Para uma amiga distante,
mas sempre presente
José Duro
José Duro, de quem hoje ninguém fala nem sequer recorda o nome, não
foi um poeta consensual. Alguns riram-se mesmo dos seus poemas. É uma
consequência, talvez, de ser demasiado ingénuo e autêntico, ao mesmo tempo que
artificial e empolado.
Outros porém respeitaram a obra
deste sequaz satânico e decadente, que bebeu em António Nobre (tísico como ele próprio) o gosto por
cadaverosidades, em Guerra Junqueiro
o uso do sarcasmo, da grandiloquência e do sensacionalismo, e em Charles Baudelaire o engodo pelas Flores do Mal.
Por alguma razão a obra conseguiu
chegar à décima-primeira edição.
Comprar livros é o objectivo de
qualquer bibliófilo e, se estes forem raros melhor ainda, mas só alguns gostam
de partilhar o resultado dos dias/anos de procura e dos esforços da sua paixão.
Para alguns tão importante como a
possessão dessas preciosidades é ainda maior o gosto de transmitir aos mais
novos o seu significado literário e da sua importância bibliófila.
Com estes modestos, e sempre
incompletos apontamentos, quero contribuir para essa divulgação.
Em relação a este autor estamos
perante um “ilustre desconhecido”, como já acima se disse, dos neófitos nestas
andanças, mas bem conhecido do mundo da bibliofilia.
A paixão da procura bibliófila
Espero que o meu contributo seja
de algum proveito e interesse.
“Fel é uma espécie de diário poético dos
últimos dias de José Duro. O poema Doente,
que encerra o livro, é uma longa confissão de amargura e desespero de um jovem
que sabe já que a morte está muito próxima” — Ademar Santos.
O poema Doente,
que encerra o seu livro Fel, é uma longa confissão de
amargura e desespero dum jovem que sabe já que a morte está muito próxima.
Transcrevo a parte final desse mesmo poema (numa ortografia actualizada):
Que negro mal o meu! estou cada vez mais
rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d'olhar
cálido...
E os velhos, quando passo, vendo-me tão
pálido,
Comentam entre si: - coitado, está por
pouco!...
Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o
tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.
Cada vez que me estudo encontro-me
diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço...
Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.
E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar...
São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente
histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Ou como a aspiração de Charles Baudelaire.
Apraz-me o simbolismo ingénito das coisas...
E aos lábios da Mulher, a desfazer-se em
beijos,
Prefiro os lábios maus das negregadas
loisas,
Abrindo num ancelar de mórbidos desejos.
E é vão que medito e é em vão que sonho:
Meu coração morreu, minha alma é quase
morta...
Já sinto emurchecer no crânio a flor do
Sonho,
E oiço a Morte bater, sinistra, à minha
porta...
Estou farto de sofrer, o sofrimento cansa,
E, por maior desgraça e por maior tormento,
Chego a julgar que tenho - estúpida
lembrança -
Uma alma de poeta e um pouco de talento!
A doença que me mata é moral e física!
De que me serve a mim agora ter esperanças,
Se eu não posso beijar as trémulas crianças,
Porque ao meu lábio aflui o tóxico da
tísica?
E morro assim tão novo! Ainda não há um mês,
Perguntei ao Doutor: - Então?...- Hei-de
curá-lo...
Porém já não me importo, é bom morrer,
deixá-lo!
Que morrer - é dormir... dormir... sonhar
talvez...
Por isso irei sonhar debaixo dum cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos...
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua aspiração e tristes os seus versos!
— José Duro, Doente,
in Fel.
José Duro aos 16 anos
José António Duro (Portalegre, 22 de Outubro de 1875 — Lisboa, 18
de Janeiro de 1899), mais conhecido como José
Duro, foi um poeta decadentista (1) português.
Era filho de mãe solteira, a
operária de lanifícios Maria da Assunção
Cardoso, e do industrial José
António Duro.
Portalegre
Os seus versos mais antigos foram
escritos em Portalegre, uns dias
depois do seu vigésimo aniversário (1895), e intitularam-se A Morte. É um soneto de molde anteriano,
cheio de desesperos insanáveis, expressos num diálogo tétrico, revela já o
temperamento melancólico, pessimista e mórbido do autor
Em 1896 publicou um folheto de
versos numa tipografia da sua terra: Flores.
DURO, José – Flores (2ª edição)
Enquanto aluno da Escola Politécnica de Lisboa, começou a
frequentar os cafés e rodas literárias em que se discutia Vítor Hugo, Baudelaire, Antero, Junqueiro, Cesário Verde
e os jovens simbolistas de Coimbra, principalmente António Nobre. Aí deu largas à sua precocidade melancólica, servida
por uma sensibilidade aguda e mórbida, nutrida por leituras anárquicas e
sombrias.
Antiga sede da Escola Politécnica de Lisboa.
Este temperamento melancólico,
pessimista e mórbido do autor, será ainda mais marcado na sua obra mais
conhecida, Fel,
livro escrito em 1898, quando a tuberculose de que sofria há muito e que
provavelmente teve muita influência no seu carácter sombrio, anunciava a sua
morte certa e iminente, que veio a acontecer apenas alguns dias depois da sua
publicação.
Esses poemas reflectem várias
influências unificadas pelos temas de Charles
Baudelaire, postos em moda em Portugal por Guilherme de Azevedo e Gomes
Leal: a prostituição, o tédio, o corvo fatídico de Poe, o coveiro e os
vermes da cova, a tuberculose, a desesperança.
BAUDELAIRE,
Charles – Les Fleurs du Mal (1ª
edição de 1857) (2)
A sinceridade de José Duro, pobre
e doente, com uma mocidade gasta entre a Politécnica, o café Gelo e a gare de
Portalegre, supre o que falta à sua poesia em verdadeira originalidade e
consistência. «Livro de um incoerente»,
como ele lhe chama, o Fel é a simpática mensagem duma vida
ceifada, que se traduz numa versificação cheia de reminiscências alheias, mas
natural e animada.
José Duro, conta Sampaio, morreu "numa chuviscosa e fria manhã de Janeiro de 1899". A primeira
edição de Fel
aterrara nos escaparates dos livreiros uns dias antes.
DURO, José – Fel. (1ª edição)
Lisboa; Empreza Litteraria Lisbonense. Libanio & Cunha
- Editores, 1898.
In-8º de 90 [6] p.
No livro que recorda os esquecidos do seu tempo, Mayer Garção, Os Esquecidos, Empresa Editora A
Peninsular, 1924, escreveum texto com muito interesse sobre o "mais esquecido dos esquecidos": José
Duro.
44 – Garção, Francisco Mayer – OS
ESQUECIDOS. Lisboa. Empresa Editora e de Publicidade a Peninsular.
1924. 157 págs. 18.5cm. Brochado.
Interessante
obra onde é traçado o perfil de diversas figuras como “Beldemónio” (Eduardo
Barros Lobo), Costa Alegre, Leite Bastos, José Newton, Alfredo Serrano, entre
outros. Contém diversas referências bibliográficas.
©Colofon Livros Antigos
Um dia José Duro procura Mayer Garção porque queria imprimir o
seu segundo livro e, antes de o publicar, gostava que alguém o lesse.
Eis o testemunho de Mayer Garção
desse encontro: “Encontrei-me com José Duro na
cervejaria do Gelo. Não esquecerei nunca a febre que reluzia nos olhos desse
rapaz, em cujas faces se descortinavam já os estigmas da morte próxima.
Sentámo-nos
a uma mesa, e, com voz rouca, durante longo tempo, ouvi a leitura do seu
manuscrito, entoada com estranha paixão. Os criados perpassavam, servindo
fregueses, àquela hora ainda raros, e, a essa banal mesa de café, eu assistia
ao desenrolar de imagens, escutava a música dos ritmos, via desfilar as visões
daquele espírito amargurado.
(…)
ali, aquele poeta desgraçado e amargo despenhava perante mim os diamantes do
seu espírito, porventura imperfeitamente lapidados, mas dum brilho, duma
pureza, duma água tão cristalina que se diriam porvir da terra virgem, aliando
à cor do sol o perfume das flores silvestres.
Nunca
ouvi ler assim, nem desejo tornar a ouvir ler assim. José Duro, com a sua voz
rouca, quase não fazia uma pausa. OH! Rapidez terrível, aflitiva da sua
leitura, a ânsia a exprimir em gritos o fruto da sua paixão! Dir-se-ia que esse
rapaz, tão novo, receava não ter vida para chegar ao fim, e por isso traduzia a
correr, a marcha final dos seus sonhos, na galopada frenética das suas palavras.
O livro que se intitula Fel, é publicado
na imprensa Libânio da Silva”
As flores na natureza...o fim de um curto precurso
©Facebook
Quando o livro é publicado, O poeta quase não tem tempo para o ver ou
para ler as críticas: três semanas depois, José Duro morre. Tuberculoso, como
tantos poetas do seu tempo. Basta citar António Nobre e Cesário Verde.
"Mas
esses tinham tido o seu momento de glória, foram apreciados, conhecidos".
Continua Mayer Garção:
“O
pobre José Duro ignorado vivera sempre. O seu livro era sua estreia e ele
morreu com a desoladora impressão de que ninguém o lera ou apreciara. Não
conheço de todos os esquecidos nenhum mais esquecido. E, todavia, a sua memória
há-de reflorir. Nessa magnífica, angustiosa e suprema poesia Doente, com que o
Fel termina, uma quadra fecha o testamento do poeta.
"Por isso
irei sonhar debaixo de um cipreste
Alheio à
sedução dos ideais perversos…
O poeta nunca
morre, embora seja agreste
A sua
inspiração, e tristes os seus versos!"
Mais um poeta "esquecido", mas na minha opinião, que justifica uma
leitura atenta. Neste breve esboço espero ter despertado a vossa curiosidade
para a sua “descoberta”.
Bibliofilamente é bastante procurado e, quando em excelente estado de
conservação (o que é muito raro): com as capas de brochura e respectivas
badanas integras e preservadas atinge valores interessantes. (3)
Notas:
(1)
Decadentismo é uma corrente
artística, filosófica e, principalmente, literária que teve a sua origem na
França nas duas últimas décadas do século XIX e se desenvolveu por quase toda
Europa e alguns países da América. A denominação "decadentismo", que
tinha, a princípio, um sentido depreciativo e irónico, dado pela crítica
acadêmica, terminou por ser adoptada pelos próprios participantes do movimento.
(2) Obra
importante no simbolismo e movimentos modernistas. O assunto destes poemas prende-se
com temas relativos à decadência e erotismo.
(3)
No último leilão realizado pela Livraria
Manuel Ferreira da Biblioteca de Ramiro Teixeira, foi
vendido um exemplar por 370.00€ (valor de martelo a que se tem de acrescentar
15.99%)
Fontes consultadas:
ABNOXIO
Biblioteca Digital do Alentejo
José Duro – Wikipedia
Falcão de Jade: O poeta José Duro, um grande esquecido!
Versos que lembram (5) – José Duro
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