"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

sábado, 6 de agosto de 2016

Apontamentos Surrealistas – II: António Maria Lisboa – um poeta esotérico.


A expressão poética deve ser considerada, não como outro
modo de expressão do mundo não poeticamente expressável,
mas como a de outro mundo que, precisamente por ser outro,
do mesmo modo se não pode expressar.
EUDORO DE SOUSA, 1973


António Maria Lisboa

António Maria Lisboa nasceu em Lisboa a 1 de Agosto de 1928 e aqui faleceria, com apenas 25 anos, em 11 de Novembro de 1953.

Apesar da sua evidente preferência pelas artes e letras, o pai obrigou-o a frequentar o Ensino Técnico, que detestava.

A partir de 1947 forma, com Pedro Oom e Henrique Risques Pereira, um pequeno grupo à parte das actividades dos surrealistas, adoptando uma postura inconformista diante da transformação do surrealismo numa escola, no que acabaria por conduzir ao abjeccionismo, termo em que convergem os princípios da estética surrealista e uma postura poética de «insubmissão permanente ante os conceitos, regras e princípios estabelecidos».

Em Março de 1949, parte para Paris, onde permanece por dois meses. Datam provavelmente dessa curta estada os seus primeiros contactos com o Hinduísmo, a Egiptologia, e o Ocultismo em geral.

Escreveu Erro Próprio (1950), o principal manifesto do surrealismo português. Colaborou na revista Pirâmide publicada entre 1959 e 1960 e foi redactor de A Afixação Proibida, em colaboração com Mário Cesariny de Vasconcelos, amigo que o acompanhou até aos últimos dias de vida. Atormentado por dificuldades existenciais, morreu de tuberculose.



Pirâmide - 1959-1960. Lisboa; 3 números. - Brs. Colecção Completa. (1)
Revista surrealista, com origem na reunião de escritores e artistas no Café Gelo.
Cadernos de publicação não periódica organizados por Carlos Loures e Máximo Lisboa. Capa e direcção gráfica de Marcelo de Sousa.

Ilustrações hors-texte de Amadeo de Sousa Cardoso e D'Assumpção.
Colaboração literária de Raúl Leal, António Maria Lisboa, Herberto Helder, Luiz Pacheco, Mário Cesariny, Pedro Oom, Manuel de Castro, Virgílio Martinho, António José Forte e José Sebag, entre outros.

Exemplares acondicionados em bonita caixa inteira em chagrin, decorada com gravação a ouro na lombada e pasta.
Excelente exemplar.
Rara e Bonita Peça de Colecção.
©Gabriela Gouveia – Livros Antigos

Ainda que inserida no surrealismo, a obra de António Maria Lisboa (em parte publicada postumamente por Luiz Pacheco na editora Contraponto) caracteriza-se por uma faceta ocultista e esotérica que a torna muito particular.

Lisboa prefere intitular-se «metacientista», e não surrealista, porque, como argumenta numa carta a Mário Cesariny, a «Surrealidade não é só do Surrealismo, o Surreal é do Poeta de todos os tempos, de todos os grandes poetas».

Em 1977 foi publicado um volume com a sua obra completa organizado por Cesariny. Na introdução, este salientou não só o facto de a destruição dos manuscritos operada por familiares do poeta constituir uma perda irreparável para a história do surrealismo português, como o facto de a sua morte prematura parecer encimar um itinerário fulgurante ao longo do qual poesia e vida constituíram uma unidade indissolúvel.



07899-L. LISBOA (António Maria). — POESIA DE ANTÓNIO MARIA LISBOA. Texto estabelecido por Mário Césariny de Vasconcelos. Assirio & Alvim. (1977). 16,5x19 cm. 409-III págs. Brochura.

“O título de capa deste volume, Poesia de António Maria Lisboa, pareceu-me o mais ajustado à caracterização íntima e genérica do que nele se contém bem como às condições em que vem a lume. (...) Retomando: após a morte do A. M. L. entram no quarto do poeta: seu pai, que, como Kafka teria preferido ter um Filho Campista, e a sua irmã. Em matéria de textos, rasgam tudo o que apanham e deitam ao lixo (...). Levando ao lixo a obra do mais importante poeta nosso depois de Fernando Pessoa (...) Este livro sai titulado ‘Poesia’ e não ‘Obra Completa’ dele. Proíbe-o a possível existência de outros textos não reunidos aqui, extensos ou diminutos, recuperáveis ou não. (...) Divide-se pois este livro, mas só como dividem os dois movimentos da respiração em: I — A POESIA FEITA POR TODOS (...); II — O ESTILETE DA LUZ (...); Uma III parte publica CARTAS DE ANTÓNIO MARIA LISBOA quase totalmente inéditas (...)”

Livro polémico que faz E.M. Melo e Castro Director desta Colecção referir o seguinte: “Por não ter sido consultado pelos Editores Assirio e Alvim, quanto à inclusão deste volume de POESIA DE ANTÓNIO MARIA LISBOA na colecção Documenta Poética (que tem sido por mim dirigida encomendando as Obras aos seus Autores e com eles discutindo livremente quanto a matérias e a critérios), declino qualquer responsabilidade sobre o seu conteúdo que aliás hoje, 20 de Outubro de 1977, me não foi dado a conhecer, nem pelos editores, nem pelo Autor da Obra”.

Segue ainda uma nota do Editor: “O editor não subscreve parte das afirmações e acusações produzidas neste volume pelo responsável da edição, Mário Cesariny de Vasconcelos”.
Primeira edição.
©In-Libris

António Maria Lisboa foi com Mário Cesariny de Vasconcelos, um dos iniciadores do movimento surrealista em Portugal, tendo colaborado em vários Cadáveres Esquisitos e Diálogos Automáticos, nas sessões do J.U.B.A. [Jardim Universitário de Belas Artes] («O Surrealismo e o Seu Público em 1949») e nas exposições do Grupo Surrealista Dissidente.



O CadÁver – EsquiSito – (tiragem especial) e 1ª Exposição dos Surrealistas. Lisboa; Galeria Ottolini. Jornal do Gato nº 2, 1975. Com desenho original e assinado de Carlos Calvet. In-4º de 7 [1] fl. - Enc.
Duas Raríssimas Peças de Colecção.
Da tiragem especial numerada, de 20 exemplares, com um desenho original em extra texto, sendo este o nº 3.
Comemorativo do meio-século da Revolução Surrealista, com textos de Alexandre O`Neill, Mário Henrique Leiria, Cesariny, Nuno Calvet da Costa, Ernesto Sampaio, Raúl de Carvalho, João Rodrigues, etc.
Excelente exemplar, bonita encadernação inteira de percalina com gravação na pasta.
©Gabriela Gouveia – Livros Antigos


Mário Cesariny – Sem título, n.d:
Tempera de verniz sobre papel colado em tela 29,5x23 cm
(Colecção Antiks Design)

“O surrealismo português chegou tarde, como quase todas as nossas importações intelectuais. Surgiu nos anos 40, num meio literário grandemente dominado pelos neo-realistas.

Mário Cesariny, nos seus poemas e polémicas, combateu esse "realismo" estreito e dogmático, ao mesmo tempo que reabilitava o "real quotidiano" (que não confundiu nunca com a trivialidade). Foi o nosso único grande surrealista (não creio que Alexandre O'Neill fosse genuinamente surrealista, embora também fosse um poeta notável). [...]

Mas Mário Cesariny foi sobretudo um insubmisso. Combateu a ditadura intelectual das esquerdas e a ditadura política das direitas, usando a subtileza ou a farsa mais desabrida […]

Ele acreditava numa poesia da transfiguração, ligada às coisas mais concretas e mais viscerais, mas quase espiritualizada numa alquimia do verbo, na articulação do verso, na sintaxe e no vocabulário insólitos. Nas últimas décadas, abandonou a poesia pela pintura, […]
[Cf. MEXIA, Pedro – O sublime insubmisso in Diário de Notícias, Lisboa, 27 Nov. 2006]


António Maria Lisboa

A conversa desviou-se um pouco, pelo que voltemos a António Maria Lisboa.
Ele foi o principal redactor de A Afixação Proibida (1949) e escreveu Erro Próprio, principal manifesto do Surrealismo português.



A Afixação Proíbida: Primeira Comunicação; Um Gato Partiu à Aventura; Palaguín; Mãototem; As Cinco Letras em Vidro; Concreção de Saturno. Lisboa: Contaponto, 1949. [8] pp., [6] ff., e 1 ff. dactilogafada: il.; 250 mm. Brochado em caixa inteira de pele com títulos na lombada.

Possui o muito raro "Apêndice" em stencil, com assinatura manuscrita de Luiz Pacheco.

.¶ Primeira edição da primeira comunicação dos Surrealistas Dissidentes, lido no debate "O Surrealismo e o seu Público em 1949", a 6 de Maio no Jardim Universitário de Belas Artes por António Maria Lisboa. O texto foi mais tarde renegado por Pedro Oom e Henrique Risques Pereira como se depreende do "Apêndice" dactilografado e assinado por Luís Pacheco, o responsável pela edição.

 ¶ BIB: Alberto Serpa, 3; Poesia de António Maria Lisboa; O Surrealismo em Portugal, p. 51ss
©Nova Ecléctica – Leilão da Biblioteca de René Souto / Surrealismo Português (Colecção privada)

Em A Afixação Proibida, os autores (António Maria Lisboa e Mário Cesariny de Vasconcelos) expõem as suas concepções de poesia e as ligações que ela mantém com o poeta e a sociedade. É grande a influência dos manifestos franceses, quer na definição do conceito de surrealismo, quer em questões pontuais como a sexualidade ou a noção de acto gratuito.



Lisboa (António Maria) - Erro Próprio. Coimbra; Edição do Autor [Casa Minerva], 1952. In-8ºgr. de 30 [2] p. - Br.

Raríssima Primeira Edição. Brochado em caixa inteira de pele com títulos e ferros a ouro nas pastas e lombada; cremos que a este exemplar falta uma folha preliminar, mas consultada a bibliografia e dado o carácter sempre difícil deste tipo de publicações não nos foi possível assegurar quer uma, quer outra hipótese.



Principal Manifesto do Surrealismo Português.
Dedicado a Henrique Risques Pereira, Cesariny e Pedro Oom.
Excelente exemplar. Em magnífica caixa inteira em pele, gravada a ouro nas pastas e lombada.
©Gabriela Gouveia – Livros Antigos (Colecção privada)

 Em Erro Próprio (1950) são defendidos os princípios básicos que Breton expõe nos seus textos: a concepção do amor único e amor múltiplo; a ligação com os elementos primordiais da natureza; os fenómenos de hasard objectif (segundo a definição de André Breton em L'Amour Fou, «le hasard serait la forme de manifestation de la nécessité extérieure qui se fraie un chemin dans l' inconscient humain» [Paris, Gallimard/Folio, 1980, p. 31]); as noções de mulher-mãe, Deus, Pátria, Família, Idade do Ouro e conjugação do sonho e da realidade; a crença no ponto supremo; a posição perante a política europeia; a atracção irresistível pelo Ocultismo.



Lisboa (António Maria) – Ossóptico. Coimbra; Edição do autor, 1952. In-8ºgr. de 18 págs. inums. - Br.
Rara Primeira Edição.



Uma das primeiras obras do autor, de muito limitada tiragem.
Em magnífica caixa inteira em pele, gravada a ouro nas pastas e lombada.
Excelente exemplar.
©Gabriela Gouveia – Livros Antigos (Colecção privada)

Em 1952 publica Ossóptico, onde usa e abusa da imagem insólita que, por vezes, atinge as raias do inverosímil. A procura do estranho ou do original leva, frequentemente, a um fetichismo, muito querido da estética surrealista: «Eu abismo, eu cratera / inclinei-me e vi um espectáculo caprichoso: uma unha branca / uma unha branca assim despreocupada» (p. 148).



[17005] LISBOA. António Maria, 1928-1953 – Isso Ontem Único. Lisboa: Contraponto, 1953. In-4to. (23 cm) de 35, [1] pp. Br. Exemplar em bom estado de conservação, embora apresentando, como de costume, alguns picos de acidez. LG, 354.
©Livraria Artes e Letras / Luís Gomes

Isso Ontem Único (1953) é, na sua maior parte, constituído por textos em prosa, de características eminentemente surrealistas. É preconizada a unificação dos contrários e o fim da distinção Homem-Mulher, em busca do andrógino ideal.

É neste livro que António Maria Lisboa mais faz apelo aos fenómenos esotéricos e ocultistas. As ligações do poeta com o Cosmos são também exploradas, aspirando-se a «uma Existência Cósmica que não é uma síntese bio-psico-sociológica, mas Inorgânica Superior!» (p. 175).



Lisboa (António Maria) – Exercício Sobre O Sonho e a Vigília de Alfredo Jarry seguido de O Senhor Cágado e o Menino. Lisboa; "A Antologia em 1958". In-8º de 34 [2] p. - Br.

Primeira Edição.
Rara edição, de restrito número de exemplares.
Colecção "A Antologia em 1958 ", organizada por Mário Cesariny.
Excelente exemplar.
©Gabriela Gouveia – Livros Antigos

Em Exercício sobre o Sono e a Vigília de Alfred Jarry (publicado postumamente por Mário Cesariny de Vasconcelos na col. «A Antologia em 1958», juntamente com o texto O Senhor Cágado e o Menino), António Maria Lisboa insiste de novo nos fenómenos ocultistas e esotéricos, havendo aqui uma incidência obsessiva no problema da morte e dos mortos.

O Senhor Cágado e o Menino é uma espécie de autobiografia. Nesta obra, a união dos contrários deixa de ser enunciada teoricamente para surgir a nível da própria personagem principal. A forma de narrar desta sui generis autobiografia é bem surrealista, não lhe faltando nenhum dos ingredientes: sonho, humor, contradições, amor, exotismo.



[17016] LISBOA, António Maria, 1928-1953 – A verticalidade e a chave. s.l. (Lisboa). s.d. (195- ) : Contraponto.In-4º. (25 cm) de [8] pp. Br.
Bom exemplar. LG, 355.
©Livraria Artes e Letras / Luís Gomes

Três anos depois da morte do autor é que é publicado o texto A Verticalidade e a Chave, originariamente destinado a ser o prefácio da tradução de Cesariny de Une Saison en Enfer, de Rimbaud. Neste pequeno ensaio há particular incidência nos temas ocultistas (a estrela de sete pontas) e nos poderes infernais ou das trevas. António Maria Lisboa é, pois, um caso específico de surrealismo na literatura portuguesa. Quase toda a sua obra confere uma especial atenção à faceta ocultista e esotérica, faceta que não é muito vulgar nos restantes autores portugueses ligados ao movimento.


Lisboa (António Maria) - Uma Carta. Lisboa; Colecção Série Negra. A Antologia em 1958. In-4º de VIIIpágs. - Br.
Primeira Edição. 
Edição de uma importante carta do autor para Mário Cesariny. 
Sem data expressa. Recebido em 28-4-1950".
Excelente exemplar.
RARO.
©Gabriela Gouveia – Livros Antigos



Lisboa (António Maria) – Poesia. Lisboa: Guimarães Editores, 1962. In-8ºgr. de 70-[5]p. -Br.
Primeira Edição.
Integrada na colecção "Poesia e Verdade". Poesias seleccionadas por Mário Cesariny.
Excelente exemplar.
 Raro.
©Gabriela Gouveia – Livros Antigos

Em 1962 foi publicado um volume de Poesia seleccionada por Mário Cesariny de Vasconcelos, pela Guimarães Editores e incluído na colecção “Poesia e Verdade”.

E, em 1977, a Assírio & Alvim editaria a Poesia de António Maria Lisboa, inserida na colecção “Documenta Poética” nº 5.

Na introdução, este salientou não só o facto de a destruição dos manuscritos operada por familiares do poeta constituir uma perda irreparável para a história do surrealismo português, como o facto de a sua morte prematura parecer encimar um itinerário fulgurante ao longo do qual poesia e vida constituíram uma unidade indissolúvel. Escreveu ainda acerca de António Maria o seguinte: «Preocupado com uma verdadeira aproximação às culturas exteriores à tão celebrada civilização ocidental, há na sua poesia uma busca incessante de um futuro tão antigo como o passado. Pode, e decerto deve, ser considerado o mais importante poeta surrealista português, pela densidade da sua afirmação e na direcção desconhecida para que aponta».
[Cf. Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998]

Bibliografia:
Afixação Proibida (1949);
Erro Próprio (1950);
Ossóptico (1952);
Isso Ontem Único (Lisboa, 1953);
A Verticalidade e a Chave (Lisboa, 1956);
Exercícios sobre o Sonho e a Vigília de Alfred Jarry seguido de O Senhor Cágado e o Menino (Lisboa, 1958);
Uma Carta: Estrela da Ilha em Puros Ministros (Lisboa, 1958)
Poesia de António Maria Lisboa (org. Mário Cesariny, Lisboa, 1962)

Para os mais interessados deixo aqui este artigo, publicado na Delphica: letras & artes, que faz uma análise excelente da obra do poeta:



SILVA, Manuela Parreira da – António Maria Lisboa: poeta do poeta. Publicado por: Crescente Branco: Associação Cultural e Recreativa na Delphica: letras & artes. Nº 2 (2015).
Consultado em : 15-Jul-2016 (22:37:01)

Notas:

(1) PIRÂMIDE – “Cadernos de publicação não periódica organizados por Carlos Loures e por Máximo Lisboa. Vieram a lume de Fevereiro de 1959 a Dezembro de 1960, em Lisboa, totalizando três números.

Eis o depoimento de Carlos Loures: «A revista surgiu fundamentalmente devido à confluência de dois factores: por um lado, a existência de um grupo de artistas, poetas sobretudo, que se reunia diariamente no Café Gelo, no Rossio; por outro lado, a chegada, na Primavera de 1958, de dois jovens a esse grupo: o Máximo Lisboa e eu. Nesse ano, tínhamos publicado aquilo a que resolvêramos chamar um “poema - manifesto” - «O Menino que não Saltou a Cancela». Era uma coisa muito ingénua e incipiente, reflectindo exemplarmente a confusão que nos ia nas cabeças: leituras ávidas, umas apressadas, de Marx, Sartre, Breton, uma certa determinação antifascista e pouco mais.

Apesar de tudo, o opúsculo lá nos serviu de cartão de ingresso naquela tertúlia tão elitista como permissiva. No fundo bastava ser-se um pouco louco, e às vezes bastava fingi-lo, para se ser aceite.

«A figura dominante do grupo era, sem dúvida, o Mário Cesariny, que funcionava como elemento aglutinador de personalidades tão diferentes como Luiz Pacheco, Herberto Hélder, Raul Leal, Manuel de Castro, António José Forte, Ernesto Sampaio, João Rodrigues e tantos outros. O deus tutelar era o António Maria Lisboa, que morrera louco (2) anos antes (em 1953), deixando uma obra reduzida em extensão, mas plena de sugestões geniais e exemplares.


Desenho de António Maria Lisboa
©Instituto Camões

«Com a impaciência, o pragmatismo e o voluntarismo próprios de quem quer resolver a sua confusão interior pela ordenação do mundo exterior, nós, os recém-chegados ao grupo, entendemos que era importante que aquela reunião quotidiana de talentos se traduzisse em algo de concreto - uma revista. A ideia foi acolhida com alguma ironia pelos elementos mais parasitários do grupo e com entusiasmo pelos mais valiosos, nomeadamente por Cesariny, que sugeriu o título e que organizou verdadeiramente o primeiro número, o mais ortodoxo dos três que se publicaram.

«Dadas as vicissitudes de um grupo tão heterogéneo como aquele, onde a intriga representava um papel determinante, o segundo número, surgido em Junho de 1959 (quatro meses depois do primeiro), representava já uma contestação à “liderança” de Cesariny.

«O número 3, publicado em Dezembro de 1960, estava já quase totalmente esvaziado do inicial conteúdo surrealizante. É, no entanto, o mais autêntico, pois é o único em que ninguém nos “segurou a mão”. Aliás, foi já realizado fora do grupo do Gelo, com gente que parava uns metros adiante, no Café Restauração.»

No segundo número, foi publicada uma “Notícia”, que clarifica os vectores da revista: «A quem inquiriu das nossas intenções, fazemos saber que: da impossibilidade de se dizerem meia dúzia de coisas, com seriedade, desassombro e grandeza, nasceu a falta de provimento de lugares, claramente documentada na miséria moral e espiritual das caricaturas.

«À porta da sociedade, encontra-se a bandeira vermelha do leilão. Lá dentro os banqueiros levam à praça a alta dignidade do ser humano.

«A presente antologia agirá, supomos, mercê da sua colaboração, contra a depreciação dos primários valores».

Revista surrealista, apresentou colaboração literária notável. Eis alguns textos de relevo: Antonin Artaud, «O Teatro e a Ciência» (1); António Maria Lisboa, «Aviso a Tempo por Causa do Tempo» (1); Herberto Hélder, «Poema» (2); José Carlos González, «Poema-Colagem» (2); Luiz Pacheco, «O Surrealismo e Sátira» (1), «A Pirâmide e a Crítica» (2); Mário Cesariny, «Mensagem e Ilusão do Acontecimento Surrealista» (1); Pedro Oom, «Um Ontem Cão» (1); Petrus Ivanovitch Zagoriansky (Mário de Sá – Carneiro), «Além» (1P); Raul Leal, «Psaume» (1P); Virgílio Martinho, «A Propósito do Movimento 57» (2).
Apresentou ainda colaboração literária de Alfredo Margarido, Ángel Crespo, Edmundo Bettencourt e de Ernesto Sampaio, bem como reproduções de Amadeo de Souza-Cardoso e d’Assumpção”.
In PIRES, Daniel, Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974), volume II, 1º tomo, (A-P), Lisboa, Grifo, 1999, pp. 46.

Bibliografia: Guimarães, Fernandes, Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1985; A. M. (Alfredo Margarido), Recensão ao Nº.2, Diário Ilustrado (Lisboa), supl. «Diálogo» nº. 31 (1.8.1959); ROCHA, Clara, Revistas Literárias do Século XX em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1985.

Disponível (versão papel) nas seguintes bibliotecas (com respectiva cota):
BN (Biblioteca Nacional) P.P. 10616 V; CMLHT (Câmara Municipal de Lisboa - Hemeroteca Municipal) Res. 1.

(2) Sobre este ponto leiam-se em Clube dosPoetas Imortais: António Maria Lisboa (1928-1953)  os depoimentos de vários familiares que contradizem esta afirmação – a causa de óbito teria sido apenas a tuberculose (comum na época).



Lisboa (António Maria) - Erro Próprio seguido de Operação do Sol e de Alguns Personagens. Prefácio de Mário Cesariny de Vasconcelos. Lisboa, Guimarães Editores, 1962. 1.ª edição [nesta forma reunida]. 18,4 cm x 11,3 cm. 96 págs.

Exemplar em bom estado de conservação.

O “prefácio” de Cesariny é, na realidade, a reedição do texto de uma folha-volante distribuída em Maio de 1958, Autoridade e Liberdade São Uma e a Mesma Coisa, em resposta ao lema salazarista «liberdade suficiente – autoridade necessária».

Eis, pois, o mais alto valor do surrealismo em português. Se um manifesto dessa corrente vivencial existiu por cá, pode considerar-se-lo no verbo activo de Erro Próprio. A força poética de António Maria Lisboa, em 1977, aquando da reunião da sua Poesia num único volume, levada a cabo uma vez mais por Mário Cesariny, ainda fazia estragos entre os próceres da “democracia” nascente: não apenas o “director” da colecção que acolheu o livro – o obtuso e limitado E. M. de Melo e Castro –, mas também o editor!... (não se sabe se o Assírio, se o Alvim), fizeram imprimir junto com a ficha técnica notas em que, cada qual à sua triste figura, enjeitam a edição.
©Frenesi Loja


Bibliografia ainda consultada:

Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998
MEXIA, Pedro – O sublime insubmisso in Diário de Notícias, Lisboa, 27 Nov. 2006

Aqui vos deixo este esboço de apontamento, em jeito de homenagem, a um poeta rebelde e controverso, mas de inquestionável valor.

Muito mais se poderia, e deveria dizer (para isso também deixo algumas pistas...), mas pretendi ser o mais curto possível – que diga-se foi bastante difícil!

Saudações bibliófilas.

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