"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

domingo, 28 de março de 2010

Manuel Maria Barbosa du Bocage e as suas polémicas com José Daniel Rodrigues da Costa




Manuel Maria Barbosa du Bocage

Retomando um pouco o “fio à meada”, vou deixar mais alguns apontamentos sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage, desta vez, sobre um dos temas que o tornaram famoso e temido – as suas polémicas!

Com efeito, quem “não lhe caísse em graça” seria uma vitima da sua verve poética e objecto do seu sarcasmo, sempre que para isso tivesse ocasião ... quando não era ele que a criava!

Tome-se como exemplo José Daniel Rodrigues da Costa.
Este era oficial das portas da cidade em Belém para impedir a entrada do vinho sem guia, a quem Bocage chamava de “Beleguim do Parnaso”.

De modo algum era merecedor dos elogios que o «Jornal de Coimbra» lhe tecia, mas não era totalmente desprovido de mérito.

A sua obra de referência é «O Almocreve das Petas» mas escreveu alguns outros textos igualmente com interesse.


José Daniel Rodrigues da Costa

José Daniel Rodrigues da Costa, tinha por hábito andar sempre com folhetos seus nas algibeiras, oferecendo-os pelas ruas a quem passasse, antes de os entregar a Belchior Semedo para os corrigir, para publicação. (1)

Contra este homem Bocage muitos sonetos disparou; veja-se entre outros: «Ao machucho poetarrão».

Das petas e almocreve é cousa tua,
Bem se vê, Daniel, na phrase o gosto:
Adiça três de Abril, ou seis de Agosto,
É de quem vende as rimas pela rua.

Cheira a teu nome o roubo da perua.,
E entre o tostado arroz o gato posto;
Eis a obra melhor que tens composto,
Inda que de artifício e graças nua.
A gente por Lisboa anda pasmada
Vendo-te farto, e cheio com o um ovo,
Dos alvos pintos que te deu por nada;



E frio de terror sussurra o povo,
Que a tua estupidez anda pejada,
E que cedo se espera um parto novo.


Gravura colorida, séc. XVIII, 410 x 825 mm
Projecto para a Praça do Comércio atribuído a Eugénio dos Santos.

Ou este outro, precedido do título: “A I.D.R.C. , esbirro terrível pela penna e cordel” (2):

– «Não presta Corydon, não presta Elpino,
«Filinto ó ninharia, é lixo Alfeno,
«Albano falla só do Tejo ameno,

«Só tardes e manhans descreve Alcino.
«Trescala aos seiscentistas o Paulino:
«Pois Bocage! Isso é peste, isso é veneno!»
(Rosnava charlatão rolho e pequeno,
Pequeno em corpo, em alma pequenino). (3)
– «Quem tem voss’mecê (lhe sahi d’um lado
Taful do sério rancho das lunetas),
«Quem acha para versos extremados?»
– «Quem?» (diz o tal): «Não fação caretas:
«Um que de seus papeis anda pejado,
«Poeta de pregões, cantar de petas»
«O aguazi! Daniel, cantor de petas»..



Mas, pobre José Daniel, não era só ultrajado em sonetos, pois que tal também acontecia, frequentemente em público.

Vejamos este episódio, contado por José Feliciano de Castilho e por Rebello da Silva, o que lhe confere um bom grau de veracidade..

“Uma tarde estando eu (4) na loja do José Pedro (5) , entra Bocage e diz-me:


– Sabes quem me veio hoje procurar? O homem das Petas. Vinha muito concho e modesto, exaltando-me às nuvens ... até que o intrugi, quando me tartamudeou:
– Cá eu não me posso medir com V.m.
– Mas eu também não sou nenhum côvado, lhe respondi.
– Mas é que a sua concorrência ...
– Eu não trago contracto arrematado.
– Pois traga ou não, torna o homem quasi a chorar, pelo amor de Deos não me tome à sua conta, que eu não quero glórias, quero pão!
– Tive dó do homem, tive, acrescentava Bocage, mas lá os taes versos d’elle, como amigo sempre digo lh’os não comprem!


Rossio – Lisboa

Sahimos da loja de bebidas, para o Passeio, e ao voltar a esquina do Rocio, deu Bocage com os olhos n’um cartaz annuncando o II tomo das “Rimas” de José Daniel, com os maiores e mais nauseabundos elogios. Ahi lhe vi eu fazer um maravilhoso esforço! Mal tinha olhado para o cartaz, começou, como se estivesse lendo o que se achasse escripto na parede, a recitar, sem hesitação n’uma unica syllaba, o seguinte:

Tomo segundo à luz sahio das Rimas
De José Daniel Rodrigues Costa;
Obra mui devagar, mui bem composta,
E sujeita depois a doutas limas.

Falla em opios, em manas, falla em primas;
Diz cousas de que a plebe não desgosta;
Malha em peraltas, na relé disposta
A saltos, macaquices, pantominas.

Por estas, e por outras que tem feito,
Verá qualquer leito, nas obras suas,
Que elle para versar nasceu com geito.

Achão-se em tendas, achão.se em commuas;
E para augmentar honra e proveito,
As vende o próprio autor por essas ruas.”


Café Nicola – Lisboa

Como remate, trago mais este episódio, anterior a este que referi, pois na altura ainda os dois “seriam mais ou menos amigos”.

– Ó José Daniel, entremos aqui no Nicola,
– Prompto.
– Manda vir genebra e cigarros.
Depois de refocilados, diz Bocage:
– Ora agora paga, para irmos dar uma volta à Lage.
– Paga! Non potest esse, que estou á paz de pirolo. Paga tu!
– Eu é que não arroto de ricaço; não convidasses um pobretão.
– Pobretão! Pobretão!

Todo o homem pobretão
Deve ser como o cabrito;
Ou morrer em pequenino,
Ou crescer para cabrão.


Este exemplo reflecte bem o espirito irreverente e mordaz de Bocage e muitos outros foram objecto da sua mordacidade poética e não só.

Espero que esta “pincelada” vos tenha transmitido mais uma outra faceta de Bocage e os ajude a reconstituir a sua imagem de homem e como ele viveu o seu tempo.


Saudações bibliófilas


(1) Por questão de opção pessoal, como já é habitual, apresentam-se os textos com a ortografia como foram publicados.

(2) A maioria foi vendida como livros de cordel.

(3) Segundo Inocêncio Francisco da Silva estes dois versos referem-se ao Dr. José Tomas Quintanilha.

(4) Refere-se a D. Gastão Fausto da Câmara Coutinho

(5) Trata-se de José Pedro da Silva proprietário do antigo «Botequim das Parras» no Rossio em Lisboa.


Bibliografia:

BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. - POESIAS DE... Colligidas em nova e completa edição. Dispostas e anotadas por I. F. da Silva. E precedidas de um estudo biographico e litterario sobre o poeta, escripto por L. A. Rebello da Silva. Tomo I (ao Tomo VI). Lisboa, Editor: A. J. Lopes. MDCCCLIII. 6 Vols. In-8º

CUNHA, Xavier da – A Bíblia dos Bibliophilos – Divagações Bibliographicas e Biblioeconómicas pelo Director da Biblioteca Nacional de Lisboa. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1911. 103 pp. Br.

NORONHA, José Feliciano de Castilho Barreto e – Manoel Maria Barbosa du Bocage. Excertos ... Tomo III. Rio de Janeiro, Livraria B. L. Garnier Editor, 1867. In 4º de 326 pp.

3 comentários:

Galderich disse...

Leyendo este apunte se me confirma lo que a veces tengo la sensación que antes eran más críticos y sarcasticos que ahora donde impera lo políticamente correcto y que rara vez salen a flote virulencias críticas... salvo algunas excepciones que permiten "ambientar" el mundo de la intelectualidad.

Marco Fabrizio Ramírez Padilla disse...

Rui.

Se conoce mejor a un hombre por lo versos compuestos de manera tan espontanea, que leyendo doctas y extensas biografías.
Se extrañan los escritores, que le agregaban sabor al ambiente y no se preocupaban mucho de la opinión de los demás.

Saludos bibliófilos.
Saludos

Rui Martins disse...

Caros amigos

Bocage é de facto um personagem impar na nossa literatura. Teve apontamentos de grande poeta, mas sobretudo teve o arrojo de afrontar a sociedade do seu tempo.
Como tu dizes Galderich hoje “onde impera o politicamente correcto”, e talvez seja essa uma das razões do seu “esquecimento” actual.

Aquilo que se escreve perpetuar-se-á, para o bem e para o mal, e será essa uma das melhores marcas que deixaremos no mundo.
Marco nada melhor do que o ler ou reler para se entender melhor o poeta e conhecer um pouco da sua época. (No entanto, há obras sobre Bocage que são de leitura deliciosa ... mostram-no “em carne e osso” como se diz por cá!)

Mas sabem uma coisa? Quando releio alguns dos seus sonetos, imagino-o na nossa época. Como seria bem curiosa a sua irreverência perante os acontecimentos que nos rodeiam, e na farsa de “certos actos politico-culturais” que mais não são do que “belas tiradas de folclore cultural” (e muitas vezes desenraizadas do contexto)

Um muito obrigado pelos vossos comentários.
Um abraço amigo