"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

sexta-feira, 3 de abril de 2015

José Duro – um esboço biobibliográfico

Para uma amiga distante,
mas sempre presente


José Duro

José Duro, de quem hoje ninguém fala nem sequer recorda o nome, não foi um poeta consensual. Alguns riram-se mesmo dos seus poemas. É uma consequência, talvez, de ser demasiado ingénuo e autêntico, ao mesmo tempo que artificial e empolado.

Outros porém respeitaram a obra deste sequaz satânico e decadente, que bebeu em António Nobre (tísico como ele próprio) o gosto por cadaverosidades, em Guerra Junqueiro o uso do sarcasmo, da grandiloquência e do sensacionalismo, e em Charles Baudelaire o engodo pelas Flores do Mal.
Por alguma razão a obra conseguiu chegar à décima-primeira edição.

Comprar livros é o objectivo de qualquer bibliófilo e, se estes forem raros melhor ainda, mas só alguns gostam de partilhar o resultado dos dias/anos de procura e dos esforços da sua paixão.

Para alguns tão importante como a possessão dessas preciosidades é ainda maior o gosto de transmitir aos mais novos o seu significado literário e da sua importância bibliófila.

Com estes modestos, e sempre incompletos apontamentos, quero contribuir para essa divulgação.
Em relação a este autor estamos perante um “ilustre desconhecido”, como já acima se disse, dos neófitos nestas andanças, mas bem conhecido do mundo da bibliofilia.


A paixão da procura bibliófila

Espero que o meu contributo seja de algum proveito e interesse.

 “Fel é uma espécie de diário poético dos últimos dias de José Duro. O poema Doente, que encerra o livro, é uma longa confissão de amargura e desespero de um jovem que sabe já que a morte está muito próxima”Ademar Santos.

O poema Doente, que encerra o seu livro Fel, é uma longa confissão de amargura e desespero dum jovem que sabe já que a morte está muito próxima. Transcrevo a parte final desse mesmo poema (numa ortografia actualizada):

Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d'olhar cálido...
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: - coitado, está por pouco!...

Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.

Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço...

Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.

E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar...

São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Ou como a aspiração de Charles Baudelaire.

Apraz-me o simbolismo ingénito das coisas...
E aos lábios da Mulher, a desfazer-se em beijos,
Prefiro os lábios maus das negregadas loisas,
Abrindo num ancelar de mórbidos desejos.

E é vão que medito e é em vão que sonho:
Meu coração morreu, minha alma é quase morta...
Já sinto emurchecer no crânio a flor do Sonho,
E oiço a Morte bater, sinistra, à minha porta...

Estou farto de sofrer, o sofrimento cansa,
E, por maior desgraça e por maior tormento,
Chego a julgar que tenho - estúpida lembrança -
Uma alma de poeta e um pouco de talento!

A doença que me mata é moral e física!
De que me serve a mim agora ter esperanças,
Se eu não posso beijar as trémulas crianças,
Porque ao meu lábio aflui o tóxico da tísica?

E morro assim tão novo! Ainda não há um mês,
Perguntei ao Doutor: - Então?...- Hei-de curá-lo...
Porém já não me importo, é bom morrer, deixá-lo!
Que morrer - é dormir... dormir... sonhar talvez...

Por isso irei sonhar debaixo dum cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos...
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua aspiração e tristes os seus versos!
— José Duro, Doente, in Fel.


José Duro aos 16 anos

José António Duro (Portalegre, 22 de Outubro de 1875 — Lisboa, 18 de Janeiro de 1899), mais conhecido como José Duro, foi um poeta decadentista (1) português.

Era filho de mãe solteira, a operária de lanifícios Maria da Assunção Cardoso, e do industrial José António Duro.


Portalegre

Os seus versos mais antigos foram escritos em Portalegre, uns dias depois do seu vigésimo aniversário (1895), e intitularam-se A Morte. É um soneto de molde anteriano, cheio de desesperos insanáveis, expressos num diálogo tétrico, revela já o temperamento melancólico, pessimista e mórbido do autor
Em 1896 publicou um folheto de versos numa tipografia da sua terra: Flores.


DURO, José – Flores (2ª edição)

Enquanto aluno da Escola Politécnica de Lisboa, começou a frequentar os cafés e rodas literárias em que se discutia Vítor Hugo, Baudelaire, Antero, Junqueiro, Cesário Verde e os jovens simbolistas de Coimbra, principalmente António Nobre. Aí deu largas à sua precocidade melancólica, servida por uma sensibilidade aguda e mórbida, nutrida por leituras anárquicas e sombrias.


Antiga sede da Escola Politécnica de Lisboa.

Este temperamento melancólico, pessimista e mórbido do autor, será ainda mais marcado na sua obra mais conhecida, Fel, livro escrito em 1898, quando a tuberculose de que sofria há muito e que provavelmente teve muita influência no seu carácter sombrio, anunciava a sua morte certa e iminente, que veio a acontecer apenas alguns dias depois da sua publicação.

Esses poemas reflectem várias influências unificadas pelos temas de Charles Baudelaire, postos em moda em Portugal por Guilherme de Azevedo e Gomes Leal: a prostituição, o tédio, o corvo fatídico de Poe, o coveiro e os vermes da cova, a tuberculose, a desesperança.


BAUDELAIRE, Charles – Les Fleurs du Mal (1ª edição de 1857) (2)

A sinceridade de José Duro, pobre e doente, com uma mocidade gasta entre a Politécnica, o café Gelo e a gare de Portalegre, supre o que falta à sua poesia em verdadeira originalidade e consistência. «Livro de um incoerente», como ele lhe chama, o Fel é a simpática mensagem duma vida ceifada, que se traduz numa versificação cheia de reminiscências alheias, mas natural e animada.

José Duro, conta Sampaio, morreu "numa chuviscosa e fria manhã de Janeiro de 1899". A primeira edição de Fel aterrara nos escaparates dos livreiros uns dias antes.


DURO, José – Fel. (1ª edição)
Lisboa; Empreza Litteraria Lisbonense. Libanio & Cunha - Editores, 1898.
In-8º de 90 [6] p.

No livro que recorda os esquecidos do seu tempo, Mayer Garção, Os Esquecidos, Empresa Editora A Peninsular, 1924, escreveum texto com muito interesse sobre o "mais esquecido dos esquecidos": José Duro.



44 – Garção, Francisco Mayer – OS ESQUECIDOS. Lisboa. Empresa Editora e de Publicidade a Peninsular. 1924. 157 págs. 18.5cm. Brochado.
Interessante obra onde é traçado o perfil de diversas figuras como “Beldemónio” (Eduardo Barros Lobo), Costa Alegre, Leite Bastos, José Newton, Alfredo Serrano, entre outros. Contém diversas referências bibliográficas.
©Colofon Livros Antigos

Um dia José Duro procura Mayer Garção porque queria imprimir o seu segundo livro e, antes de o publicar, gostava que alguém o lesse.

Eis o testemunho de Mayer Garção desse encontro: “Encontrei-me com José Duro na cervejaria do Gelo. Não esquecerei nunca a febre que reluzia nos olhos desse rapaz, em cujas faces se descortinavam já os estigmas da morte próxima.

Sentámo-nos a uma mesa, e, com voz rouca, durante longo tempo, ouvi a leitura do seu manuscrito, entoada com estranha paixão. Os criados perpassavam, servindo fregueses, àquela hora ainda raros, e, a essa banal mesa de café, eu assistia ao desenrolar de imagens, escutava a música dos ritmos, via desfilar as visões daquele espírito amargurado.

(…) ali, aquele poeta desgraçado e amargo despenhava perante mim os diamantes do seu espírito, porventura imperfeitamente lapidados, mas dum brilho, duma pureza, duma água tão cristalina que se diriam porvir da terra virgem, aliando à cor do sol o perfume das flores silvestres.

Nunca ouvi ler assim, nem desejo tornar a ouvir ler assim. José Duro, com a sua voz rouca, quase não fazia uma pausa. OH! Rapidez terrível, aflitiva da sua leitura, a ânsia a exprimir em gritos o fruto da sua paixão! Dir-se-ia que esse rapaz, tão novo, receava não ter vida para chegar ao fim, e por isso traduzia a correr, a marcha final dos seus sonhos, na galopada frenética das suas palavras. O livro que se intitula Fel, é publicado na imprensa Libânio da Silva”


As flores na natureza...o fim de um curto precurso
©Facebook

Quando o livro é publicado, O poeta quase não tem tempo para o ver ou para ler as críticas: três semanas depois, José Duro morre. Tuberculoso, como tantos poetas do seu tempo. Basta citar António Nobre e Cesário Verde.

"Mas esses tinham tido o seu momento de glória, foram apreciados, conhecidos".

Continua Mayer Garção:
“O pobre José Duro ignorado vivera sempre. O seu livro era sua estreia e ele morreu com a desoladora impressão de que ninguém o lera ou apreciara. Não conheço de todos os esquecidos nenhum mais esquecido. E, todavia, a sua memória há-de reflorir. Nessa magnífica, angustiosa e suprema poesia Doente, com que o Fel termina, uma quadra fecha o testamento do poeta.

"Por isso irei sonhar debaixo de um cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos…
O poeta nunca morre, embora seja agreste
A sua inspiração, e tristes os seus versos!"


Mais um poeta "esquecido", mas na minha opinião, que justifica uma leitura atenta. Neste breve esboço espero ter despertado a vossa curiosidade para a sua “descoberta”.

Bibliofilamente é bastante procurado e, quando em excelente estado de conservação (o que é muito raro): com as capas de brochura e respectivas badanas integras e preservadas atinge valores interessantes. (3)


Notas:

(1) Decadentismo é uma corrente artística, filosófica e, principalmente, literária que teve a sua origem na França nas duas últimas décadas do século XIX e se desenvolveu por quase toda Europa e alguns países da América. A denominação "decadentismo", que tinha, a princípio, um sentido depreciativo e irónico, dado pela crítica acadêmica, terminou por ser adoptada pelos próprios participantes do movimento.

(2) Obra importante no simbolismo e movimentos modernistas. O assunto destes poemas prende-se com temas relativos à decadência e erotismo.

(3) No último leilão realizado pela Livraria Manuel Ferreira da Biblioteca de Ramiro Teixeira, foi vendido um exemplar por 370.00€ (valor de martelo a que se tem de acrescentar 15.99%)

Fontes consultadas:

ABNOXIO
 Biblioteca Digital do Alentejo
 José Duro – Wikipedia
 Falcão de Jade: O poeta José Duro, um grande esquecido!
Versos que lembram (5) – José Duro

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