"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

domingo, 21 de março de 2010

No Dia Mundial da Poesia




Resumo - a Poesia em 2009 (1)

No Dia Mundial da Poesia, que se celebra hoje 21 de Março, deixo aqui estes poemas de Cesário Verde.
José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa a 25 de Fevereiro de 1855 e aqui faleceu, no Lumiar, a 19 de Julho de 1886. Filho do lavrador e comerciante José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde.

Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras em 1873, que frequentou apenas por alguns meses. Ali conheceu Silva Pinto, grande amigo para o resto da vida. Dividia-se entre a produção de poesias (publicadas em jornais) e as actividades de comerciante, herdadas do pai.


Cesário Verde

Em 1877 começou a dar sinais a tuberculose, doença que já lhe tirara o irmão e a irmã. Estas mortes servem de inspiração a um de seus principais poemas, Nós (1884).

A A. da S. V.

I

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos batizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na city, que desterros!

Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!


Que fruta! E que fresca e temperã,


II

Que de fruta! E que fresca e temporã,
Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que o Sol, nos talhões e nas latadas,
Bate de chapa, logo de manhã!

O laranjal de folhas negrejantes,
(Porque os terrenos são resvaladiços)
desce em socalcos todos os maciços,
omo uma escadaria de gigantes.

Das courelas, que criam cereais,
De que os donos - ainda! - pagam foros,
Dividem-no fechados pitosporos,
Abrigos de raízes verticais.

Ao meio, a casaria branca assenta
À beira da calçada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, numa encosta soalhenta!

Entretanto, não há maior prazer
Do que, na placidez das duas horas,
Ouvir e ver, entre o chiar das noras,
No largo tanque as bicas a correr!

Muito ao fundo, entre olmeiros seculares,
Seca o rio! Em três meses de estiagem,
O seu leito é um atalho de passagem,
Pedregosíssimo, entre dois lugares.

Como lhe luzem seixos e burgaus
Roliços! E marinham nas ladeiras
Os renques africanos das piteiras
Que como alóes espigam altos paus

Montanhas inda mais longinquamente,
Com restevas e combros como boças,
Lembram cabeças estupendas, grossas,
De cabelo grisalho, muito rente.

E, a contrastar, nos vales, em geral,
Como em vidraça duma enorme estufa,
Duma vitalidade equatorial!
Que de frugalidades nós criamos!

Que torrão espontâneo que nós somos!
Pela outonal maturação dos pomos,
Com a carga, no chão pousam os ramos.
E assim postas, nos barros e areais,

As macieiras vergadas fortemente,
Parecem, duma fauna surpreendente
Os pólipos enormes, diluviais.
Contudo, nós não temos na fazenda,

Nem uma planta só de mero ornato!
Cada pé mostra-se útil, é sensato,
Por mais aromas que recenda!
Finalmente, na fértil depressão,

Nada se vê que a nossa mão não regre:
A florescência dum matiz alegre
Mostra um sinal - a frutificação!

Ora, há dez anos, neste chão de lava
E argila e areia e aluviões dispersas,
Entre espécies botânicas diversas,
Forte, a nossa família radiava!

Unicamente, a minha doce irmã,
Como uma tênue e imaculada rosa,
Dava a nota galante a melindrosa
Na trabalhadeira rústica, aldeã.

E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!

Ai daqueles que nascem neste caos,
E, sendo fracos, sejam generosos!
As doenças assaltam os bondosos
E - custa a crer - deixam viver os maus

Fecho os olhos cansados, e descrevo
Das telas da memória retocadas,
Biscates, hortas, batatais, latadas,
No país montanhoso, com relevo!

Ah! que aspectos benignos e rurais
Nesta localidade tudo tinha,
Ao ires, com o banco de palhinha,
Para a sombra que faz nos parreirais!

Ah! quando a calma, à sesta, nem consente
Que uma folha se mova ou se desmanche,
Tu, refeita e feliz com o teu lunch,
Nos ajudavas, voluntariamente!...

Era admirável - neste grau do Sul! -
Entre a rama avistar teu rosto alvo,
Ver-te escolhendo a uva diagalvo,
Que eu embarcava para Liverpool.

A exportação de frutas era um jogo:
Dependiam da sorte do mercado
O boal, que é de pérolas formado,
E o ferral, que é ardente e cor de fogo!

Em agosto, ao calor canicular,
Os pássaros e enxames tudo infestam.
Tu cortavas os bagos que não prestam
Com a tua tesoura de bordar.

Douradas, pequeninas, as abelhas,
E negros, volumosos, os besouros,
Circundavam, com ímpetos de touros,
As tuas candidíssimas orelhas.

Se uma vespa lançava o seu ferrão
Na tua cútis - pétala de leite! -
Nós colocávamos dez-réis e azeite
Sobre a galante, a rósea inflamação!

E se um de nós, já farto, arrenegado,
Com o chapéu caçava a bicharia,
Cada zangão voando, à luz do dia,
Lembrava o teu dedal arremessado.

Que de encantos! Na força do calor
Desabrochavas no padrão da bata,
E, surgindo da gola e da gravata,
Teu pescoço era o caule duma flor!

Mas que cegueira a minha! Do teu porte
A fina curva, a indefinida linha,
Com bondades de herbívora mansinha,
Eram prenúncios de fraqueza e morte!

À procura da libra e do shilling,
Eu andava abstrato e sem que visse
Que o teu alvor romântico de miss
Te obrigava a morrer antes de mim!

E antes tu, ser lindíssimo, nas faces
Tivesses "pano" como as camponesas:
E sem brancuras, sem delicadezas,
Vigorosa e plebéia, inda durasses!

Uns modos de carnívora feroz
Podias ter em vez de inofensivos;
Tinhas caninos, tinhas incisivos,
E podias ser rude como nós!

Pois neste sítio, que era de sequeiro,
Todo o gênero ardente resistia,
E, à larguíssima luz do Meio-Dia,
Tomava um tom opálico e trigueiro!

Sim! Europa do Norte, o que supões
Dos vergéis que abastecem teus banquetes,
Quando às docas com frutas, os paquetes
Chegam antes das tuas estações?!

Oh! As ricas primeurs da nossa terra
E as tuas frutas ácidas, tardias,
No azedo amoniacal das queijarias
Dos fleumáticos farmers de Inglaterra!

Ó cidades fabris, industriais,
De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensais do país que vos atulha
Com a fruta que sai de seus quintais?


Todos os anos, que frescor se exala!


Todos os anos, que frescor se exala!
Abundâncias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bordo!
Vapores por aqui fazendo escala!

Uma alta parreira moscatel
Por doce não servia para embarque:
Palácios que rodeiam Hyde-Park,
Não conheceis esse divino mel!

Pois a Coroa, o Banco, o Almirantado,
Não as têm nas florestas em que há corças,
Nem em vós que dobrais as vossas forças,
Pradarias dum verde ilimitado!

Anglos-saxônios, tendes que invejar!
Ricos suicidas,comparai convosco!
Aqui tudo espontâneo, alegre, tosco,
Facílimo, evidente, salutar!

Oponde às regiões que dão os vinhos
Vossos montes de escórias inda quentes!
E as febris oficinas estridentes
Às nossas tecelagens e moinhos!

E ó condados mineiros! Extensões
Carboníferas! Fundas galerias!
Fábricas a vapor! Cutelarias!
E mecânicas, tristes fiações!

Bem sei que preparais corretamente
O aço e a seda, as lâminas e o estofo;
Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo,
Tudo o que há de mais rijo e resistente!

Mas isso tudo é falso, é maquinal,
Sem vida, como um círculo ou um quadrado,
Com essa perfeição do fabricado,
Sem o ritmo do vivo e do real!

E cá o santo Sol, sobre isto tudo,
Faz conceber as verdes ribanceiras;
Lança as rosáceas belas e fruteiras
Nas searas de trigo palhagudo!

Uma aldeia daqui é mais feliz,
Londres sombria, em que cintila a corte!...
Mesmo que tu, que vives a compor-te,
Grande seio arquejante de Paris!...

Ah! Que de glória, que de colorido,
Quando, por meu mandado e meu conselho,
Cá se empapelam "as maçãs de espelho"
Que Herbert Spencer talvez tenha comido!

Para alguns são prosaicos, são banais
Estes versos de fibra suculenta;
Como se a polpa que nos dessedenta
Nem ao menos valesse uns madrigais

Pois o que a boca trava com surpresas
Senão as frutas tônicas e puras!
Ah! Num jantar de carnes e gorduras
A graça vegetal das sobremesas!...

Jack, marujo inglês, tu tens razão
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caroços
Comes com bestial sofreguidão!...

A impressão doutros tempos, sempre viva,
Dá estremeções no meu passado morto,
E inda viajo, muita vez, absorto,
Pelas várzeas da minha retentiva.

Então recordo a paz familiar,
Todo um painel pacífico de enganos!
E a distância fatal duns poucos anos
É uma lente convexa, de aumentar.

Todos os tipos mortos ressuscito!
Perpetuam-se assim alguns minutos!
E eu exagero os casos diminutos
Dentro dum véu de lágrimas bendito.

Pinto quadros por letras, por sinais,
Tão luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calma é mais queimante,
Na quadra em que o Verão aperta mais.

Como destacam, vivas, certas cores,
Na vida externa cheia de alegrias!
Horas, vozes, locais, fisionomias,
As ferramentas, os trabalhadores!

Aspiro um cheiro a cozedura, e a lar
E a rama de pinheiro! Eu adivinho
O resinoso, o tão agreste pinho
Serrado nos pinhais a beira-mar.

Vinha cortada, aos feixes, a madeira,
Cheia de nós, de imperfeições, de rachas;
Depois armavam-se, num pronto as caixas
Sob uma clama espessa e calaceira!

Feias e fortes! Punham-lhes papel
A forrá-las. E em grossa serradura
Acamava-se a uva prematura
Que não deve servir para tonel!

Cingiam-nas com arcos de castanho
Nas ribeiras cortados, nos riachos;
E eram de açúcar e calor os cachos,
Criados pelo esterco e pelo amanho!

Ó pobre estrume, como tu compões
Estes pâmpanos doces como afagos!
"Dedos-de-dama": transparentes bagos!
"Tetas-de-cabra": lácteas carnações!

E não eram caixitas bem dispostas
Como as passas de Málaga e Alicante;
Com sua forma estável, ignorante,
Estas pesavam, brutalmente, às costas!

Nos vinhatórios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as vistas cegas,
Os paralelogramos das adegas,
Que têm lá dentro as dornas e o lagar!

Que rudeza! Ao ar livre dos estios,
Que grande azáfama! Apressadamente
Como soava um martelar freqüente,
Véspera da saída dos navios!

Ah! Ninguém entender que ao meu olhar
Tudo tem certo espírito secreto!
Com folhas de saudades um objeto
Deita raízes duras de arrancar!

As navalhas de volta, por exemplo,
Cujo bico de pássaro se arqueia,
Forjadas no casebre duma aldeia,
São antigas amigas que eu contemplo!

Elas, em seu labor, em seu lidar,
Com sua ponta como a das podoas,
Serviam probas, úteis, dignas, boas,
Nunca tintas de sangue e de matar.

E as enxós de martelo, que dum lado
cortavam mais do que as enxadas cavam,
Por outro lado, rápidas, pregavam,
Duma pancada, o prego fasquiado!

O meu ânimo verga na abstração,
Com a espinha dorsal dobrada ao meio;
Mas se de materiais descubro um veio
Ganho a musculatura dum Sansão!

E assim - e mais no povo a vida é corna -
Amo os ofícios como o de ferreiro,
Com seu fole arquejante, seu braseiro,
Seu malho retumbante na bigorna!

E sinto, se me ponho a recordar
Tanto utensílio, tantas perspectivas,
As tradições antigas, primitivas,
E a formidável alma popular!

Oh! Que brava alegria eu tenho quando
Sou tal-qual como os mais! E, sem talento,
Faço um trabalho técnico, violento,
Cantando, praguejando, batalhando!

Os fruteiros, tostados pelos sóis,
Tinham passado, muita vez, a raia,
E, espertos, entre os mais da sua laia,
- Pobres campônios - eram uns heróis.

E por isso, com frases imprevistas,
E colorido e estilo e valentia,
As haciendas que há na Andalucía
Pintavam como novos paisagistas.

De como, às calmas, nessas excursões,
Tinham águas salobras por refrescos;
E amarelos, enormes, gigantescos,
Lá batiam o queixo com sezões!

Tinham corrido já na adusta Espanha,
Todo um fértil platô sem arvoredos,
Onde armavam barracas nos vinhedos,
Como tendas alegres de campanha.

Que pragas castelhanas, que alegrão
Quando contavam cenas de pousadas!
Adoravam as cintas encarnadas
E as cores, como os pretos do sertão!

E tinham, sem que a lei a tal obrigue,
A educação vistosa das viagens!
Uns por terra partiam a estalagens,
Outros, aos montes, no convés dum brigue!

Só um havia, triste e sem falar
Que arrastava a maior misantropia,
E, roxo como um fígado, bebia
O vinho tinto que eu mandava dar!

Pobre da minha geração exangue
De ricos! Antes, como os abrutados,
Andar com uns sapatos ensebados,
E ter riqueza química no sangue!...

Mas hoje a rústica lavoura, quer
Seja o patrão, quer seja o jornaleiro,
Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro
E a filharada lidam, e a mulher!

Desde o princípio ao fim é uma maçada
De mil demônios! Torna-se preciso
Ter-se muito vigor, muito juízo
Para trazer a vida equilibrada!

Hoje eu sei quanto custam a criar
As cepas, desde que eu as podo e empo.
Ah! O campo não é um passatempo
Com bucolismos, rouxinóis, luar.

A nós tudo nos rouba e nos dizima:
O rapazio, o imposto, as pardaladas,
As osgas peçonhentas, achatadas,
E as abelhas que engordam na vindima.

E o pulgão, a lagarta, os caracóis,
E há inda, além do mais com que se ateima,
As intempéries, o granizo, a queima,
E a concorrência com os espanhóis.

Na venda, os vinhateiros de Almería
Competem contra os nossos fazendeiros.
Dão frutas aos leilões dos estrangeiros,
Por uma cotação que nos desvia!

Pois tantos contras, rudes como são,
Forte e teimoso, o camponês destrói-os!
Venham de lá pesados os comboios
E os "buques" estivados no porão!

Não, não é justo que eu a culpa lance
Sobre estes nadas! Puras bagatelas!
Nós não vivemos é de coisas belas,
Nem tudo corre como num romance!

Para a Terra parir há de ter dor,
E é para obter as ásperas verdades,
Que os agrônomos cursam nas cidades,
E, à sua custa, aprende o lavrador.

Ah! Não eram insetos nem as aves
Que nos dariam dias tão difíceis,
Se vós, sábios, na gente descobrísseis
Como se curam as doenças graves.

Não valem nada a cava, a enxofra, e o mais!
Dificultoso trato das searas!
Lutas constantes sobre as jornas caras!
Compras de bois nas feiras anuais!

O que a alegria em nós destrói e mata,
Não é rede arrastante de escalracho,
Nem é "suão" queimante como um facho,
Nem invasões bulbosas de erva-pata.

Podia ter secado o poço em que eu
Me debruçava e te pregava sustos,
E mais as ervas, árvores e arbustos
Que - tanta vez! - a tua mão colheu.

"Moléstia negra" nem charbon não era,
como um archote incendiando as parras!
Tão-pouco as bastas e invisíveis garras,
Da enorme legião do filoxera

Podiam mesmo, com o que contêm,
Os muros ter caído às invernias!
Somos fortes! As nossas energias
Tudo vencem e domam muito bem!

Que os rios, sim, que como touros mugem,
Transbordando atulhassem as regueiras!
Chorassem de resina as laranjeiras!
Enegrecessem outras com ferrugem!

As turvas cheias de novembro, em vez
Do nateiro sutil que fertiliza,
Fossem a inundação que tudo pisa,
No rebanho afogassem muita rês!

Ah! Nesse caso pouco se perdera,
Por isso tudo era um pequeno dano,
À vista do cruel destino humano
Que os dedos te fazia com cera!

Era essa tísica em terceiro grau,
Que nos enchia a todos de cuidado,
Te curvava e te dava um ar alado
Como quem vai voar dum mundo mau.

Era a desolação que inda nos mina
(Porque o fastio é bem pior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que o consome,
E a minha mãe cabelos de platina.

Era a clorose, esse tremendo mal,
Que desertou e que tornou funesta
A nossa branca habitação em festa
Reverberando a luz meridional.

Não desejemos, - nós, os sem defeitos -,
Que os tísicos pereçam! Má teoria,
Se pelos meus o apuro principia,
Se a Morte nos procura em nossos leitos!

A mim mesmo, que tenho a pretensão
De ter saúde, a mim que adoro a pompa
Das forças, pode ser que se me rompa
Uma artéria, e me mine uma lesão.

Nós outros, teus irmãos, teus companheiros,
Vamos abrindo um matagal de dores!
E somos rijos como os serradores!
E positivos como os engenheiros!

Porém, hostis, sobressaltos, sós,
Os homens arquitetam mil projetos
De vitória! E eu duvido que os meus netos
Morram de velhos como os meus avós!

Porque, parece, ou fortes ou velhacos
Serão apenas os sobreviventes;
E há pessoas sinceras e clementes,
E troncos grossos com seus ramos fracos!

E que fazer se a geração decai!
Se a seiva genealógica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro de que o pai!

Mas seja como for, tudo se sente
Da tua ausência! Ah! como o ar nos falta,
Ó flor cortada, susceptível, alta,
Que assim secaste prematuramente!

Eu que de vezes tenho o desprazer
De refletir no túmulo! E medito
No eterno Incognoscível infinito,
Que as idéias não podem abranger!

Como em paul em que nem cresça a junca
Sei de almas estagnadas! Nós absortos,
Temos ainda o culto pelos Mortos,
Esses ausentes que não voltam nunca!

Nós ignoramos, sem religião,
Ao rasgarmos caminho, a fé perdida,
Se te vemos ao fim desta avenida
Ou essa horrível aniquilação!...

E ó minha mártir, minha virgem, minha
Infeliz e celeste criatura,
Tu lembras-nos de longe a paz futura,
No teu jazigo, como uma santinha!

E enquanto a mim, és tu que substituis
Todo o mistério, toda a santidade,
Quando em busca do reino da verdade
Eu ergo o meu olhar nos céus azuis!


Tínhamos nós voltado à capital maldita

III

Tínhamos nós voltado à capital maldita,
Eu vinha de polir isto tranqüilamente,
Quando nos sucedeu uma cruel desdita,
Pois um de nós caiu, de súbito, doente.

Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Mas sei dum infortúnio imenso como o seu!
Viu o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, aflito e atônito, morreu!...

De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo
Com tanta crueldade e tantas injustiças,
Se ainda trabalho é como os presos no degredo,
Com planos de vingança e idéias insubmissas.

E agora, de tal modo a minha vida é dura,
Tenho momentos maus, tão triste, tão perversos,
Que sinto só desdém pela literatura,
E até desprezo e esqueço os meus amados versos!

Tenta curar-se tuberculose, mas sem sucesso; vem a falecer no dia 19 de Julho de 1886.
De poesia delicada, Cesário empregou técnicas impressionistas, com extrema sensibilidade ao retratar a cidade e o campo, que são os seus cenários predilectos. Evitou o lirismo tradicional, expressando da forma mais natural possível.


«O Livro de Cesário Verde»

Levado pela amizade fraternal pelo poeta, e ao mesmo tempo pelo desejo de estudar-lhe criticamente o escasso legado poético, Silva Pinto organizou «O Livro de Cesário Verde» (2) segundo um critério inteiramente pessoal, pois Cesário não deixara nem mesmo um esboço dele.

Silva Pinto arrasta o poeta para a boémia revolucionária no “Martinho” (3) das mesas espelhadas. Alto, magro, louro, activo, sensual, Cesário tem boa figura, seduzem-no e seduz mulheres, mas as que mais o fascinam são actrizes, a Luísa Cândida – do “Condes”, a Palmira de Souza – do “Variedades” e ainda a Tomásia Veloso, com quem, ao que parece, terá tido um romance.


O Martinho da Arcada
Lisboa

Fialho de Almeida descreve-o assim: “O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loura, rosada, de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica, e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinha a expressão profunda, rectilínea, longínqua, que a gente nota nos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões.”

E aí vem uma actriz, talvez a Tomásia, a saltitar por entre as obras de uma rua:

(...)
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na, sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente

Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa
Com os seus pezinhos rápidos, de cabra!


Tentemos, ao menos neste dia, realizar o sonho de converter a vida num poema de amor e fraternidade. Boas leituras de poesia.

Saudações bibliófilas.


(1) Para comemorar este dia, a Fnac lança uma antologia com os melhores poemas de 2009, escolhidos por José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luis Miguel Queirós e Manuel de Freitas. com título: Resumo - a Poesia em 2009.

(2) Tiragem de apenas 200 exemplares numerados. Prefácio de Silva Pinto.

(3) O Martinho da Arcada nasceu de «A Casa das Neves», fundada em 1782, o nome actual só surgiu em 1845.
É um dos cafés-restaurantes mais antigos de Lisboa e entre as suas mesas cheias de histórias, a de Fernando Pessoa continua intacta, com a colher de chá que costumava usar e o copo de aguardente no mesmo lugar. Ele foi o cliente mais ilustre do Martinho, mas muitos outros passaram por ali: Bocage, Eça de Queirós, Cesário Verde, Columbano, Gago Coutinho, Duarte Pacheco...
Os moradores locais comentam que Pessoa pagava muitos de suas refeições com poemas, um deles presente no cardápio até hoje.
Situa-se em plena Praça do Comércio, no coração da cidade e é paragem obrigatória para sentir a alma de Lisboa.
Infelizmente está em risco de fechar as portas .. outros tempos outras mentalidades

1 comentário:

Galderich disse...

En ciertos blogs no hay un día de poesía sinó que la poesía es una fiesta constante.
Gracias por recordarnos que hay un día donde la poesía es la protagonista.
Un abrazo