"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

domingo, 28 de agosto de 2016

Apontamentos Surrealistas IV: A opinião do Miguel de Carvalho


Depois e ter escrito alguns textos sobre o Surrealismo, cada vez me apercebia mais de que os meus conhecimentos sobre o tema eram manifestamente muito “básicos”, e isto para utilizar uma expressão muito branda.


uma cidade de ideias
de Miguel de Carvalho

Como as dúvidas aumentavam e, sobretudo o receio de estar a transmitir uma ideia errada sobre o tema, optei por pedir o apoio a alguns livreiros-antiquários que me pareciam reunir as condições para o fazer, atendendo aos seus conhecimentos bem como pela sua especialização que se detecta nos catálogos das suas livrarias, sob a forma de uma entrevista que fosse simultaneamente esclarecedora sobre o tema e com se poderia formar uma colecção sobre o surrealismo

Prontamente o meu prezado e estimado amigo Miguel de Carvalho se prontificou a responder.

E é precisamente o resultado dessa entrevista que hoje vos apresento.


Miguel de Carvalho – livreiro-antiquário, artista e poeta.

“Quem escreveu o artigo foi o miguel-autor e não o livreiro livreiro, embora o miguel-autor tenha sido aconselhado pelo miguel-livreiro.
O que quis salientar foi o que realmente interessa a quem entra neste tema
Os livros pelos quais deve consciencializar, o resto é paisagem... o mercado, o futuro, etc ...”
(Miguel de Carvalho)

Mas obviamente que aquilo que se irá ler é de uma importância capital para um principiante – que é o meu caso – e um alerta para os erros que se poderão cometer .

“Lembre-se que quem começa, em especial um menos jovem, deve começar pelo mais acessível para imbuir-se do espírito e não atacar logo pela via do mais caro, pois eu conheço [algumas] pessoas que se diziam bibliófilas do surrealismo com muito dinheiro que se limitaram a comprar apenas como mercado de bolsas de valores.
[Nomeadamente uma delas] …entendia bem o espírito, mas faltava ali algo que ele não dava importância: os textos essenciais do movimento em colaboração com os estrangeiros...que são ESSENCIAIS... as revistam mundiais onde colaboraram os portugueses são CAPITAIS.”
(Miguel de Carvalho)

Claro que só um surrealista assumido e bem imbuído neste espírito poderia ter a frontalidade de responder da forma como o faz.


Monólogos de perder a vista
(Santuário de Nossa Senhora dos Remédios)
de Miguel de Carvalho

E, a este propósito, relembro o seu livro mais recente – Neste estabelecimento não há lugares sentados – que é de uma excepcional beleza poética (na opinião do rui-leitor, nas aqui o rui-bibliófilo não pode deixar de alertar para o facto de o livro se ir tornar numa raridade, pois teve apenas uma tiragem de 250 exemplares (dos quais 15 numerados, assinados, acompanhados pelas três fotografias originais do livro e acondicionado em estojo próprio)



Carvalho, Miguel de – Neste estabelecimento não há lugares sentados. Lisboa, Alambique, 2016. 75 (2) págs. Brochura. Arranjo gráfico de Inês Mateus.

Antes de transcrever a entrevista, quero deixar claro, que todas as notas são da minha inteira responsabilidade, tendo por objectivo facilitar o conhecimento dos textos e das revistas referidos (ainda quede alguns já tenha aqui falado), pois como principiante não tinha uma noção muito correcta da sua sequência e conteúdos (mais uma das minhas achegas histórico-bibliográficas).
Vamos então ler a tal entrevista!

Imagine que sou um coleccionador (não pense em mim concretamente, mas num mais jovem com mais tempo pela frente para reunir uma colecção bem representativa) que se quer embrenhar na literatura surrealista, que autores e/ou livros lhe sugeria?
A qual das gerações daria preferência?
Na sua opinião é uma escola com bom mercado e, como tal difícil, ou poderá ser de aquisição relativamente acessível? (claro que esta questão é de resposta dúbia pois depende de autor para autor…senão menos de obra para obra)
Como interveniente activo (editor e escritor/artista plástico) no processo surrealista com antevê o seu futuro?

A “literatura surrealista” é um termo que me incomoda de alguma maneira pois, além de estarmos a rotular um tipo de cultura, estamos a associá-la através do uso de um adjectivo a uma actividade libertadora que, por si só, recusa o seu encontro com a Literatura - “um dos mais tristes caminhos que conduz a tudo” (André Breton in Manifestos do Surrealismo).


André Breton

A verdadeira voz surrealista privilegia os aspectos anti-literários das actividades literárias. Lembro que os primeiros textos dos surrealistas foram publicados na revista Litterature (1919-1924) (1), título e termo que, por antífrase, serviu para entreter a confusão num meio onde a revista foi o órgão por excelência do dadaísmo parisiense. Deste modo, deu-se à altura lugar ao débito torrencial da escrita automática com o intuito de “limpar definitivamente da imundice literária” (André Breton in Point du Jour).


BRETON, André – Poin du Jour

Assim, passo a falar então de algumas obras produzidas por surrealistas.

Gosto muito do termo “coleccionador” pois implica uma divagação à custa duma viagem interior recorrendo ao estudo e à investigação do tema de interesse. São as viagens interiores que interessam aos surrealistas e a quem tem o surrealismo como projecto de vida. As outras viagens, as exteriores, não passam de distracções e de frivolidades à custa de introspecções simplesmente vangloriadas. Entendo que um coleccionador seja um viajante (às vezes um visionário) cuja embarcação tem um rumo contra a vida quotidiana. Neste sentido, parece-me capital ser o percurso natural dum coleccionador do tema surrealismo o de alguém que entenda e se interesse pelos alicerces estruturais da ideologia: o amor, a poesia e a liberdade. Estes vectores são os que norteiam e magnetizam toda a produção dos autores do movimento. Tratar de ir ao encontro das obras que fizeram a história do surrealismo? Este “posto entre dois impossíveis: o do início e o do fim” (Mário Cesariny in A Intervenção Surrealista).

Claro que existe toda uma produção que visa unicamente o mercado e que são os pesados tomos escritos por historiadores da literatura e da arte entre outros carreiristas do surrealismo. Repare, caro Rui Martins, que falei em mercado. Ao surrealismo não interessa o mercado. Claro que há os “colecionadores” com grande arcaboiço económico e que procuram unicamente as tiragens primitivas e reduzidas; muitos deles, algumas vezes, não passam de tecnocratas dos livros (de cheques, entenda-se). Mas repito que isto nada diz respeito ao surrealismo ou, quando muito, entenda-se que poderá ser uma actividade paralela ao surrealismo (recordo-me das magníficas colecções etnográficas que os surrealistas normalmente reúnem em suas casas). Podem-se adquirir com alguma facilidade nos livreiros as reedições das obras capitais para o entendimento do movimento surrealista. Falo das diversas edições de Os Manifestos do Surrealismo (saiu agora uma reedição muito boa realizada pela Letra Livre em Lisboa) e de toda a monumental obra de André Breton, de Benjamin Péret, entre outros, em edições de bolso, assim como de fac-símiles das revistas que na época eram os instrumentos essenciais para dar a conhecer as ideias, as produções e as participações no debate intelectual que suportaram a ideologia (a título de exemplo: La Revolution Surrealiste (2), Le Surrealisme au Service de la Revolution (3), Minotaure (4), VVV (5), etc…).



BRETON, André – Manifestos do Surrealismo. Lisboa, Livraria Letra Livre, 2016. 358 págs. Brochura. Tradução de Pedro Tamen. Revisão: Andreia Baleiras.

Da produção nacional, para usar como chaves mestras que abrem todas as suas portas, destaco os títulos seguintes: Intervenção Surrealista, As mãos na água a cabeça no mar e Textos de Afirmação e Combate do Movimento Surrealista Mundial de Mário Cesariny, os manifestos Erro Próprio de António Maria Lisboa e Afixação Proibida, os ensaios Para uma Cultura Fascinante e Luz Central ambos de Ernesto Sampaio, O Surrealismo na Poesia Portuguesa de Natália Correia, as antologias Grifo e Surrealismo/Abjeccionismo, as revistas Serpente e Pirâmide e, por fim, o catálogo do Museo do Chiado Surrealismo em Portugal 1934-1952 que, apesar do título, inumera de forma quase exaustiva a produção dos autores nacionais até à actualidade, esboçando muito ao de leve as suas relações com o movimento mundial.


 
CORREIA, Natália - O Surrealismo na Poesia Portuguesa


Surrealismo em Portugal 1934-1952

A partir destas publicações poderá o futuro coleccionador orientar-se com os autores que mais o interessam tendo uma visão generalista e “historiada”, desde as primeiras produções editoriais nacionais com as principais ideias e documentos. Claro que deverá estar o “coleccionador” atento à produção actual nacional e relacioná-la com a actualidade da diáspora que, desde as suas primeiras relações em 1967, através da revista A Phala (São Paulo, Brasil) – título e grafismo sorripiado por um editor nacional de poesia para o seu boletim em 1986 – encorpou e enalteceu o surrealismo mundial e cuja actividade desemboca hoje numa grande concentração de atenções e acções sobre o que se produz em Portugal.

Pede-me o bom amigo Rui Martins o parecer sobre ser uma “escola com bom mercado”. O surrealismo não é uma escola, muito menos um ismo, ou algo que possa ser engavetado numa cascata de vanguardas. É uma ideologia dotada de valores morais, intelectuais, políticos que determinam também comportamentos e exaltações, não olvidando nunca a recusa definitiva a qualquer doutrina, sistema ou poder instituído. Posto isto, dos mercados não sei aferir qualquer consideração. E quanto ao futuro, o Surrealismo é o que será.

Notas:

(1) Revista "Littérature" foi uma revista mensal de que se publicaram 33 números: 20 entre Março de 1919 e Agosto de 1921 e, posteriormente na “nouvelle série” mais 13 números entre Março de 1922 e Junho de 1924.


Capa do número 1 de Littérature (1919)




Algumas das capas de Francis Picabia da revista Littérature (1919-1924)

 Foi uma publicação vanguardista de poesia e ensaio, dirigido por André Breton, Louis Aragon e Philippe Soupault no seu primeiro ciclo; por Breton e Soupault para o início do segundo, quando Breton já tinha rompido com Tristan Tzara (1896-1963) e proclamado no n º 2 de Abril de 1922 o abandono do Dadaísmo; e, finalmente, só por Breton desde o n. º 4 de Novembro de 1922.

(2) La Révolution surréaliste  foi uma revista publicada em Paris pelos surrealistas num total de doze números entre 1924 e 1929.



Pouco tempo depois de publicar Le Manifeste du Surréalisme, André Breton publica o número inaugural La Révolution surréaliste a 1 de Dezembro de 1924.

(3) Le Surréalisme au service de la révolution foi uma revista editada pelo grupo surrealista em Paris, de 6 de Julho de 1930 até Maio de 1933.


Capa do número 1 de Le Surréalisme au service de la révolution (1930)

Foi o sucessor de La Révolution surréaliste (publicado em 1924-29) e antecedendo a publicação de Minotaure (1933 a 1939), após escrever o seu Sécond Manifeste du Surréalisme (1929),


BRETON, André – Sécond Manifeste du Surréalisme

A mudança de título reflecte uma mudança de linha devido a dissensões nascidas principalmente entre André Breton e Louis Aragon, por um lado, Robert Desnos e Emmanuel Berl, por outro lado. As suas divergências, para além de ciúmes por causa de uma mulher, Suzanne Muzard, partilhada durante cerca de dois anos pelo primeiro e o último, deviam-se ao papel dos artistas na revolução comunista e o questionar desta mesma posição causada pelo suicídio de Vladimir Maïakovski em 14 de Abril de 1930. A nova fórmula perde dois terços de seus leitores e as tiragens caiem para um total final de trezentos e cinquenta exemplares. 

O primeiro número de Le Surréalisme au service de la révolution foi publicado em Junho de 1930 (como já referi) e foi seguida por mais cinco números. Entre os seus colaboradores refiram-se: André Breton, Paul Éluard, René Crevel, Tristan Tzara, Salvador Dalí, René Char, Benjamin Péret, Louis Aragon e Luis Buñuel, entre outros.

(4) Minotaure é uma revista de inspiração surrealista que foi publicada entre 1933 e 1939, em Paris, sob o impulso conjunto de Albert Skira e Stratis Eleftheriadis, conhecido por Tériade.


Pablo Picasso, Minotaure no. 1, 1933.

A escolha do título mitológico de Minotaure inscreve-se bem na lógica dos surrealistas, que viam, através dos escritos de Freud uma maneira de fazer um retorno sobre um saber arcaico e impulsivo, o desafio era separar os ensinamentos da razão, ou mesmo dos grilhões do racionalismo.

Enquanto ser híbrido, entre homem e animal, o Minotauro, representa bem este conflito interno entre consciência e animalidade, moderação e monstruosidade.

Foram publicados 13 números, dos quais dois duplos: 3-4 e 12-13.


André Derain, Minotaure no. 3-4, 1933.

Na linha dos Cahiers d'art de Christian Zervos, consagrados à arte contemporânea, Minotaure quis ser uma revista de estética cuidada cujo objectivo era oferecer a um certo número de artistas uma tribuna literária, que publicava teses e obras poéticas, assim como que um espaço de visibilidade, reproduzindo as obras de pintura ou de escultura então ainda pouco conhecidas como as de Alberto Giacometti, Hans Bellmer, Paul Delvaux ou Roberto Matta.


André Masson, Minotaure no. 12-13, 1939

Rapidemente, André Breton e os dissidentes do surrealismo (André Masson et Georges Bataille à cabeça) são contactados pelos dois editores para acordarem um projecto comum apesar das dissensões; no dia 1 de Junho de 1933, ao fim de seis meses de discussões, aparece o primeiro número, com capa de Pablo Picasso.

Pouco a pouco, as publicações alargam os campos de análise da revista à música e à arquitectura, nomeadamente com artigos escritos pelos próprios artistas, como Tristan Tzara (D'un certain automatisme du goût, n.º 3-4), Salvador Dalí (De la beauté terrifiante et comestible de l'architecture Modern'style, nº 3-4) e Roberto Matta (Mathématiques sensibles - Architecture du temps, nº 11).

O preço de venda da revista subiu até aos 25 francos.

(5) VVV foi uma revista dedicada à divulgação do surrealismo, publicado na cidade de Nova York de 1942 até 1944.


Capa do último número desenhada por Roberto Matta.

Refugiado em Nova York desde o mês de Julho de 1941, André Breton tenta refazer um grupo surrealista com outros artistas, refugiados como ele nos EUA, e também com artistas americanos. Tenta editar uma revista conforme ao modelo de Minotaure a maior revista surrealista da época.

Breton, de nacionalidade francesa não podia ser o único director de uma revista, pelo que confiou o papel de director-adjunto ao pintor David Hare

O título VVV escolhido por André Breton é, para ele, uma referência às palavras 'Vitória', 'Ver' e 'Véu' tirados duma passagem “Victory over the forces of regression, View around us, View inside us [...] the myth in process of formation beneath the Veil of happening”  (“A vitória sobre as forças de regressão, ver em torno de nós, ver dentro de nós [...] o mito no processo de formação sob o véu do que acontece”)

Na sua redacção participaram pensadores e artistas como Aimé Césaire, Philip Lamantia, Robert Motherwell, Harold Rosenberg, Roger Caillois e Claude Lévi-Strauss.

Além disso, a revista foi ilustrada por pintores surrealistas como Giorgio de Chirico, Roberto Matta e Yves Tanguy.

A revista teve apenas quatro números em três edições. Na primeira edição de Junho de 1942, cujo conselho editorial é composto por Breton e Max Ernst, aparecem os Prolegômenos a um terceiro manifesto de Breton. A capa desta edição é realizada por Ernst.

No número duplo 2-3, publicado em Março de 1943 (Marcel Duchamp entra para o conselho editorial), sé publicado o texto de uma palestra dada por Breton na Universidade de Yale, em Dezembro de 1942: Surrealismo situação entre as duas guerras.



BRETON, André – Situation du surréalisme entre les deux guerres

No número 4, de Fevereiro de 1944, aparecem os textos de Benjamin Péret La Pensée est UNE et indivible e Pierre Mabille Le Paradis.

Espero que a leitura destes textos seja proveitosa para todos aqueles que se queiram iniciar nesta temática e trazer mais algumas informações a todos os estudiosos da mesma.

Para mim foi uma bela lição que me levou a “desbravar” mais algumas incógnitas e “introduzir-me nos meandros” da evolução, divergências entre os vários artistas envolvidos e ao conhecimento de muitos outros que me eram quase desconhecidos.

Saudações bibliófilas.


Fontes consultadas:

El rebost de Mr. Cairo
Minotaure (revue)
Minotaure (the nonist)
Mirador. Blog de Joan Miró, Cultura y Arte, por Antonio Boix.
La Révolution surréaliste
Le Surréalisme au service de la revolution
VVV

Sem comentários: