Depois e ter escrito alguns
textos sobre o Surrealismo, cada vez me apercebia mais de que os meus
conhecimentos sobre o tema eram manifestamente muito “básicos”, e isto para
utilizar uma expressão muito branda.
uma cidade de ideias
de Miguel de Carvalho
Como as dúvidas aumentavam e,
sobretudo o receio de estar a transmitir uma ideia errada sobre o tema, optei
por pedir o apoio a alguns livreiros-antiquários que me pareciam reunir as
condições para o fazer, atendendo aos seus conhecimentos bem como pela sua
especialização que se detecta nos catálogos das suas livrarias, sob a forma de
uma entrevista que fosse
simultaneamente esclarecedora sobre o tema e com se poderia formar uma colecção
sobre o surrealismo
Prontamente o meu prezado e
estimado amigo Miguel de Carvalho
se prontificou a responder.
E é precisamente o resultado dessa entrevista
que hoje vos apresento.
Miguel de Carvalho – livreiro-antiquário, artista e
poeta.
“Quem escreveu o artigo foi o miguel-autor e não o
livreiro livreiro, embora o miguel-autor tenha sido aconselhado pelo
miguel-livreiro.
O que quis salientar foi o que realmente interessa
a quem entra neste tema
Os livros pelos quais deve consciencializar, o
resto é paisagem... o mercado, o futuro, etc ...”
(Miguel de
Carvalho)
Mas obviamente que aquilo que se irá ler é de uma importância capital para um principiante – que é o meu caso – e um alerta para os erros que
se poderão cometer .
“Lembre-se que quem começa, em
especial um menos jovem, deve começar pelo mais acessível para imbuir-se do
espírito e não atacar logo pela via do mais caro, pois eu conheço [algumas] pessoas que se diziam bibliófilas do
surrealismo com muito dinheiro que se limitaram a comprar apenas como mercado
de bolsas de valores.
[Nomeadamente uma delas] …entendia bem o espírito, mas faltava ali
algo que ele não dava importância: os textos essenciais do movimento em
colaboração com os estrangeiros...que são ESSENCIAIS... as revistam mundiais
onde colaboraram os portugueses são CAPITAIS.”
(Miguel de
Carvalho)
Claro que só um surrealista assumido e bem imbuído neste espírito
poderia ter a frontalidade de responder da forma como o faz.
Monólogos de perder a vista
(Santuário de Nossa Senhora dos Remédios)
de Miguel de Carvalho
E, a este propósito, relembro o seu livro mais recente – Neste estabelecimento não há lugares sentados
– que é de uma excepcional beleza poética (na opinião do rui-leitor, nas aqui o
rui-bibliófilo não pode deixar de alertar para o facto de o livro se ir tornar numa
raridade, pois teve apenas uma tiragem de 250 exemplares (dos quais 15
numerados, assinados, acompanhados pelas três fotografias originais do livro e
acondicionado em estojo próprio)
Carvalho,
Miguel de – Neste estabelecimento não há
lugares sentados. Lisboa, Alambique, 2016. 75 (2) págs. Brochura. Arranjo
gráfico de Inês Mateus.
Antes de transcrever a
entrevista, quero deixar claro, que todas
as notas são da minha inteira responsabilidade, tendo por objectivo
facilitar o conhecimento dos textos e das revistas referidos (ainda quede alguns
já tenha aqui falado), pois como principiante não tinha uma noção muito
correcta da sua sequência e conteúdos (mais uma das minhas achegas
histórico-bibliográficas).
Vamos então ler a tal entrevista!
Imagine que sou um
coleccionador (não pense em mim concretamente, mas num mais jovem com mais
tempo pela frente para reunir uma colecção bem representativa) que se quer
embrenhar na literatura surrealista, que autores e/ou livros lhe sugeria?
A qual das gerações daria
preferência?
Na sua opinião é uma escola com
bom mercado e, como tal difícil, ou poderá ser de aquisição relativamente
acessível? (claro que esta questão é de resposta dúbia pois depende de autor
para autor…senão menos de obra para obra)
Como interveniente activo
(editor e escritor/artista plástico) no processo surrealista com antevê o seu
futuro?
A
“literatura surrealista” é um termo que me incomoda de alguma maneira pois,
além de estarmos a rotular um tipo de cultura, estamos a associá-la através do
uso de um adjectivo a uma actividade libertadora que, por si só, recusa o seu
encontro com a Literatura - “um dos mais tristes caminhos que conduz a tudo”
(André Breton in Manifestos do
Surrealismo).
André Breton
A
verdadeira voz surrealista privilegia os aspectos anti-literários das
actividades literárias. Lembro que os primeiros textos dos surrealistas foram
publicados na revista Litterature (1919-1924) (1), título e termo que, por antífrase, serviu para
entreter a confusão num meio onde a revista foi o órgão por excelência do
dadaísmo parisiense. Deste modo, deu-se à altura lugar ao débito torrencial da
escrita automática com o intuito de “limpar definitivamente da imundice
literária” (André Breton in Point du Jour).
BRETON,
André – Poin du Jour
Assim,
passo a falar então de algumas obras produzidas por surrealistas.
Gosto
muito do termo “coleccionador” pois implica uma divagação à custa duma viagem
interior recorrendo ao estudo e à investigação do tema de interesse. São as
viagens interiores que interessam aos surrealistas e a quem tem o surrealismo
como projecto de vida. As outras viagens, as exteriores, não passam de distracções
e de frivolidades à custa de introspecções simplesmente vangloriadas. Entendo
que um coleccionador seja um viajante (às vezes um visionário) cuja embarcação
tem um rumo contra a vida quotidiana. Neste sentido, parece-me capital ser o
percurso natural dum coleccionador do tema surrealismo o de alguém que entenda e
se interesse pelos alicerces estruturais da ideologia: o amor, a poesia e a
liberdade. Estes vectores são os que norteiam e magnetizam toda a produção dos
autores do movimento. Tratar de ir ao encontro das obras que fizeram a história
do surrealismo? Este “posto entre dois impossíveis: o do início e o do fim”
(Mário Cesariny in A Intervenção Surrealista).
Claro
que existe toda uma produção que visa unicamente o mercado e que são os pesados
tomos escritos por historiadores da literatura e da arte entre outros
carreiristas do surrealismo. Repare, caro Rui Martins, que falei em mercado. Ao
surrealismo não interessa o mercado. Claro que há os “colecionadores” com
grande arcaboiço económico e que procuram unicamente as tiragens primitivas e
reduzidas; muitos deles, algumas vezes, não passam de tecnocratas dos livros
(de cheques, entenda-se). Mas repito que isto nada diz respeito ao surrealismo
ou, quando muito, entenda-se que poderá ser uma actividade paralela ao
surrealismo (recordo-me das magníficas colecções etnográficas que os
surrealistas normalmente reúnem em suas casas). Podem-se adquirir com alguma
facilidade nos livreiros as reedições das obras capitais para o entendimento do
movimento surrealista. Falo das diversas edições de Os Manifestos
do Surrealismo (saiu agora uma reedição muito boa realizada pela Letra
Livre em Lisboa) e de toda a monumental obra de André Breton, de Benjamin
Péret, entre outros, em edições de bolso, assim como de fac-símiles das
revistas que na época eram os instrumentos essenciais para dar a conhecer as
ideias, as produções e as participações no debate intelectual que suportaram a
ideologia (a título de exemplo: La Revolution
Surrealiste (2), Le Surrealisme au Service de la Revolution (3), Minotaure (4), VVV (5), etc…).
BRETON,
André – Manifestos do Surrealismo. Lisboa,
Livraria Letra Livre, 2016. 358 págs. Brochura. Tradução de Pedro Tamen.
Revisão: Andreia Baleiras.
Da
produção nacional, para usar como chaves mestras que abrem todas as suas
portas, destaco os títulos seguintes: Intervenção Surrealista, As mãos na água
a cabeça no mar e Textos de Afirmação e Combate do Movimento Surrealista
Mundial de Mário Cesariny, os
manifestos Erro Próprio de António Maria
Lisboa e Afixação Proibida, os ensaios Para uma
Cultura Fascinante e Luz Central ambos de Ernesto
Sampaio, O Surrealismo na Poesia Portuguesa de Natália Correia, as antologias Grifo e Surrealismo/Abjeccionismo, as revistas Serpente e Pirâmide
e, por fim, o catálogo do Museo do
Chiado Surrealismo em Portugal 1934-1952 que, apesar do título, inumera de
forma quase exaustiva a produção dos autores nacionais até à actualidade,
esboçando muito ao de leve as suas relações com o movimento mundial.
CORREIA,
Natália - O Surrealismo na Poesia
Portuguesa
Surrealismo em Portugal 1934-1952
A
partir destas publicações poderá o futuro coleccionador orientar-se com os
autores que mais o interessam tendo uma visão generalista e “historiada”, desde
as primeiras produções editoriais nacionais com as principais ideias e
documentos. Claro que deverá estar o “coleccionador” atento à produção actual
nacional e relacioná-la com a actualidade da diáspora que, desde as suas primeiras
relações em 1967, através da revista A
Phala (São Paulo, Brasil) – título e grafismo sorripiado por um editor nacional
de poesia para o seu boletim em 1986 – encorpou e enalteceu o surrealismo
mundial e cuja actividade desemboca hoje numa grande concentração de atenções e
acções sobre o que se produz em Portugal.
Pede-me
o bom amigo Rui Martins o parecer sobre ser uma “escola com bom mercado”. O surrealismo
não é uma escola, muito menos um ismo, ou algo que possa ser engavetado numa cascata
de vanguardas. É uma ideologia dotada de valores morais, intelectuais,
políticos que determinam também comportamentos e exaltações, não olvidando
nunca a recusa definitiva a qualquer doutrina, sistema ou poder instituído.
Posto isto, dos mercados não sei aferir qualquer consideração. E quanto ao
futuro, o Surrealismo é o que será.
Notas:
(1)
Revista "Littérature"
foi uma revista mensal de que se publicaram 33 números: 20 entre Março de 1919
e Agosto de 1921 e, posteriormente na “nouvelle
série” mais 13 números entre Março de 1922 e Junho de 1924.
Capa do número 1 de Littérature (1919)
Algumas das capas de Francis Picabia da revista
Littérature (1919-1924)
Foi uma publicação vanguardista de poesia e ensaio, dirigido por André Breton, Louis Aragon
e Philippe Soupault no seu primeiro
ciclo; por Breton e Soupault para o início do segundo,
quando Breton já tinha rompido com Tristan
Tzara (1896-1963) e proclamado no n º 2 de Abril de 1922 o abandono do Dadaísmo; e, finalmente, só por Breton
desde o n. º 4 de Novembro de 1922.
(2) La Révolution surréaliste foi uma revista publicada em Paris pelos surrealistas num
total de doze números entre 1924 e 1929.
Pouco tempo depois de publicar Le Manifeste du Surréalisme, André Breton publica o número inaugural La Révolution surréaliste
a 1 de Dezembro de 1924.
(3) Le Surréalisme
au service de la révolution foi uma revista editada pelo grupo
surrealista em Paris, de 6 de Julho de 1930 até Maio de 1933.
Capa do número 1 de Le Surréalisme au service de la révolution (1930)
Foi o sucessor de La Révolution
surréaliste (publicado em 1924-29) e antecedendo a publicação de
Minotaure
(1933 a 1939), após escrever o seu Sécond
Manifeste du Surréalisme (1929),
BRETON, André – Sécond Manifeste du Surréalisme
A mudança de título reflecte uma
mudança de linha devido a dissensões nascidas principalmente entre André Breton e Louis Aragon, por um lado, Robert
Desnos e Emmanuel Berl, por
outro lado. As suas divergências, para além de ciúmes por causa de uma mulher, Suzanne Muzard, partilhada durante
cerca de dois anos pelo primeiro e o último, deviam-se ao papel dos artistas na
revolução comunista e o questionar desta mesma posição causada pelo suicídio de
Vladimir Maïakovski em 14 de Abril
de 1930. A nova fórmula perde dois terços de seus leitores e as tiragens caiem
para um total final de trezentos e cinquenta exemplares.
O primeiro número de Le Surréalisme
au service de la révolution foi publicado em Junho de 1930 (como
já referi) e foi seguida por mais cinco números. Entre os seus colaboradores
refiram-se: André Breton, Paul Éluard, René Crevel, Tristan Tzara,
Salvador Dalí, René Char, Benjamin Péret,
Louis Aragon e Luis Buñuel, entre outros.
(4)
Minotaure
é uma revista de inspiração surrealista que foi publicada entre 1933 e 1939, em
Paris, sob o impulso conjunto de Albert
Skira e Stratis Eleftheriadis, conhecido
por Tériade.
Pablo Picasso, Minotaure no. 1, 1933.
A escolha do título mitológico de
Minotaure
inscreve-se bem na lógica dos surrealistas, que viam, através dos escritos de
Freud uma maneira de fazer um retorno sobre um saber arcaico e impulsivo, o
desafio era separar os ensinamentos da razão, ou mesmo dos grilhões do
racionalismo.
Enquanto ser híbrido, entre homem
e animal, o Minotauro, representa bem este conflito interno entre consciência e
animalidade, moderação e monstruosidade.
Foram publicados 13 números, dos
quais dois duplos: 3-4 e 12-13.
André Derain, Minotaure no. 3-4, 1933.
Na linha dos Cahiers d'art de Christian Zervos, consagrados à arte
contemporânea, Minotaure
quis ser uma revista de estética cuidada cujo objectivo era oferecer a um certo
número de artistas uma tribuna literária, que publicava teses e obras poéticas,
assim como que um espaço de visibilidade, reproduzindo as obras de pintura ou
de escultura então ainda pouco conhecidas como as de Alberto Giacometti, Hans
Bellmer, Paul Delvaux ou Roberto Matta.
André Masson, Minotaure no. 12-13, 1939
Rapidemente, André Breton e os dissidentes do surrealismo (André Masson et Georges
Bataille à cabeça) são contactados pelos dois editores para acordarem um
projecto comum apesar das dissensões; no dia 1 de Junho de 1933, ao fim de seis
meses de discussões, aparece o primeiro número, com capa de Pablo Picasso.
Pouco a pouco, as publicações
alargam os campos de análise da revista à música e à arquitectura,
nomeadamente com artigos escritos pelos próprios artistas, como Tristan Tzara (D'un
certain automatisme du goût, n.º 3-4), Salvador Dalí (De la beauté
terrifiante et comestible de l'architecture Modern'style, nº 3-4) e Roberto Matta (Mathématiques
sensibles - Architecture du temps, nº 11).
O preço de venda da revista subiu
até aos 25 francos.
(5) VVV
foi uma revista dedicada à divulgação do surrealismo, publicado na cidade de Nova
York de 1942 até 1944.
Capa do último número desenhada por Roberto Matta.
Refugiado em Nova York desde o
mês de Julho de 1941, André Breton
tenta refazer um grupo surrealista com outros artistas, refugiados como ele nos
EUA, e também com artistas americanos. Tenta editar uma revista conforme ao
modelo de Minotaure
a maior revista surrealista da época.
Breton, de nacionalidade francesa
não podia ser o único director de uma revista, pelo que confiou o papel de
director-adjunto ao pintor David Hare.
O título VVV escolhido por
André Breton é, para ele, uma referência às palavras 'Vitória', 'Ver' e 'Véu' tirados
duma passagem “Victory over the forces of
regression, View around us, View inside us [...] the myth in process of
formation beneath the Veil of happening” (“A
vitória sobre as forças de regressão, ver em torno de nós, ver dentro de nós
[...] o mito no processo de formação sob o véu do que acontece”)
Na sua redacção participaram
pensadores e artistas como Aimé Césaire,
Philip Lamantia, Robert Motherwell, Harold Rosenberg, Roger
Caillois e Claude Lévi-Strauss.
Além disso, a revista foi ilustrada por
pintores surrealistas como Giorgio de
Chirico, Roberto Matta e Yves Tanguy.
A revista teve apenas quatro
números em três edições. Na primeira edição de Junho de 1942, cujo conselho
editorial é composto por Breton e Max Ernst, aparecem os Prolegômenos a um terceiro manifesto de Breton. A capa desta edição é realizada
por Ernst.
No número duplo 2-3, publicado em
Março de 1943 (Marcel Duchamp entra
para o conselho editorial), sé publicado o texto de uma palestra dada por
Breton na Universidade de Yale, em Dezembro de 1942: Surrealismo
situação entre as duas guerras.
BRETON,
André – Situation du surréalisme entre les deux guerres
No número 4, de Fevereiro de 1944, aparecem os
textos de Benjamin Péret La Pensée est UNE et indivible e Pierre Mabille Le
Paradis.
Espero que a leitura destes textos
seja proveitosa para todos aqueles que se queiram iniciar nesta temática e
trazer mais algumas informações a todos os estudiosos da mesma.
Para mim foi uma bela lição que
me levou a “desbravar” mais algumas
incógnitas e “introduzir-me nos meandros”
da evolução, divergências entre os vários artistas envolvidos e ao conhecimento
de muitos outros que me eram quase desconhecidos.
Saudações bibliófilas.
Fontes consultadas:
El rebost de Mr. Cairo
Minotaure (revue)
Minotaure (the nonist)
Mirador. Blog de Joan Miró, Cultura y Arte, por Antonio Boix.
La Révolution surréaliste
Le Surréalisme au service de la revolution
VVV