"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Padre António Vieira – Las Cinco Piedras de la Honda de David en Cinco Discursos Morales



Apresento-vos uma outra obra do padre António VieiraLAS CINCO // PIEDRAS // DE LA HONDA // DE DAVID // EN CINCO DISCURSOS // MORALES, impressa em castelhano em Lisboa na Officina de Miguel Deslandes em 1695.



VIEIRA, Padre António - LAS CINCO // PIEDRAS // DE LA HONDA // DE DAVID // EN CINCO DISCURSOS // MORALES, // Predicados en Roma a la Reyna de Suecia, // CHRISTINA ALEXANDRA, // en lengua Italiana, // Por el Reverendissimo Padre // ... // Y traducidos en lengua Castellana por el mismo Author. // LISBOA, // En la Officina de Miguel Deslandes, // Año de 1695. In-8º de [16], 125, [40] págs. Encadernação moderna em inteira de carneira, com título e gravados a ouro na lombada.
Referências: Ávila Perez, 7994; Garcia Perez, 570.

Para se compreender melhor o porquê deste sermão, originalmente em italiano, convirá esboçar alguns aspectos do percurso biográfico do padre António Vieira.


Padre António Vieira

Para esse conhecimento é fundamental falar-se dos problemas do padre António Vieira com a Inquisição.

Estes começam em 1659 após a publicação das suas obras: Esperanças de Portugal e Defesa do livro intitulado Quinto Império.


D. João IV
Quadro no Palácio de Vila Viçosa

D. João IV nomeara-o pregador régio e o padre torna-se o seu homem de confiança. Vieira quer repor Portugal na sua antiga grandeza.

António Vieira começa por traçar para Portugal um plano de recuperação económica no qual propõe o desenvolvimento do comércio: isentar de impostos os bens móveis dos comerciantes, fundar um banco comercial e duas companhias comerciais, tal como já tinham feito os holandeses; abrir o comércio às nações neutrais ou amigas e agraciar os comerciantes com títulos de nobreza, entre outras medidas.

Estas medidas eram por demais avançadas para o tempo em Portugal.

Esta teoria mercantilista de instalação de um sistema económico baseado na burguesia capitalista agradava ao rei. Mas é combatida pela nobreza, receosa da perda de privilégios e pelas duas ordens religiosas mais importantes. Os dominicanos jamais aceitariam a aproximação aos judeus – perderiam as suas principais vítimas nas prisões inquisitoriais e os próprios jesuítas vão opor-se a Vieira, pois que ele obtivera, por si só, o valimento do rei, sem nisso envolver a Congregação.

Mas a sua principal proposta era a de se abolirem as distinções entre cristãos velhos e cristãos novos e de atrair a Portugal os capitais dos judeus fugidos do país. Para tal, teria de se reformar a Inquisição.

Perante esta proposta, a Inquisição não lhe podia perdoar tal “heresia” e, como tal, avançou com as suas medidas.

No entanto só em 1663, após um golpe palaciano que entrega o governo a D. Afonso VI, depondo da regência D.ª Luísa de Gusmão – que a assumira após a morte de D. João IV em 1656 – começa a perseguição ao padre António Vieira. Começa por ser enviado para um desterro no Porto.


Retrato do Rei D. Afonso VI
Autor desconhecido do  século XVII
Óleo sobre tela 127 x 204 cm
Museu Nacional dos Coches
© IMC / MC

Em 1665 o padre António Vieira é preso pela Inquisição e mantido em custódia. Este, em 1666, faz a entrega da sua defesa ao Tribunal do Santo Ofício que o submete a vários interrogatórios.

A 23 de Dezembro de 1667, o Tribunal do Santo Ofício dita a sua sentença condenatória: "é privado para sempre de voz activa e passiva e do poder de pregar, e recluso no Colégio ou Casa de sua religião, que o Santo Ofício lhe ordenar, e de onde, sem ordem sua, não sairá". Não o autorizam a ir para o estrangeiro para que não possa atacar a Inquisição. Permitem-lhe apenas que se instale no Noviciado da Ordem em Lisboa.

A 12 de Junho de 1668 Vieira é amnistiado, mas continua proibido de, nos seus sermões, tratar de assuntos relacionados com cristãos novos, profecias, V Império, Inquisição.


Padre António Vieira

Já não é tão bem recebido na Corte. D. Pedro II pende mais para os dominicanos, pelo que não precisa de António Vieira. Os superiores da sua Ordem (os jesuítas) enviam-no a Roma com a incumbência de promover a canonização de 40 jesuítas presos nas Canárias e martirizados pelos protestantes em 1570.

Mas Vieira vai, também, por outro motivo: quer, na Santa Sé, obter a anulação total da sentença condenatória do Santo Ofício, pois sente-se humilhado e injustiçado.


Retrato da rainha Cristina da Suécia,
por Sébastien Bourdon

A rainha Cristina I da Suécia vive em Roma, desde 1654, depois de ter abdicado do trono sueco e de se converter ao catolicismo. O seu palácio é um pólo de atracção de artistas, intelectuais e religiosos. (1)

Tal como acontecera em Estocolmo, a rainha, dotada de grande inteligência e cultura, mas com uma personalidade misteriosa e controversa, continua em Roma a rodear-se das figuras mais célebres da Europa, uma das quais fora Descartes falecido, em 1650, durante a sua estada na corte nórdica.

É este o contexto histórico que irá permitir o encontro do padre António Vieira com a rainha Cristina da Suécia.

Como se disse António Vieira está em Roma desde 1669 e a sua fama de pregador acaba por chegar aos ouvidos da rainha, que o convida para pregar no seu palácio.

Ficou célebre o confronto de oratória entre o padre António Vieira e o padre Jerónimo Catâneo, que decorreu no ano de 1664, no palácio da rainha e, no qual, a Catâneo foi proposto defender o riso de Demócrito perante os males do mundo e a Vieira defender o pranto e as lágrimas de Heraclito perante os mesmos males. (2)


D. Pedro II

Nesta época, António Vieira prega em italiano, a rainha escuta alguns dos seus sermões – de que este é um dos exemplos – e chega mesmo a convidá-lo para seu pregador. António Vieira recusa o convite; porque, diz ser o pregador do seu rei D. Pedro II e ainda não ter terminado aquilo que o trouxera a Roma – a revisão do seu processo na Inquisição.


Papa Clement X
Pintura de Giovanni Battista Gaulli

Só em 1675, após o Breve do Papa Clemente X (3) em que louva António Vieira e o isenta da Inquisição é que este poderá regressar finalmente a Lisboa.

A rainha Cristina chegará ainda a convidá-lo, em 1679, para ser seu confessor, mas António Vieira recusa de novo esta proposta.


Mas veja-se agora um pouco mais detalhadamente o livro em questão. É uma obra impressa em Lisboa na Officina de Miguel Deslandes – impressor régio – em papel de relativa boa qualidade e com caracteres bem nítidos. Tem uma encadernação moderna, mas bem ao gosto antigo, com título gravado a ouro, sobre rótulo vermelho escuro, e com belos gravados também a ouro na lombada – nos nervos e entre nervos … com as bem apreciadas casas fechadas (pelo menos para o meu gosto).


Assinatura de Miguel Deslandes (4)

A página de rosto é impressa só a preto. Apresenta algumas “galerias de traça” nas primeiras páginas, mas que não afectam o texto, e se encontram restauradas; aliás o livro pode-se considerar em muito bom estado de conservação, apenas com o papel de algumas das páginas mais amarelecidas e raras manchas e um pequeno furo – provavelmente provocado pela tinta ou queimadura – na margem externa de uma das páginas. As margens são relativamente boas, de destacar a externa, pois que a superior está, como de hábito, um pouco curta.

















































Apresenta cabeções e vinhetas tipográficas de bela execução técnica.























As capitulares sobressaem por serem de dois tipos de cunhos diferentes, mas qualquer deles de bom apuro técnico e grande nitidez.














Espero que o livro vos tenha despertado a atenção para “outros voos” na obra do padre António Vieira.


Perdoem-me todos aqueles mais familiarizados com a figura e a obra do padre António Vieira, mas estes apontamentos destinam-se a chamar a atenção para os “iniciados nestas andanças” para esta figura tão maltratada na sua época, apesar das suas qualidades de oratória e de escrita, ainda hoje consideradas, e muito justamente, notáveis.

Como escritor, os seus Sermões, são peças ímpares da nossa prosa barroca, nos quais se aliam a grande capacidade de análise racional, de bom senso e clarividência a um misticismo profético.


Saudações bibliófilas.


Notas:

(1) Refira-se como curiosidade que esta mesma rainha, em 1641, acolheu uma embaixada de D. João IV que tratou de modo afável, reconhecendo o rei que em 1640 subira ao trono, depois de afastar os Filipes de Espanha.

(2) António Vieira dirá, entre outras argumentações, o seguinte: "Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria".

(3) Papa Clemente X, Emilio Altieri de seu nome, nasceu em Roma a13 de Julho de 1590 e aqui faleceu a 22 de Julho de 1676. Foi Papa de 29 de Abril de 1670 até à sua morte.
Tratava-se dum homem muito letrado e preparado para assumir o Pontificado, porém já contava uma idade avançada ao assumir o pontificado. Granjeou amigos e inimigos poderosos devido a sua rectidão. Detinha fama de costumes sóbrios e de ser "incorruptível".
Trabalhou sempre ao serviço da Igreja, sob vários papas. Urbano VIII nomeou seu legado em Ravena. Inocêncio X indicou-o como Núncio em Nápoles. Alexandre VII tornou-o secretário da Congregação dos Bispos e Regulares. Clemente IX nomeou-o como responsável pelo Tesouro do Vaticano.
Proclamou santos a Francisco Borja, Rosa de Lima, Luís Beltran, Caetano de Thiene,

(4) in CUNHA, Xavier da, 1840-1920
Impressões deslandesianas : divulgações bibliographicas / Xavier da Cunha. - Lisboa : na Imprensa Nacional, [1895], (1896). - 2 v. http://purl.pt/254


Fontes:

Vidas Lusófonas:

Portal de S. Francisco


5 comentários:

Urzay disse...

¡Qué bella edición llena de detalles tipográficos y delicadamente encuadernada! Gracias por mostrarla, Rui.
Un abrazo

Galderich disse...

Rui,
Una historia realmente apasionante, pareja a la del libro que nos muestras. Hay que ver como entorpeció la Inquisición la evolución histórica de los paises del sur de Europa. Este es un muy buen ejemplo.
Las xilografías ornamentales son una pequeña delicia.

Bach disse...

Que belo livro! La encuadernaçao pareceme moito apropiada. La impressao pareceme de muita quadidade.
Eu acho que la Inquisiçao e a massima resposabel do futuro atraso tanto da Espanha como do Porugal,en comparaçao ao resto dos paises Europeos(¡ Uf, que dificil esto del portugues!).
Un abrazo

Marco Fabrizio Ramírez Padilla disse...

Muy atractivo el contexto en el que sitúas este hermoso libro.
El estado de conservación, los detalles tipográficos, la encuadernación lo hacen un conjunto sobresaliente.

¡Felicidades!

Saludos bibliófilos

Rui Martins disse...

Caros amigos,

De facto Miguel Deslandes foi um conceituado impressor, aliás para os mais interessados aconselho a consulta do livro “Impressões deslandesianas : divulgações bibliographicas” que refiro nas notas.

Este livro tem o interesse particular de servir de pretexto para se poder avaliar do papel altamente negativo que a Inquisição teve no desenvolvimento cultural dos povos do sul da Europa.

Voltando ao “meu” Padre António Vieira convirá referir que os tormentos com a Inquisição não ficaram por aqui, mas a isso voltarei numa outra oportunidade.

Um abraço