor




João Guimarães Rosa, em 1944, com os seus gatos
(uma das suas paixões)



"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranquilos e escuros
como o sofrimento dos homens."



João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (Minas Gerais) a 27 de junho de 1908 e teve como pia baptismal uma peça singular talhada em milenar pedra calcária – uma estalagmite arrancada à Gruta do Maquiné.



Cordisburgo

Era o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" – comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias.

O nome do pai, de origem germânica – frod (prudente) e hard (forte) –, e o nome da cidade natal, o "burgo do coração" – do latim cor, cordis, (que significa “do coração”, ou mais correctamente, “do coração sagrado de Jesus”), mais o sufixo anglo-saxónico burgo –, que pela sua sonoridade, pela sua força sugestiva e pela sua origem podem desde cedo ter despertado a sua curiosidade de menino do interior brasileiro, introvertido e calado, mas observador de tudo, estimulando-o a preocupar-se com a formação das palavras e com seu significado.



Gruta de Maniqué

Passou a infância no centro-norte do seu estado natal, onde o pai exercia actividades ligadas à pecuária.

"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas."

“Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são minha maior aventura.”

Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, Les Femmes qui Aimment.

Aos 7 anos incompletos, Joãozito, como era conhecido, começou a estudar francês, por sua iniciativa. Em Março de 1917, chegava a Cordisburgo, como coadjutor, Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, com o qual fez rapidamente amizade. Iniciou-se, com o frade no holandês e prosseguiu os estudos de francês, que iniciara sozinho.

Aos 9 anos incompletos, foi morar com os avós em Belo Horizonte, onde terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; até então fora aluno da Escola Mestre Candinho, em Cordisburgo.

Iniciou o curso secundário no Colégio Santo António, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime de internato, visto não se ter adaptado – não suportava a comida.

Retornou a Belo Horizonte e matriculou-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães e, desde logo, para não perder a oportunidade de se iniciar no estudo da língua alemã, a qual aprendeu em pouco tempo.



Minas Gerais – Mapa do Estado

Sobre seus conhecimentos linguísticos, assim se expressaria, mais tarde, numa entrevista concedida a uma prima, então estudante no Curvelo:

“Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distracção.”

Até ingressar na Faculdade de Medicina, João Guimarães Rosa obtém licença para frequentar a Biblioteca da Cidade de Belo Horizonte, dedicando o seu tempo, além dos estudos, às línguas, à História Natural e aos desportos.

Em 1925, matricula-se na Faculdade de Medicina da U.M.G. (Universidade de Minas Gerais) em Belo Horizonte, com apenas 16 anos. Segundo depoimento do Dr. Ismael de Faria, colega de turma do escritor, falecido muito mais tarde, quando cursavam o 2.º ano, em 1926, ocorreu a morte de um estudante de Medicina, de nome Oseas, vitimado pela febre amarela.

Ismael de Faria estava junto do caixão do desventurado Oseas, em companhia de João Guimarães Rosa, teve o ensejo de ouvir deste a comovida exclamação:

"As pessoas não morrem, ficam encantadas",

que seria repetida 41 anos depois por ocasião da sua posse na Academia Brasileira de Letras.

Em 1929, ainda como estudante, João Guimarães Rosa estreou-se nas letras. Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro.

Visava mais os prémios (cem mil réis o conto) do que propriamente a experiência literária; mas todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930.

Mais tarde, Guimarães Rosa confessaria que nessa época escrevia friamente, sem paixão e preso a moldes alheios. Seja como for, essa sua primeira experiência literária não poderia dar uma ideia, ainda que pálida, da sua produção futura, conforme confirma, com as suas próprias palavras, num dos prefácios de Tutaméia –Terceiras Estórias:

"Tude se finge, primeiro; germina autêntico é depois."

Em 27 de Junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes; essa primeira união não dura muito, desfazendo-se poucos anos depois.



João Guimarães Rosa

Ainda em 1930, forma-se em Medicina pela U.M.G., e é o orador da turma, escolhido por aclamação pelos seus 35 colegas. O paraninfo foi o Prof. Samuel Libânio e os professores homenageados foram David Rabelo, Octaviano de Almeida, Octávio Magalhães, Otto Cirne, Rivadávia de Gusmão e Zoroastro Passos.

O discurso do orador da turma, publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23 de Dezembro de 1930, já denunciava, entre outras coisas, o grande interesse linguístico e a cultura literária clássica de Guimarães Rosa, que começa a sua oração argumentando com uma "licção da natureza":

“Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só á custa de troncos alheios logra ella chegar á altura – faltando-lhe as raizes, que sómente os annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas.”

Referindo-se ao interesse do Prof. Samuel Libânio pelos problemas da gente brasileira diria mais adiante:

“E a sua sabia eloquência discursará então, utile dulci, sobre assumptos da maior importancia e mais patente opportunidade, tanto mais que elle, o verdadeiro proágoro de hoje, que levou o seu microscopio de hygienista a quasi todos os estados do Brasil, conhece, melhor que ninguem, as necessidades da nossa gente infectada e as condições do nosso meio infectante.”

Guimarães Rosa prossegue, na sua linguagem peculiar e, já na parte final do discurso, refere-se à "Oração" do "illuminado Moysés Maimonides":

“Senhor, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as creaturas. Sustenta a força do meu coração, para que esteja sempre prompto a servir ao pobre e ao rico, ao amigo e ao inimigo, ao bondoso e ao malvado. E faz com que eu não veja sinão o humano, naquelle que soffre!...”

Depois de formado, Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, então município de Itaúna (Minas Gerais), onde permanece cerca de dois anos; ali, convive harmoniosamente, até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo a sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por "seu Nequinha", que morava numa gruta escondida entre morros, num lugar conhecido por Sarandi.

“Seu Nequinha” era adepto do espiritismo e parece ter inspirado a extraordinária figura do “Compadre meu Quelemém”, espécie de oráculo sertanejo, personagem do Grande Sertão: Veredas.

Consta que o Dr. Rosa cobrava as visitas que fazia, como médico, pelas distâncias que tinha de percorrer a cavalo. No conto Duelo, de Sagarana, o diálogo entre os personagens Cassiano Gomes e Timpim Vinte-e-Um testemunha esse critério – comum entre os médicos que exerciam a sua profissão na zona rural – de condicionar o montante da remuneração a ser recebida pela distância percorrida para visitar o doente.

Semelhante critério aplicava-o, também, o Dr. Mimoso a seu ajudante-de-ordens Jimirulino, protagonista do conto – Uai, eu?, de Tutaméia –Terceiras Estórias.

Segundo depoimento de sua filha Vilma, a extrema sensibilidade do pai, aliada ao sentimento de impotência diante dos males e das dores do mundo (tanto mais quanto os recursos de que dispunha um médico do interior há meio século eram por demais escassos), acabariam por afastá-lo da Medicina.

O período em Itaguara influi decisivamente na sua carreira literária. Para chegar aos pacientes, desloca-se a cavalo.

Inspirado pela terra, costumes, pessoas e acontecimentos do quotidiano, Guimarães inicia as suas anotações, coleccionando terminologias, ditos e falas do povo, que distribui pelas estórias que já escreve.

Aliás, foi justamente em Itaguara, localidade desprovida até mesmo de luz eléctrica, que o futuro escritor se viu obrigado a assistir o parto da própria esposa por ocasião do nascimento de Vilma. Isso porque o farmacêutico de Itaguara, Ary de Lima Coutinho, e seu irmão, médico em Itaúna, António Augusto de Lima Coutinho, chamados com urgência pelo aflito Dr. Rosa, só chegaram quando tudo já estava resolvido.

É ainda Vilma quem relata que sua mãe chegou a esquecer-se das contracções para se preocupar apenas com o marido – um médico que chorava convulsivamente!



João Guimarães Rosa
na biblioteca ... com os gatos

Outra ocorrência curiosa, contada por antigos moradores de Itaguara, diz respeito à atitude do Dr. Rosa quando da chegada de um grupo de ciganos àquela cidade.

Valendo-se da ajuda de um amigo, que fazia as vezes de intermediário, o jovem médico procurou aproximar-se daquela gente estranha; uma vez conseguida a almejada aproximação, passava horas envolvido em conversa com os "calões" na "língua disgramada que eles falam", como diria, mais tarde, Manuel Fulô, protagonista do conto Corpo fechado, de Sagarana, que resolveu "viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as mamparras lá deles".

Também nos contos Faraó e a água do rio, O outro ou o outro e Zingaresca, todos do livro Tutaméia –Terceiras Estórias, Guimarães Rosa refere-se com especial carinho a essa gente errante, com os seus hábitos peculiares, o seu temperamento artístico, a sua magia e as suas artimanhas e negociatas.

De volta de Itaguara, Guimarães Rosa exerce como médico voluntário da Força Pública (actual Polícia Militar), por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932, no sector do Túnel em Passa-Quatro (Minas Gerais) onde tomou contacto com o futuro presidente Juscelino Kubitschek, naquela ocasião o médico chefe do Hospital de Sangue. Posteriormente entra para o quadro desta polícia, por concurso.

Em 1933, vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério, no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – "quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação".

Assim, dispunha de tempo para se dedicar com maior afinco ao estudo de idiomas estrangeiros; para além dos elementos que recolhia, com a sua insaciável vontade de tudo conhecer, no convívio com velhos milicianos e nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor obteve valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco.

Paralelamente, escreve. Antes que os anos 30 terminem, participa noutros dois concursos literários.

Em 1936, a colectânea de poemas Magma recebe o prémio de poesia da Academia Brasileira de Letras.

Em 1938, sob o pseudónimo de Viator, concorre ao prémio Humberto de Campos, da Livraria José Olympio Editora, com o volume intitulado Contos,. A comissão do júri era formada por Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Prudente de Morais Neto, Dias da Costa e Peregrino Júnior.

Ficaria em segundo lugar no Concurso, perdendo para Maria Perigosa de Luís Jardim.

Graciliano Ramos, num texto de 1946, Conversa de Bastidores, narra o acontecido e o seu “vago remorso” por não ter dado o voto ao livro. Em 1944, conhece Guimarães Rosa:

“–O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
–Como era o seu pseudónimo?
–Viator
– Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando. Sabe que votei contra o seu livro?
– Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.
Achando-me diante de uma inteligência livre de mesquinhez, estendi-me sobre os defeitos que guardara na memória. Rosa concordou comigo...Havia suprimido os contos mais fracos.”

Após uma revisão do autor, transformar-se-ia em Sagarana, obra que lhe rendeu vários prémios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo.

Ao ler este livro, após a sua edição, Graciliano Ramos vaticinaria:

“Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus ossos começarem a esfarelar-se.”

De facto, em 1956, Rosa publica aquele que é tido como um dos maiores romances da literatura do século XX – Grande Sertão: Veredas – Graciliano já não estava vivo para o ler.

Quando Guimarães Rosa servia em Barbacena, um amigo de convívio diário, impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo.

O então Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, e obteve o segundo lugar.



João Guimarães Rosa – vaqueiro

Aliás, já era por demais evidente, nessa ocasião, sua falta de "vocação" para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou ao seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:

“Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre ‘après avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material – só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez – nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.”

Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Vilma - que lançou em 1983 o livro Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai, uma colectânea de discursos, cartas e entrevistas concedidas pelo escritor, ele passava horas estudando, queria aprender, rapidamente, a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo verificou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordar da sua emotividade impediram que ele prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, João Guimarães Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi o seu forte, nem a diplomacia, actividade a que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas.

Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; onde conhece Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser a sua segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros.

Foi salvo da morte porque sentiu, no meio da noite, uma vontade irresistível, segundo palavras suas, de sair para comprar cigarros. Quando voltou, encontrou a casa totalmente destruída por um bombardeamento.

A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo.

Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais.

Consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa tarefa, contou com a ajuda da mulher.

Em reconhecimento por essa atitude, o diplomata e a sua mulher foram homenageados em Israel, em Abril de 1985, com a mais alta distinção que o estado de Israel presta a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém.

Homenagem que só foi concretizada após laboriosa pesquisa com a obtenção de depoimentos de vários cantos do mundo onde existiam sobreviventes do Holocausto. Foi a forma encontrada pelo governo israelita para expressar a sua gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial.

Guimarães Rosa, na qualidade de cônsul adjunto em Hamburgo, concedia vistos nos passaportes dos judeus, facilitando a sua fuga para o Brasil. Os vistos eram proibidos pelo governo brasileiro e pelas autoridades nazis, excepto quando o passaporte mencionava que o portador era católico. Sabendo disso, a mulher do escritor, D. Aracy, que preparava todos os papéis, conseguia que os passaportes fossem confeccionados sem mencionar a religião do portador e sem a estrela de David que os nazis colocavam nos documentos para identificar os judeus.

Nos arquivos do Museu do Holocausto, em Israel, existe um grosso volume de depoimentos de pessoas que afirmam dever a vida ao casal Guimarães Rosa. Segundo D. Aracy, que compareceu em Israel por ocasião da homenagem, o seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia:

"Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência."

Aracy é a única mulher homenageada no Jardim dos Justos entre as Nações, no Museu do Holocausto, em Israel.

Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado, num campo, em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, cognominado "o pequeno Chagall dos trópicos" já que, no início da sua carreira, tentou adaptar para a temática dos trópicos a maneira do pintor, gravador e vitralista russo Marc Chagall.

Ficam retidos durante 4 meses até serem libertados em troca de diplomatas alemães.

Retornado ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944.

Esta estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas Estórias.

Em Dezembro de 1945 o escritor retornou à sua terra natal depois de longa ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina.

Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.

Neste ano de 1946 escreve:

"Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de pôr o pé no caminho penoso, que já conheço".



João Guimarães Rosa a cavalo

Em Julho de 1947, realiza uma excursão até Nhecolândia, no Pantanal, Mato Grosso, com o vaqueiro José Mariano da Silva, seu amigo.

Desta expedição nasceria o conto Com o vaqueiro Mariano que seria publicado em 1947 e 1948 no Correio da Manhã.

Em 1948, Guimarães Rosa está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; no decorrer da qual é assassinado o prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração.

De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada.

Entre Outubro e Novembro de 1949, Guimarães Rosa e a mulher Aracy realizam uma viagem turística a Itália.

No ano seguinte, nos meses de Setembro e Outubro, o casal refaz o roteiro, visitando as mesmas cidades.

Como de costume, o escritor utiliza cadernetas para gravar sensações, descrever tipos e paisagens, anotar expressões, burilar algumas outras. Essas anotações não têm um objectivo específico. Anota como um viajante curioso, como um permanente estudante da vida e da natureza, sempre voltado para o seu trabalho, documentando, armazenando ideias, exercitando-se no manejo da língua portuguesa.

Em 1951, de volta ao Brasil, é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura.

Em 1952, Guimarães Rosa retorna aos seus "gerais" e participa, juntamente com um grupo de vaqueiros, numa longa viagem pelo sertão; o objectivo da viagem era levar uma boiada, de trezentas e sessenta cabeças de gado, da Fazenda da Sirga (município de Três Marias), de propriedade de Francisco (Chico) Moreira, amigo do escritor, até à Fazenda São Francisco, em Araçaí, localidade vizinha de Cordisburgo, num percurso de 40 léguas. A viagem propriamente dita dura 10 dias.

Guimarães Rosa chegou a Sirga no dia 16 de Maio para conhecer um pouco melhor o ambiente.



João Guimarâes Rosa, acompanhando a Boiada
(Maio de 1952)
Foto: Sielo.Brasil

O grupo de vaqueiros partiu a 19 de Maio. Eram eles: Tião Leite, Santana, Sebastião de Jesus, Gregório, Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de Maio de 1997, Bindóia, João Ribeiro Ribeiro, vulgo Zito, que era o guia, e cozinheiro, da expedição e que privou, mais de perto, com Guimarães Rosa, Aquiles e o escritor.



Revista “Cult” de Fevereiro/2001
Pág. 50
Foto: Marco Pedrosa

Passaram pela fazenda Tolda, de D.ª Iara Tancredo, seguiram por Andrequicé, onde ficou na casa de Pedro Mendes, daí seguiram para o Catatau tomando o Riacho das vacas até Meleiro. Seguiu-se Barreiro da Areia, a fazendo do Juvenal, a fazendo da Ventania e Riacho da Areia. Ghegam a Toca do Urubu, aonde se lhes juntam o jornalista Álvares Dias e o fotógrafo Eugénio Silva do Cruzeiro, para fazerem a cobertura do resto da viagem até Araçaí.



Revista “Cult” de fevereiro/2001
Pág. 51
Foto: Marco Pedrosa

Desta sua convivência com três dos personagens mais marcantes ajudaram-no a compor os protagonistas de Grande Sertão: Veredas, precisamente, Riobaldo e Diadorim. São eles Manuelzão, Miguilim (Miguelzinho) e Zito (João Ribeiro Ribeiro).

Manuelzão será também o protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim de Corpo de Baile.

Segundo depoimento do próprio Manuelzão, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava – "ele perguntava mais que padre" e gastou "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja – usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias.

Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador).

Em 1956, no mês de Janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas Corpo de Baile, onde continua a experiência iniciada em Sagarana.

Num ensaio crítico sobre Corpo de Baile, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada Campo Geral, Guimarães Rosa detém-se na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar.

A partir de o Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro – adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão: Veredas, lançado em maio de 1956.

Corpo de Baile não teve o mesmo sucesso do que Grande Sertão: Veredas. Talvez por ter sido publicada inicialmente de forma dispersa, em dois livros separados, e posteriormente em três, talvez pelo hibridismo intrínseco à novela, entre o romance e o conto, a obra teve a sua recepção dificultada e raros são os estudos que a avaliam como um conjunto. No entanto, Corpo de Baile possui uma unidade marcante: narrativas pontuadas pela música e pela dança, como se contivessem, ao mesmo tempo, uma partitura e uma indicação de coreografia, assim como um palco em que os dançarinos executam um número de ballet no sertão. O cenário é suficientemente vasto para configurar um mundo em si, com seus muitos centros – as casas, as fazendas, os buritis – mas também os caminhos inacessíveis e veredas que perfazem os roteiros das boiadas, e que acabam por conduzir os personagens na busca de seu destino.



Parque Nacional Grande Sertão Veredas,
criado em 1989 no município de Formoso (MG),
em homenagem a João Guimarães Rosa e ao seu livro.
O parque procura proteger o ecossistema,
formado por veredas e chapadões do cerrado.

O seu terceiro livro, uma narrativa épica que se estende por 760 páginas, foca numa nova dimensão, o ambiente e a gente rude do sertão mineiro. Grande Sertão: Veredas reflecte um autor de extraordinária capacidade de transmissão do seu mundo, e foi resultado de um período de dois anos de gestação e parto. É o único romance publicado por Guimarães Rosa que o qualificou como uma "autobiografia irracional".

A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa. Para Renard Perez, autor de um ensaio sobre Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, além da técnica e da linguagem surpreendentes, deve-se destacar o poder de criação do romancista, e sua aguda análise dos conflitos psicológicos presentes na história.

"A beleza aqui é como se a gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão." (Grande Sertão Veredas)



O sertão

O lançamento de Grande Sertão Veredas causa grande impacto no cenário literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas línguas e o seu sucesso deve-se, sobretudo, às inovações formais. Crítica e público dividem-se entre louvores apaixonados e ataques ferozes.

Torna-se um sucesso comercial, além de receber três prémios nacionais: o Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmen Dolores Barbosa, de São Paulo; e o Paula Brito, do Rio de Janeiro.

A publicação faz com que Guimarães Rosa seja considerado uma figura singular no panorama da literatura moderna, tornando-se um "caso" nacional. Ele encabeça a lista tríplice, composta ainda por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores romancistas da terceira geração modernista brasileira.



Gente do sertão – o vaqueiro

Sobre Grande Sertão: Veredas, escreveria numa carta ao amigo Silveirinha, o embaixador Antonio Azeredo da Silveira:

"Eu passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo eternamente. Foi uma experiência transpsíquica, eu me sentia um espírito sem corpo, desencarnado - só lucidez e angústia"

Sobre esta mesma obra escreveria também:

"Não me envergonho em admitir que Grande Sertão Veredas me rendeu um montão de dinheiro. A esse respeito, quero dizer uma coisa: enquanto escrevia Grande Sertão, minha mulher sofreu muito, porque eu estava casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela, como sou um fanático da sinceridade linguística, isso significou para mim que lhe dei o livro de presente, e portanto o dinheiro ganho com esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele".



A vida no campo, vaquejada, 1960
Ernest Zeuner ( Alemanha, 1898 — Brasil, 1967)
Têmpera sobre papel, 25,5 cm x 36,5 cm.
Museu Aldo Malagoli, Porto Alegre, RS.

Em 1957, Guimarães Rosa candidata-se pela primeira vez à Academia Brasileira de Letras, mas não foi eleito. (reuniu apenas 10 votos)

Em 1958, no começo de Junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve aos pais:

“Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, durante 10’, na copa da alta árvore pegada à casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida."

É a partir desse ano que Guimarães Rosa começa a apresentar problemas de saúde que seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão arterial, tinha outros factores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo.

Era um tabagista contumaz e, embora afirme ter abandonado o hábito. Em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em Dezembro de 1957 o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:

“... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.”



João Guimarães Rosa
e a “sua dependência da nicotina”

Também numa fotografia tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda.

Quando ocorreram estes perturbações cardiovasculares, a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado às suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a matéria – "... the nothingness of matter and the allness of spirit" –, negando categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte.

Por unanimidade, o escritor recebe, em 1961, o Prémio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Começa a obter reconhecimento no exterior.

Em Janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho. Foi parte activa em casos delicados como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966).

É o ano do lançamento de Primeiras Estórias, livro que reúne 21 contos pequenos. Nos textos, as pesquisas formais características do autor, assumem uma extrema delicadeza, que a crítica considera de "atordoante poesia".

Ganha o Prémio do PEN Clube do Brasil em 1963-

Em Maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras, para a vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição ocorre a 8 de Agosto e desta vez é eleito por unanimidade.

Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, a qual só se daria quatro anos depois.

Em Janeiro de 1965, participa no Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Génova. Como resultado do congresso constitui-se a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prémio Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes.

Este ano marca a expansão do nome e do reconhecimento de Guimarães Rosa no exterior.



Casa Museu Guimarães Rosa – Cordisburgo
(Interior)

Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prémio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, acabaria barrada pela morte do escritor.

A meio do ano, publica o seu último livro, também uma colectânea de contos, Tutaméia: Terceiras estórias. Nova efervescência no meio literário, novo êxito junto dos leitores. Tutaméia: Terceiras estórias, obra aparentemente hermética, divide a crítica. Uns vêem o livro como "a bomba atómica da literatura brasileira"; outros consideram que nas suas páginas se encontra a "chave estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didáctico da sua criação".

Em Abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual participa como vice-presidente.

Quando regressa é convidado para fazer parte, juntamente com Jorge Amado e António Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor monetário do prémio, é o mais importante do país.

Três dias antes da posse, sempre adiada, do novo académico fora lançado no Rio de Janeiro o livro Acontecências, de sua filha Vilma, que se estreava como escritora.

Guimarães Rosa não teve coragem de comparecer ao evento e escreveu, compungido, para a "jovem colega":

"Vir eu queria, queria. Posso não. Estou apertado, tenso, comovido; urso. Meu coração já está aí, pendurado, balançando. Você, mineirinha também, me conhece um pouquinho, você sabe."


João Guimarães Rosa
Na Academia Brasileira de Letras

A posse na Academia Brasileira de Letras ocorreu na noite de 16 de Novembro de 1967.

Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse:

"...a gente morre é para provar que viveu."

Na noite da posse o novo académico mais parecia um menino arrebatado, incapaz de se conter mas, ao mesmo tempo, sendo obrigado a fazê-lo; um menino grande que tivesse obtido a nota máxima nos exames finais... Ao invés da atitude ligeiramente superior que se poderia esperar de um "imortal" em data tão solene, deixava transparecer a sua satisfação, a sua alegria e seu encantamento. Chegara a pedir ao presidente da Academia, Austregésilo de Athayde, que encomendasse uma banda de música, incumbida de atacar "fogosos dobrados" e mais uma "meia dúzia de foguetes" para compor o clima de festa. Como se pode ver, uma atitude diametralmente oposta à de outro mineiro, também de forte ascendência galega, o poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade, tão avesso às honras académicas...

O escritor foi saudado por Afonso Arinos de Melo Franco – mineiro de Belo Horizonte, mas ligado por fortes laços à legendária e sertaneja Paracatu, que pronunciou um importante discurso denominado O Verbo e o Logos.

Neste fragmento, exemplar da sua oração, Afonso Arinos procura estabelecer um paralelo entre a obra de Mário de Andrade e a de Guimarães Rosa, ambos "revolucionários", mas cada um a seu modo:

“Não me parece possa haver comparação entre o vosso e o estilo de Mário de Andrade, como algumas vezes se tem feito. A renovação linguística que Mário se propôs era mais imediata, impetuosa e polemica; em uma palavra: destruidora. O grande polígrafo tinha em vista, ao lado da criação própria, demolir, arrasar as construções condenadas da falsa opulência verbal ou do academicismo tardio. O trabalho de demolição se faz às pressas e, no caso de Mário, com uma espécie de consciência humilde do sacrifício que impunha à própria durabilidade. No vosso caso, a experiência, pela época mesma em que começou, foi sempre construtiva. Não tendes em vista derrubar nada, desfazer nada de preexistente, mas levantar no espaço limpo. Não sois o citadino Mário, que precisava dinamitar o São Paulo burguês para erguer no chão conquistado a Paulicéia desvairada. Sois o sertanejo Rosa, conhecedor dos grandes espaços e forçado a tirar de si mesmo, no deserto, os antiplanos e os imateriais da construção. Devemos respeitar a Mário pelo propósito de sacrificar-se na destruição. Podemos admirar e partilhar em vós a esperança construtora. Não esqueçamos que os chapadões do Brasil Central permitiram, nas artes plásticas, a maior aventura de liberdade formal do mundo moderno, que é Brasília. Ali nada se demoliu, tudo se construiu, no campo livre. Despertastes as inusitadas palavras que dormiam no mundo das possibilidades imaturas. Fizestes com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com as linhas e os volumes inexistentes: uma construção para o mundo, no meio do Brasil.”

No discurso de posse (1 h e 20 m de duração), Guimarães Rosa procura traçar o perfil do seu antecessor e amigo, o ministro João Neves da Fontoura, de quem fora chefe-de-gabinete no Itamarati; refere-se, também, ao patrono da cadeira n.º 2 da Academia, Álvares de Azevedo"o que morreu moço, poento de poesia" – e ao fundador dessa mesma cadeira, Coelho Neto"amoroso pastor da turbamulta das palavras".

Cabe aqui lembrar que, nos dias que antecederam a posse, o escritor recorrera ao médico Pedro Bloch a fim de que este o ajudasse a controlar rigorosamente a voz, a respiração e a velocidade de leitura do discurso, em mais uma demonstração de forte tendência perfeccionista.

No início da sua oração, o novo académico refere-se com grande ternura à terra natal e ao facto de o amigo João Neves tratá-lo, na intimidade, por "Cordisburgo":



O Ministro João Neves Fontoura
a discursar na Conferência de Paz em Paris em Agosto de 1946
(Fotografia: Ralph Morse - LIFE)

“Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz Cordisburgo...’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do Sul’.

Já quase ao final do discurso, destaca-se um trecho de grande beleza, em que fala sobre a fé e a amizade:

“João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte. Até que falou: – ‘A vida é inimiga da fé...’ – apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que ‘a acção é um enfraquecimento da contemplação’; e assim Camus, que ‘viver é o contrário de amar’. Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...’ Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa solene inauguração de académico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento.”

Guimarães Rosa termina, referindo-se à Morte e à morte do amigo que, se fosse vivo, completaria 80 anos, naquela data; invocando o Bhagavad Gita (o canto do bem-aventurado), ele que já se confessara, em carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri, "impregnado de hinduísmo"; repetindo a frase "as pessoas não morrem, ficam encantadas": referindo-se também ao buriti (Mauritia vinifera), quase um personagem na sua obra, o majestoso habitante das veredas – cognominado "a palmeira de Deus"

“Nem aguentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária – dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-me.

Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.”

“Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!’ – desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O mundo é mágico.

— Ministro, está aqui Cordisburgo”

Ao ouvir o final da gravação do seu discurso, percebe-se claramente a sua voz embargada pela emoção – era como se chorasse por dentro.

É possível que o novo académico tivesse plena consciência de que estava perto do fim da sua vida.

Com efeito, três dias após a posse, a 19 de Novembro de 1967, morreria subitamente no seu apartamento em Copacabana, de enfarte do miocárdio, sozinho (a esposa fora à missa), mal teve tempo para chamar por socorro.

Na segunda-feira, dia 20, o Jornal da Tarde, de São Paulo, estamparia na sua primeira página uma enorme manchete com os dizeres: "MORRE O MAIOR ESCRITOR".


Casa Museu Guimarães Rosa – Cordisburgo
(Exterior)

Em 1968 é publicado o volume Em Memória de João Guimarães Rosa, pela Editora José Olympio.

Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.

Em 1969/70 são publicados postumamente os livros Estas Estórias e Ave, Palavra.



Esta é o primeiro, de dois artigos, sobre este autor fundamental na história da literatura brasileira, e mesmo mundial, à qual se seguirá: João Guimarães Rosa - Apontamentos para um estudo bibliográfico e bibliófilo.

Espero que a sua leitura tenha sido do vosso agrado e que eu tenha, de alguma maneira, contribuído para fazer redespertar o interesse para este autor actualmente um pouco esquecido mesmo no Brasil.

Saudações bibliófilas



Agradecimentos:

A Marco Pedrosa, amigo sempre disponível e incansável, que muito contribuiu para me ajudar a esclarecer algumas das minhas dúvidas nos pontos mais obscuros para mim – conseguiu de facto “encurtar o oceano que nos separa”.

A António Bettencourt, que com a sua grande amizade e apesar dos seus múltiplos afazeres, se disponibilizou para fazer a revisão do texto, com os seus profundos conhecimentos de filologia, literatura e reconhecida erudição, expurgando-o de erros de escrita e estruturação, como muito bem sabe fazer.


Fontes consultadas:





“Remembranças de seu Zito” – João Gomes Filho in Revista “Cult” de Fevereiro/2001. pp. 50-55.




5 comentários:

Galderich disse...

Rui,

Me maravillan las biografias de literatos portugueses o brasileños que nos traes. A veces contemplo mi vida y la veo aburrida al lado de estos personajes que han vivido tanto y en lugares tan diversos.
¡Hasta su muerte está rodeada de gloria y de llegar a tiempo a ella!

Es curiosa la competencia de Rosa con los idiomas y yo con tan pocos y mal aprendidos... la vida es así, a unos mucho y a otros tan poco.

Gracias por tan detallada biografia.

Marco Fabrizio Ramírez Padilla disse...

Rui.

Una biografía muy completa.

En la escuela preparatoria "Gran Sertón Veredas" era una de las lecturas sugeridas.
Ahora que leía tu artículo recordé el atractivo paisaje de la portada. No resisto las ganas de buscar mi ejemplar (creo que todavía lo conservo) y darle una buena ojeada.

Gracias y saludos bibliófilos.

Rui Martins disse...

Caros amigos

Galderich e Marco Fabrizio, desde jovem sempre me fascinou a literatura brasileira que me trazia uma forma diferente de descrever os homens, as paisagens e as suas “lutas” contra a natureza e as “forças” que os tentavam dominar.
É fundamentalmente por este fascínio que agora, creio que um pouco mais amadurecido, procuro entender os homens que os escreveram.
O resultado tem sido este meu modesto contributo com a apresentação das suas biografias e ibliografias.

Não sendo grandes “preciosidades bibliófilas” (ainda que se encontrem algumas, sobretudo num mercado emergente como é o brasileiro e, por isso mesmo, ainda relativamente acessíveis...), são sobretudo testemunhos que perdurarão para sempre ligados à história do povo brasileiro.

Concordo plenamente contigo Galderich quando dizes: ¡Hasta su muerte está rodeada de gloria y de llegar a tiempo a ella! ... pena é que tenham morrido relativamente novos.

Marco Fabrizio verás que reler: Grande Sertão: Veredas, será uma “redescoberta”, sobretudo porque os anos nos amadureceram o olhar crítico que nos permite descobrir novos pormenores que nos haviam escapado antes, mas atenção pois dos três este é o mais difícil de ler pela reinvenção da linguagem escrita brasileira (embora tenha tido grande cuidado com as suas traduções, mas a isso voltarei.)

Um grande abraço

Angelo disse...

Rui, que texto portentoso! Isso não é obra para um blog!

Abraços de além-mar.

Rui Martins disse...

Amigo Angelo

Obrigado pelo seu comentário, como sempre, por demais elogioso.

Com efeito, pelo fascínio que Guimarães Rosa me despertou ao longo deste modesto estudo, assim como no que o complementará, e pelo material que fui coligindo ao longo do mesmo, penso que este poderá merecer uma edição em revista ou pequena brochura... assim eu a consiga fazer.

Um abraço de amizade