"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

quinta-feira, 11 de junho de 2009

João de Deus: "Cryptinas"


Trago-vos hoje, uma das mais raras obras de João de Deus: “Cryptinas”.
Não é, de modo algum o título mais conhecido deste autor, mas é um género da sua poesia pouco conhecida.


João de Deus (in O Ocidente, 1878)

João de Deus de Nogueira Ramos, mais conhecido por João de Deus, nasceu em s. Bartolomeu de Messines, a 8 de Março de 1830 e faleceu em Lisboa a 11 de Janeiro de 1896. Foi o quarto de catorze irmãos, filho de Isabel Gertrudes Martins e de Pedro José dos Ramos, modestos proprietários dali naturais e residentes.
O pai, comerciante, era conhecido entre os seus patrícios por Pedro Malgovernado, não que merecesse o cognome pelo mau governo da sua casa, mas pela facilidade em satisfazer as vontades dos filhos, com os quais gastava mais do que podia.
Foi um eminente poeta lírico, considerado à época o primeiro do seu tempo. O seu nome ficará para sempre ligado à “Cartilha Maternal”, que é uma obra de natureza pedagógica, publicada em 1876. que se destinava a servir de base a um método de ensino da leitura às crianças.



A “Cartilha Maternal” é uma das obras mais vezes reimpressas em Portugal, tendo sido extensivamente usada nas escolas portuguesas por quase meio século, ainda mantendo alguns seguidores.
Gozou de extraordinária popularidade, foi quase um culto, sendo ainda em vida objecto das mais variadas homenagens e, aquando da sua morte, foi sepultado no Panteão Nacional.
Foi considerado o poeta do amor.



DEUS, João de - CRYPTINAS (folha avulsa gratuita). Sem indicação de lugar nem data (188?).
In-8º de 16 págs. Encadernação meia francesa, em pele, dourado com dizeres e florões decorativos na lombada.
Trata-se de um folheto de poesia erótica.





As folhas do meu exemplar encontram-se bastante amarelecidas pela acção do tempo. Não se conhecem capas de brochura para este título. De toda a bibliografia de João de Deus, este título é o mais raro. Conheceu nova edição em 1981 pela editora &etc na colecção "Contra-Margem".




Do opúsculo, transcrevo ainda, este soneto:

“Arripiar Carreira”

Eu buscava editores portugueses
Quando supunha em Portugal leitores;
Mas hoje apenas leio aos meus amores
Os pobres versos que componho às vezes.

Por uma coisa que escrevia em mezes
Levar annos à busca de editores
Só me rendia ávidos credores,
E não me fazem conta taes freguezes.

Mudei de officio agora, os mais que apprendam:
Já ninguém de juízo me lastima,
De gastar tempo em coisas que não rendam.

Agora, sim, que o publico se anima!
Trabalho em pentes, que elas me encomendam,
E elles fornecem-me a matéria prima

Esta soneto, faz-nos meditar, para além da sua licenciosadade, no aspecto de a escrita não ser um bom “oficio”, como aconteceu com vários escritores desde sempre!

Traz-me à lembrança Balzac, que durante a noite, bebia as suas chávenas de café turco, bem forte e espesso, para se manter acordado e poder escrever...mas, de manhã, tinha os credores à porta!

Como complemento para uma melhor compreensão desta obra, deixo aqui alguns apontamentos, gentilmente facultados pelo amigo M. C., sobre as “Cryptinas”, extraídos da reedição do folheto na colecção “Contra-Margem” (nº8) da editora &etc.:
“... João de Deus Ramos, que ainda hoje se impõe na surpresa de muitos metros e rimas capazes, só eles, de nos fazer esquecer tanta “estrela”, tanto “perfume”. As “aves do céu”, as “ondas do mar” ... Foi boémio, desenhador e tocador de viola em Coimbra (num curso de Direito “tão demorado como a Guerra de Tróia” compara o próprio), construtor sereno de uma posteridade encenada atrás das suas barbas de bondade, de um campo de flores, da Cartilha (maternal) onde soletraram, respeitosas, algumas gerações de portugueses.
Lisboa – que adversa foi ao poeta e a muito o obrigou, inclusive a trabalhos de costura – fez-lhe uma Homenagem antes de ele morrer (não esquecendo o regresso a casa numa carruagem puxada a entusiasmo, por estudantes) e já morto ofereceu-lhe, de prémio, o Panteão dos Jerónimos.
Quanto ao seu lírico “ascende do peito redondo de Maria à curva do céu infinito”, diz avisadamente Afonso Lopes Vieira; ou então é “uma agua mineral com a sua agulha no sabor” e, “no meio da braçada mais fresca” revela “sempre uma crola capitosa de aroma seminal”, diz Vitorino Nemésio quando lhe estudo o erotismo. Erotismo neste poeta, de facto, ainda que distraído da Cultura e de olhar posto na Flora (“a memória é-me infiel desde que às folhas dos livros preferi as das árvores”, palavras suas, como estas: “mais coração e menos dicionário”, algures nas Prosas). Erotismo à medida do salão, ou, guinando para a brejeirice, a correr o risco de uma que outra alusão “mais directa”, ou palavra “crua” (exactamente nestas “Criptinas” que Teófilo Braga coligiu) e sem se atrever tanto que engane o juízo de Régio: “inocente, nenhum poeta amoroso o foi mais do que João de Deus”.
Esta musa underground condenou-a Gomes Monteiro, assim: “Que diria se, ao enaltecermos João de Deus, puséssemos de parte o Campo de Flores para citar apenas, como documento comprovativo do valor do poeta, o exíguo e felizmente ignorado folheto das suas poesias criptinas que nada aquecem nem arrefecem à glória do grande poeta lírico do séc. XIX?” - Poeta mais pobre, convenhamos; mas felizmente ignorado (nesta ou noutra faceta) só em Gomes Monteiro que gostava, talvez, da Censura. Ester de Lemos, essa é mais justa para a contingência de tal inspiração: “(...) declaradamente jocoso, satírico, João de Deus tem muito menos graça, perde a alada pureza habitual; cai às vezes na vulgaridade, na grosseira inestética – mas não deixa de se manter mergulhado nas correntes ancestrais da graça portuguesa, fábula sentenciosa, piada grossa, anedota de sabor popular, realista”.
Por isto mesmo as “Criptinas” agora reeditadas, na sua globalidade, desde a primeira divulgação que tiveram nos anos de fim do século. Todos referem figuras ou factos com certa popularidade em Lisboa, nos tempos do poeta. Procurar-se-á identificá-los, sempre, exceptuando os dois ou três casos resistentes às fontes consultadas.“
Saudações bibliófilas.

5 comentários:

Galderich disse...

El sobrenombre de "Pedro Malgovernado" por lo que veo fue de una sabia elección popular...

Diego Mallén disse...

¡Qué buena comparación la de Joao de Deus y Balzac! Ambos vivieron los mismos tiempos y tal vez tenían caracteres parecidos.

Balzac estaba enamorado del lujo, de las cosas bellas, pintura, libros, mobiliario y gastaba más de lo que ganaba en todas ellas.

Le gustaba encuadernar sus libros en los mejores artesanos de París. Nunca tuvo dinero pero vivió con intensa felicidad.

Saludos bibliófilos.

Rui Martins disse...

Galderich y Diego
Gracias por vuestros comentarios.
Diego referí Balzac, qui es un personaje fascinante como hombre, como un símbolo de la escrita, la cual no permite vivir solamente de ella, cuantos escritores lo lograran?
Lo siglo es el mismo pero los caracteres son un poco diferentes.

Para se comprender un poco mejor el contenido del libro, anidé un extracto de la introducción de la 2ª edición referida.

Teresa Muge disse...

Alguém, por favor, tem ideia da altura em que João de Deus terá escrito os Versos Quaesquer (pedidos com instância) e eventualmente a quem se dirigia ele nesses versos? Obrigada! (Havia na Transylvânia, um rei chamado Dencolhas...)

Fernando Lima disse...

Boa tarde
Acabo de adquirir um exemplar de Cryptinas ao qual falta a página 15 /16. Na net encontro mais que uma versão com poemas diferente e noutra paginação, o que indica haver não apenas uma edição anterior à de & etc de 1981.
O meu exemplar é igual ao seu. Quer indicar-me que poema ou parte de poema, vem inscrito na pág. 15 (de preferência com uma cópia).
Pode ser para: fsl1952@gmail.com.
Obrigado.
Fernando Lima