"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Conversa bibliófila – Um pequeno desafio



MARIN, Juan Antonio. Executoria de Hidalguia en Forma.
Arroyo el Puerco, September 18, 1770.
(Fotografia: Bauman Rare Books)

Tem-se falado aqui de tantos leilões, que nos apresentam belos livros e manuscritos, encadernações artísticas, inteiras ou meias em pele, de época – pergaminho e couro – mas também aparecem muitos livros brochados.


Encadernações

Estes livros, como gosto de dizer: no seu “estado natural”, ou melhor, como “vieram ao mundo dos leitores”, constituem sempre um desafio para cada um de nós.

Devemos encaderná-los ou mantê-los no seu “estado natural” – em brochura?

Pessoalmente sou dos que defende a opinião de que o livro deve ser preservado, nas nossas bibliotecas, o mais próximo da forma como conseguiu chegar até aos nossos dias – apesar de ser um grande apaixonado pela encadernação.


Regulamento para Exercícios e Disciplina dos Exércitos (1816)
(Encadernação de Marco Pedrosa)

Quero com isto dizer que se o livro estiver numa encadernação de origem – esta deverá ser mantida – se estiver brochado – deverá ser conservado assim. Opinião que parece ser consensual, mas…e existe sempre um mas! Que fazer quando o livro apresenta alguma fragilidade ou pretendemos resguardá-lo o melhor possível?

Foram-me enviadas algumas notícias, por um bom amigo, e dentre elas precisamente esta da http://www.llar-llibre.com/ que nos propõe, na forma de ficheiro PowerPoint, um “Guia para a confecção de uma caixa de protecção para livros segundo o método CALCACO”.



E é este, precisamente o desafio que vos proponho – vamos tentar aprender a confeccionar as nossas caixas protectoras para livros.

Claro que não se trata de fazer concorrência aos encadernadores nem promover nenhum “curso por correspondência” – nem para isso tenho conhecimentos – mas muito simplesmente propor uma solução relativamente fácil e segura para preservar um livro, sobretudo em brochura ou encadernado, mas já com algum cansaço, e que desta maneira ficará muito mais protegido, permitindo até a sua procura e manuseamento muito mais segura.

Sou igualmente de opinião que haverá obras merecedores de caixas-estojos de protecção idealizados e confeccionados por esses grandes artistas que são os encadernadores; esta medida que vos proponho, será uma solução intermédia: “não quero encadernar, mas quero defendê-lo o melhor que possa” e, para além disso, será um belo exercício de trabalhos manuais!




Vinicius de Moraes - Cinco Elegias
Caixa-estojo
(Encasdernação Marco Pedrosa)

Mas quantos de nós não têm livros, que pela acção do tempo, começam a ficar com as lombadas, as capas de brochura e mesmo o próprio livro com sinais de amarelecimento e deposição do malfadado pó.

Cada um terá a sua habilidade – em maior ou menor grau – mas como não vamos mexer ou manusear os nossos livros não estragaremos nada! Vamos arriscar um pouco de paciência, descobrir algumas capacidades desconhecidas e, na pior das hipóteses, ter um pequeno insucesso … mas só o será se experimentarmos, portanto mãos à obra!

Estou certo de que irão ter muitos sucessos.

Ainda na sequência deste “bloco de notícias” que me foi enviado, quero compartilhar convosco este vídeo sobre os trabalhos de restauro de livros em Florença. Trata-se de um filme baseado nos trabalhos efectuados na Biblioteca Nacional de Florença, resultantes das inundações em 4 de Novembro de 1966.


A film by Roger Hill; restoration consultant, Peter Waters ;
sponsored by the Italian Art and Archives Rescue Fund.
University of Utah Library, 2006

Saudações bibliófilas com votos de um bom fim-de-semana, que será bem frio… pelo menos para os europeus.


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Livraria Antiquária do Calhariz – Leilão n.º 75




Catálogo (1)

Recebi o Catalogo Leilão n.º 75 desta Livraria Antiquária que se realizará nos dias 6 e 7 de Dezembro 2010 por volta das 21:00h na Casa da Imprensa, em Lisboa.

Vai a leilão uma valiosa e variada biblioteca composta de livros e manuscritos com destaque para a literatura clássica e modernista, História e arte, entre ouros temas.

Como já aqui se escreveu, e se comentou, várias vezes, este Catálogo reflecte a tendência que se vem a verificar nos últimos tempos: uma grande oferta, que em meu entender se justifica pela elevada procura, da Literatura, um pouco em detrimento do livro antigo.

Facto que me parece ser de destacar, pois esta Livraria tem o seu mercado fortemente alicerçado na vertente do livro antigo. (Claro que dispõe no seu acervo de todos os tipos de livro, embora esta área seja manifestamente a sua especialidade).

Assim, e refira-se a presença dum interessante conjunto de obras de autores franceses, na sua língua original, saliento Agustina Bessa Luís (lotes 83 a 93). António Botto (lotes 102 a 107), Eugénia de Melo e Castro (lotes 146 a 148), Eugénio de Castro (lotes 149 a 163 – com referência para uma 1ª edição de Oraistos!), Ferreira de Castro (lotes 164 a 168), Ruy Cinatti (lotes 180 a 183), Natália Correia (lotes 211 a 216), José Gomes Ferreira (lotes 274 a 276), Vergílio Ferreira (lotes 277 a 279), Sebastião da Gama (lotes 309 a 311), Herberto Helder (lotes 343 a 318), Manuel de Lima (lotes 429 e 424), Rocha Martins (lotes 488 a 491), José Rodrigues Miguéis (lotes 505 a 509), Wenceslau de Moraes (lotes 521 a 533), David Mourão Ferreira (lotes 536 a 544), Vitorino Nemésio (lotes 551 a 558), Luiz Pacheco (lotes 595 a 605), Fernando Pessoa (lotes 624 a 627), Eça de Queirós (lotes 660 a 663 com referência à 1ª edição de Os Maias), José Régio (lotes 671 a 685), José Saramago (lotes 726 a 732), Miguel Torga (lotes 788 a 795) e Mário Cesariny de Vasconcelos (lotes 809 a 811).

Nos Manuscritos deve-se referir a presença dum espólio de Fontes Pereira de Melo composto por cerca de 150 cartas que lhe foram dirigidas por informadores, amigos, opositores, nas décadas finais do séc. XIX, quando este notável estadista, foi ministro e Presidente do Ministério. Contêm muita informação preciosa sobre os jogos de forças partidárias, populares em conflito, na época final da monarquia portuguesa. Conjunto único, muito invulgar e inesperado, que merece uma investigação profunda, pelos seus dados sociológicos e psicológicos. (lotes 471 a 478).



111. BRAGA (Teófilo) – HISTORIA DO ROMANTISMO EM PORTUGAL. Ideia Geral do Romantismo: Garrett Ŕ Herculano Ŕ Castilho. Nova Livraria Internacional. Lisboa, 1880. In-8º 515-VI pp. E.

Primeira edição bem encadernada em inteira de carneira mosqueada, gravada a seco com as armas portuguesas. Marcas de coloração de fita adesiva nas guardas.



181. CINATTI (Ruy) – BORDA D’ALMA, Narrando alusivamente os verídicos & notáveis Acontecimentos ocorridos em Têmporas de Eleições nacionais com variadas Modalidades a-propósito, Pessoas, Coisas & Animais & outras considerações oportunas & proféticas
...
Off. dos antigos «Cadernos de Poesia». Lisboa, 1973. In-8º 32 pp. B.

Rara edição ao autor, fora de mercado, com breves correcções anotadas à margem pelo autor, assim como a sua dedicatória. No fim da publicação ainda 2 trabalhos: OS MELHORES ANOS DA NOSSA VIDA/ R. Cinatti e DIVERTIMENTO CONTRAPONTÍSTICO /José Blanc de Portugal.



327. GÓIS (Damião de, e Outros) – DEREBUS // HISPANICIS, // LVSITANICIS, //Aragonicis, // Indicis & Aethi-
opicis. // Damiani à Goes, Lusitani // Hieronymi Pauli, Barcinonnensis, // Hieronymi Blanci, Cæsaraugustani // Iacobi Teuj, Lusitani // OPERA. // Quorum seriem, vide lector, pag. Sexta // Partim exmanuscriptis nunc primumeru- // ta, partim auctiora edita. // Coloniæ Agrippinae, // In Officina Birckmannica, sumptibus // Arnoldi Mylij, 1602. In-8º XXIV-443 pp. E.

Valioso livro com as obras de Damião de Góis, onde se destaca a famosa descrição de Lisboa acerca dos Lapões e dos costumes dos etíopes, na época censurada. Contem ainda obras de Jerónimo Paulo, Jerónimo de Branco, comentários de Diogo de Teive à acção dos portugueses na Índia, e extenso elogio de André de Resende. Restauros na margem inferior das primeiras folhas, afectando levemente o pé de imprensa do rosto. No verso do rosto 2 carimbos do Museu Britânico. Ligeira acidez generalizada e levemente aparado. Com o retrato de Damião de Góis. Encadernação recente, inteira de carneira, bem gravada a ouro na lombada.



355. HISTORIA COMPLETA DAS INQUISIÇÕES DE ITALIA, HESPANHA, E PORTUGAL. Ornada com sete estampas análogas aos principaes objectos que nella se tratão. Nova Typ. Maigrense. Lisboa, 1821. In-8º X-294 pp. E.

Primeira edição da tradução portuguesa da original francesa de La Vallée, ilustrada com 7 estampas em separado. Encadernação da época em meia de carneira.



638. PINTO (Américo Cortez) – DA FAMOSA ARTE DA IMPRIMISSÃO. Da Imprensa em Portugal às Cruzadas d’Além-Mar. Ulisseia. Lisboa, 1948. In-4º 507-II pp. E.

Obra fundamental para o estudo do livro e da imprensa em Portugal, numa luxuosa edição com numerosos fac-símiles de portadas antigas, pinturas, gravuras, manuscritos, etc. Orientação artística de Luís Reis Santos. Capas de editor cartonadas.



386. JANEIRA (Armando Martins) – PEREGRINO. Edição do autor. S.l., 1962. In-fólio (72) pp. C. Homenagem à vida e obra de Wenceslau de Moraes, numa edição tipicamente japonesa, em papel de arroz, dobrado em cadernos dentro de um álbum próprio cartonado e forrado a tecido e com fechos em bambu. Folhas preliminares caligrafadas pelo pintor Hirosuke Watanuki. Admirável edição de colecção com uma tiragem de apenas 100 exemplares, acompanhada de memorabilia composta de bilhete-postal, programa da inauguração do monumento a Wenceslau, toalha usada no banho nipónico, entre outros itens. RARA PEÇA DE COLECÇÃO.

Aqui fica este convite para mais um Leilão, na altura em que decorre o leilão da artes & letras e em que se aproxima Leilão nº 235 do Palácio do Correio Velho – Leilões e Antiguidades, S.A., que decorrerá nos dias 25, 26 e 29 deste mesmo mês de Novembro.

Com tantos eventos, os bibliófilos quase nem terão tempo para descansar…

Saudações bibliófilas.


(1) Como esta Livraria não tem página na Internet sugiro que todos os interessados solicitem o Catálogo em versão impressa ou em versão digital para este endereço electrónico: livraria.antiquariacalhariz@gmail.com, outros livros seus poderão ser visualizados na página que tem na IberLibro.com:



domingo, 21 de novembro de 2010

Anatole Louis Garraux - um livreiro-negociante




Antole Louis Garraux

Antole Louis Garraux nasceu em Paris, a 3 de Abril de 1833. Faleceu em 26 de Novembro de 1904, em sua residência, n.º 60, rue du Faubourg Poissonnière, no décimo arrondissement da capital francesa. Era viúvo e teve três filhas: Marie Louise (Madame Servan), Amélie Henriette Aspasie (Madame Fischer) e Sophie Clarisse (Madame Crétenier).

A sua ascendência é desconhecida. O seu nome não figura em nenhum dos volumes das biografias francesas, o que sugere que não pertencera a alguma linhagem aristocrática ou burguesa expressiva. Nasceu em Paris, mas a sua vida até os 17 anos, idade com que emigrou para o Brasil, não mereceu nenhuma linha dos seus biógrafos nem mesmo escrita pelo seu próprio punho.

Supõe-se que tenha sido um funcionário da Garnier em Paris e, como é próprio da juventude, optou por se aventurar no Rio de Janeiro, seguindo os caminhos dos Garnier, particularmente os de Baptiste Louis, em busca de novas oportunidades financeiras. Instalou-se no Rio de Janeiro, supostamente como empregado da Livraria Garnier, donde seguiu para São Paulo como agente de livros franceses, onde logrou tornar-se o maior livreiro da cidade a despeito de outros poucos, mas tradicionais concorrentes, que beneficiavam do comércio regular com alunos e lentes da Academia de Direito.

Apenas com base em suposições, que não permitem traçar uma visão objectiva sobre o seu percurso inicial, pode-se afiançar que, mesmo desconhecendo as origens do seu capital, A. L. Garraux logrou fazer bons investimentos e acumular uma notável fortuna (1). No entanto, não se pode afirmar que A. L. Garraux tenha construído, a exemplo de outros seus compatriotas, um império do livro. Embora tenha deixado grande fortuna para os descendentes, os seus bens estavam muito longe de se equiparar à riqueza acumulada por François Hippolyte Garnier, que se tornou o livreiro-editor francês mais rico do século XIX e ao contrário de Baptiste Louis, fundador da livraria no Rio de Janeiro, A. L. Garraux não fixou raízes no Brasil.

Anatole Louis Garraux, como ele mesmo o atesta, foi um homem rico, tinha hábitos e gostos sofisticados, foi um burguês típico do seu tempo.


Praça da República, São Paulo
(Fotografia: Guilherme Gaensly)

Anatole Louis Garraux fixou-se na cidade de São Paulo no final do ano de 1859. A instalação da Academia de Direito coexistiu com uma série de factores que acenavam para o desenvolvimento económico e social do burgo de estudantes, a partir das décadas de 1860 e 1870.

Convirá a propósito referir-se o que Munhoz da Rocha escreveu sobre o desenvolvimento desta cidade, que se iniciou, mais tardiamente do que noutras cidades brasileiras:

“E é bem significativo que a cidade de São Paulo, ao comemorar o seu quarto centenário, já com os foros da mais populosa metrópole brasileira, só pudesse exibir, ao contrário da Bahia, alguns raros marcos centenários. Suas construções mais antigas, em número reduzido, datam do fim dos oitocentos e do começo dos novecentos, isto é, do início da República, quando São Paulo tomou a dianteira do café e começou a encher-se de fumaças de locomotiva.

A técnica compensou São Paulo do tempo perdido com as dificuldades geográficas.”

A expansão da cafeicultura, a urbanização, a instalação de sectores económicos modernos, como bancos, comércio de importação e exportação, empresas de serviços públicos, transportes marítimos, entre outros, fizeram emergir uma aristocracia cada vez mais alinhada aos padrões de vida urbanos e o aumento das camadas médias mudaram a feição da cidade.

Saliente-se que as actividades culturais e a sua procura incorporaram-se e criaram raízes no seio da cidade e de suas elites, razão que explica a emergência do comércio livreiro na capital.

Deste modo não será de estranhar que A. L. Garraux tivesse optado por esta cidade, em plena expansão, para se instalar e aqui desenvolver as suas actividades económicas e financeiras e agir como o principal agente na capital paulista da expansão do capitalismo editorial francês, tornando-se o maior livreiro da cidade nas últimas décadas do século.

A Revolução Francesa de 1789 continuava a ser um modelo para as gerações vindouras, pelo menos no conteúdo das leituras e no grau de interesse que a França e seus intelectuais passaram a despertar em todo o mundo. Ou melhor, numa fracção significativa do globo sensível às referências francófonas. Com efeito, no século XIX as elites letradas latino-americanas viveram sob a influência “ Iluminismo".

Ao trasladar esse fenómeno para o Brasil, pode-se afirmar, à luz de um homem culto da época, que eram francesas as aspirações dos jovens doutores do Oitocentos, assim como eram nitidamente afrancesadas as referências literárias do século.

As estatísticas apresentam variações ao longo do século, mas o que se observa é uma longa conjuntura de domínio do livro francês no mercado latino-americano, que reproduz uma tendência ascendente desde o Século da Luzes.

No que respeita à produção historiográfica brasileira, torna-se imperiosa a referência a Eduardo Frieiro e ao seu ensaio O diabo na livraria do cônego. (Sobre o cónego Luís Vieira da Silva) (2) onde ele escreve:

“Era um afrancesado? Pode-se admiti-lo. As idéias francesas contagiavam alguns brasileiros seletos daquele tempo. Constituíam, é claro, uma reduzida minoria, mas pode-se admitir, como se tem admitido, que tais idéias influíram no pensamento autonomista dos conjurados mineiros, junto com razões mais fortes, de ordem econômica e afetiva, como o grande receio da derrama, o sentimento nativista e a hostilidade ao português.”

 
Seminário Episcopal na avenida Tiradentes, São Paulo
(Fotografia: Guilherme Gaensly)

No ramo comercial, actuou como comissário e exportador de todo tipo de artigos de luxo franceses para o Brasil. Dentre os artigos em evidência, destacavam-se: grande sortido de artigos para desenho; papéis finos; envelopes; bengalas; binóculos; bolsas (indispensáveis para senhoras); caixas para jóias, para costura; espelhos, quadros; jarras de cristal, de porcelana, jardineiras e uma infinidade de ornamentos: globos celestes, terrestres, mapas geográficos; tinteiros, sinetes, penas de ouro e de madrepérola; vistas fotográficas, opacas e transparentes; instrumentos para serviços de engenharia; vinhos superiores, charutos – os famosos charutos de Havana anunciados nos jornais, fogos de salão e muitos outros objectos. Eram as “francesias”, que dominavam o imaginário das pessoas da elite da cidade.


Fritzi Scheff [actriz americana] – Folha de papelcom boneca 
 (podem ver-se vários acessórios de moda feminina)

Mas os livros tornaram-no igualmente conhecido. O “livreiro Garraux”, alcunha pela qual ficou conhecido em São Paulo, deve ser analisado na perspectiva de outros seus compatriotas que iniciaram a sua carreira no início do Primeiro Reinado: Plancher (3), tipógrafo-livreiro protegido por D. Pedro I, e os irmãos Baptiste Louis Garnier e François Hyppolite Garnier, os primeiros mandatários do imperialismo editorial francês na América, pois fixaram filiais em Buenos Aires e na Cidade do México. Todos instalados na Corte do Rio de Janeiro, onde as livrarias floresceram logo nas primeiras décadas do Oitocentos.


Rio de Janeiro - Final do século XIX - Glória e Flamengo

A sua trajectória profissional chama a atenção por duas razões: pelo carácter pioneiro de implantação de uma rede de negócios estabelecida entre as empresas editoriais francesas e o mercado paulista, pois anteriormente a importação de livros dependia do comércio fluminense; e pela recepção de livros franceses, confirmando a proeminência da cultura gaulesa no meio letrado local.

Não foi uma pura concessão ao consumo de produtos importados, marca do gosto de um público burguês sedento por novidades europeias, que orientou a partida do irmão mais novo, Baptiste-Louis Garnier, para difundir o livro francês na América Latina. Para que esse Garnier pudesse emigrar para o Brasil e viesse a ser o “inventor da literatura nacional”, o primeiro a remunerar os escritores e, com isso, ilustrasse a dinâmica difusora de modelos da edição francesa no séc. XIX, os outros irmãos Garnier tiveram de trilhar os primeiros passos de um longo e acidentado percurso comercial em Paris.

Comprar acções da “caminho-de-ferro”, por exemplo, possibilitava dinheiro vivo nas mãos, mas o melhor negócio, em todos esses anos, foi a venda e exportação de livros e estampas pornográficas. O bom negócio do livro obsceno resultou tão importante e lucrativo quanto o acúmulo de capital social de relações representado pela frequência dos escritores a lógica económica e a lógica simbólica equivaliam-se. Mesmo que as estampas fossem impressas nas tipografias da periferia e vendidas nos esconderijos da loja, foi preciso enfrentar a vigilância policial, censura, multas e ameaças de prisão, em especial Pierre-Auguste Garnier, que acabou por se especializar no ramo. Dos três irmãos, Baptiste-Louis foi o escolhido para difundir o comércio ilícito na América Latina.

Perante estes dados, e sabendo-se que Anatole Louis Garraux seguiu na peugada dos Garnier, que ele tenha enveredado pelo mesmo tipo de raciocínio.

Se bem que o comércio de livros correspondesse apenas a uma pequena fracção de um conjunto mais amplo e variado de negócios que A. L. Garraux administrava, este verdadeiro périplo livresco que envolvia a especulação financeira e imobiliária, tinha no comércio de livros proibidos uma fonte de lucros garantido. Estas edições eram maioritariamente compostas por gravuras, livros eróticos, e pornográficos, para um público maioritariamente argentino e brasileiro.

É claro que os negócios da Livraria não se resumem a estas práticas ilegais, Garraux agiu da mesma forma que Baptiste Louis Garnier, o irmão mais novo da família, a venda de um género que circulava em abundância na capital fluminense.

Este facto pode ser constado no Catálogo de 1866. O nome da colecção apresentado neste Catálogo é bastante sugestivo e cede à leitura um tempo para o ócio e o lazer: "Ce que vierge ne doit lire" : 1º Amour d'un page, in-8º broché; 2º Contes vrais; 3º Flagrants délits; 4º Pommes d'Èves; 5º Ce que nous font faire les femmes; 6º L'esprit de reparties; 7º L'Art d'avoir des maitresses; 8º Chansons amoureuses.

 
Casa Garraux

Aliás, não se tratava de um género legalmente proibido, a exemplo das leis de censura vigentes na França até o final da III República (1940), porém, por razões morais, esta literatura destinava-se a um tipo exclusivo de público: o masculino. Tanto assim que nos catálogos da livraria Garraux esta literatura galante não deve ser procurada nalguma secção camuflada, ou indicativa de leituras masculinas, pois que emparceira pacificamente na secção de belas-letras, ao lado dos grandes escritores.

Como o demonstram historiadores e economistas, no período de 1870 a 1914, as oportunidades são amplas e variadas para investidores e especuladores. A belle époque não significou apenas um dos mais férteis períodos de criação artística – literária e pictórica – no longo século XIX, mas também uma época de oportunidades, neste imenso sistema, que elevou as actividades de comércio – a troca de mercadorias, é certo, mas também a troca de ideias – a escalas até então desconhecidas.


Belle epoque

E que outra mercadoria representaria melhor o espírito da belle époque – do ponto de vista económico e cultural – senão o livro?

Pode-se pois concluir que mesmo ocupando uma parte menor dos negócios de A. L. Garraux, não quer isso dizer que o comércio de livros fosse de somenos importância. Do ponto de vista de mercado, Garraux beneficiou do excedente produzido em França, portanto, da queda do preço dos livros e da sua procura – sobretudo do aumento da procura – deste produto no mercado brasileiro. Tanto é verdade que, apesar da grande diversidade de produtos no seu estabelecimento comercial, Garraux era conhecido como livreiro, ou melhor, como o maior livreiro da cidade. Do ponto de vista qualitativo, os Catálogos da Casa Garraux ratificam o diferencial de sua empresa e a importância que ele atribuía aos livros na lista das suas mercadorias.

Em trinta anos de actividades, a Casa Garraux gozou de total hegemonia no mercado de bens simbólicos paulistas.

Antes de fundar a sua própria livraria, Anatole Louis Garraux instalou um balcão de vendas ao lado da livraria do Pândega, onde vendia exemplares de Le Monde Illustré e de L’Illustration.

 
Le Monde Illustré  (Janeiro de 1895)


L'Illustration (1901)

Em 1863, abriu estabelecimento próprio, a Livraria Académica, no Largo da Sé, n.º 1 (bem próximo da actual rua Quinze de Novembro) e perto da rua da Imperatriz. Tinha como sócios Guelfe de Lailhacar e Raphael Suarèz, este residente em Paris (4), como anuncia o seu catálogo de 1864. Nesta época, ele apresentava-se como agente de Garnier.

Além disso, manteve um escritório de comissão e representação em Paris, nº 3, rue d'Hauteville. Os seus anúncios foram regularmente publicados no Annuaire Firmin-Didot entre 1880 e 1900, quando a empresa anunciou a sucessão para Jablonski, Vogt et Cie. Segundo esse breve anúncio (de uma só linha), publicado sem intervalo nas edições do Annuaire, o empresário fazia remessas de mercadorias para o Brasil e mantinha um escritório para encomendas em São Paulo, certamente na sua livraria.


Vista da rua Direita, tendo ao fundo
as torres da igreja de São Pedro dos Clérigosno largo da Sé,
e o casarão da livraria e papelaria Garraux (1862)

Guelfe de Lailhacar, sócio e amigo confesso, como se pode concluir pela leitura do seu testamento, era livreiro no Recife, na rua do Crespo, n.º 9.

Retenha-se que Recife e São Paulo foram as cidades que desempenharam uma importante função educativa, devido à presença das duas únicas faculdades de Direito no Brasil. Terá sido essa a razão pela qual os livreiros visaram este público e os seus primeiros livros anunciados foram em função do curso jurídico.

A livraria tinha como propostas de trabalho: importação directa com as editoras francesas, devido à presença de um agente fixo em Paris; concorrência com os preços do mercado local e, mesmo, com as livrarias da Corte, como fazia questão de anunciar, inclusive nos jornais; e atendimento personalizado ao corpo académico.

A elaboração dos catálogos era mais complexa, pois não raro as obras listadas vêm acompanhadas de alguma explicação, geralmente, um texto extraído da imprensa, principalmente quando se tratava de uma nova edição francesa. Os catálogos conformavam pequenos volumes em brochura, organizados por domínios temáticos e separados em dois grandes grupos: edições em português e edições em francês. A "parte portuguesa", como era chamada, era a menos extensa. Todos os catálogos apresentavam o mesmo aviso, em português e em francês: "O Catalogo Geral será enviado gratuitamente sobre pedido, a qualquer ponto do Imperio".

A estratégia de divulgação de livros em catálogos era complementada com a publicação de anúncios nos principais jornais do Recife e de São Paulo. A. L. Garraux mantinha anúncios fixos nas páginas dominicais de A Província de S. Paulo.

 
A Província de S. Paulo n.º1

Como se escreveu, editores e livreiros franceses exerceram hegemonia durante todo o período oitocentista nos países latino-americanos, com notável destaque para a Argentina e o Brasil. Prova disso é a composição dos livros num só Catálogo distribuído pela Casa Garraux, de 1866: a parte “portuguesa”, composta por obras de Direito, Religião, Instrução, Artes e Ofícios, Poesias e Obras literárias, perfaz 1.187 títulos, enquanto a francesa totalizava 5.489.

No início da década de 1870, quando A. L. Garraux aparece consolidado no meio comercial citadino, a sociedade com De Lailhacar cessou. Talvez porque este já se encontrasse, como A. L. Garraux, devidamente instalado no Recife e já não precisasse da ajuda do sócio.

Para se ter uma ideia da sua actividade editorial, analise-se o Catálogo de 1872, onde as antigas colecções ganham um espaço mais expressivo, sugerindo seu êxito editorial na França — por se tratar integralmente de edições francesas — e, possivelmente, no Brasil, uma vez que A. L. Garraux teve importante papel como intermediário entre os livros publicados além-mar e o público local.

Com o desenvolvimento da cidade verificou-se uma mudança do público e, por extensão, das condições do comércio livreiro, que se traduziram nesse novo Catálogo de obras francesas, pelo aumento quantitativo do número de títulos, em relação aos exemplares anteriores e, em termos qualitativos, pela apresentação de outras secções temáticas em concordância com o próprio desenvolvimento da edição francesa. Ou seja, o mercado evoluiu no sentido dos livros de estudos, de conteúdo humanístico ou científico — referindo-se as obras de ciências exactas — e de narrativas ficcionais — romances, novelas, contos, teatros, poesias: 1.253 títulos de Romances, 685 obras de Literatura, 199 títulos de Poesia e Teatro. A literatura estrangeira expressa em língua original (inglês, alemão, espanhol, italiano, latim) figura pela primeira vez nos Catálogos da Casa Garraux, aproximando a livraria de um novo público, não necessariamente francófono, mas atento ao poliglotismo.

Estes elementos fazem com que este Catálogo represente um curioso guia literário do gosto literário da época.

Lembramos que no ano de 1872 A. L. Garraux inaugurava a nova sede da Livraria Académica de A. L. Garraux, num belo prédio com fachada de mármore e amplas vitrinas, na rua do Rosário (actual Quinze de Novembro).

Todas as facilidades que A. L. Garraux encontrou na cidade de São Paulo — uma combinação feliz entre a ausência de um mercado concorrente e o aumento do público leitor — fizeram que a sua livraria passasse a ser reconhecida como superior às do Rio de Janeiro, propaganda que certamente agradava aos paulistas, ciosos em ultrapassar a capital do Império em todas as esferas da vida urbana.

Quanto à possível transmissão da empresa para Henri Michel, em 1876, de quem seria cunhado, uma vez que sua irmã se chamava Louise Julie Michel, divorciada no ano de 1902, parece mais provável que A. L. Garraux tenha transferido a sua livraria para Willy Fischer, ou William Fernand Gustave Fischer, seu genro, casado com a filha do meio, Henriette Aspasie Julie Garraux, o que leva a crer que todas estas primeiras mudanças da empresa se tivessem realizado no âmbito familiar.

O facto é que na década de 1880, a figura de A. L. Garraux torna-se célebre na sociedade paulista.

Em 1898, ele publicou um catálogo de livros sobre o Brasil, intitulado Bibliographie Brésilienne.(5) Aparece estampada no frontispício da edição, ao lado do nome do autor, a seguinte inscrição: “ex-libraire à Saint-Paul (Brésil) ”.

 
Bibliographie Brésilienne

A bibliografia foi, enfim, dedicada à nação brasileira, como se pode concluir pelas suas palavras:

“Possa este catálogo, que eu dedico à Nação brasileira, ser positivamente acolhido por aqueles que se ocupam da América do Sul, tanto amadores, quanto coleccionadores, bibliófilos, comerciantes, industriais e estudiosos! Possa ele ser útil àqueles que se interessam por este grandioso e rico país! Estes que, juntos, devem formar uma legião, se eu julgá-los por um fato que eu mesmo constatei: nove décimos das obras aqui mencionadas não se encontram mais no mercado livreiro e muitas delas se tornaram extremamente raras”.

Até a década de 1890, quando surgiram os primeiros concorrentes de peso no mercado livreiro local, a Casa Garraux foi o mais importante estabelecimento de livros que a população conhecera.

Retornou para a Paris em meados de 1890 onde faleceu em 26 de novembro de 1904.

A Livraria passou por diversos donos e fechou as portas por ocasião da Revolução de 1930.



Como apontamento final, não quero deixar de referir que José Olympio – esse grande editor e uma das figuras emblemáticas do universo editorial brasileiro – iniciou a sua actividade precisamente na Casa Garraux.

 
José Olympio. O descobridor de escritores

Sobre este relacionamento, António Carlos Villaça escreveu em José Olympio. O descobridor de escritores:

“Veio de longe, veio de Batatais, perto de Brodósqui, em que nasceu Portinari. Foi protegido e hóspede de Altino Arantes, batatense Ilustre, no porão do Palácio dos Campos Elísios. Trabalhou como caixeiro na Casa Garraux e tinha apenas quinze anos. Era o começo e um destino. Era o seu encontro como livro. Nunca mais se afastaria do livro.”

“Pois agora o menino se lembra de seu padrinho [de crisma – Altino Arantes]. Poderia escrever-lhe. Poderia solicitar-lhe que obtivesse para ele um emprego. Um emprego, por exemplo, na Casa Araújo Costa, conhecidos atacadistas, que costumavam dar casa e comidaaos seus funcionários. Seria um ótimo emprego.

A carta ao padrinho de crisma, Presidente do Estado de São Paulo, foi escrita. Corria o ano de 1918. (…)”

 
José Olympio
(Fotografia: http://www.scielo.br/)

“Em Julho de 1918, o rapazinho chegava a São Paulo. Cena estranha. O coronel Afro, com o uniforme da polícia estadual, acompanha o afilhado de Altino Arantes à presença de Charles Hildebrand, o proprietário da Casa Garraux.

E Hildebrand apresentou o jovem José Olympio a Jacinto Silva, que chefiava a seção de livros de da loja. José Olympio se encontrava fisicamente com o seu destino.”

“Com Jacinto Silva, o menio aprendeu a lidar com os livros. (…)

Anos lentos de aprendizagem cotidiana. O menino descobria os livros. Passou logo a ajudante de balconista. Em 1926, Charles Hildebrand faleceu. E a propriedade da casa ficou com o sócio Fausto Bressane. Este escolheu José Olympio para suceder a Lopes [que substituíra Jacinto Silva após a sua saída], no cargo mais relevante dos auxiliares de Garraux.”

José Olympio deixou a Casa Garraux em 1931 para fundar a sua própria editora.


Esta recolha de apontamentos sobre Anatole Louis Garraux pretende traçar o percurso dos primeiros livreiros-editores brasileiros e a influência do livro e editores franceses nesse mesmo mercado.

Espero, pelo menos, ter conseguido em parte esse objectivo. Embora consciente que muito do trabalho já está feito e publicado; penso, no entanto, que muito ainda haverá para ser estudado e investigado.

Saudações bibliófilas.


Notas:

(1) Os bens declarados após sua morte, em 1904, perfazem a soma de 971.880 F. Ou seja o equivalente a mil-réis no valor de 748.348$062,9 arredondando a cifra para um milhão de francos franceses, em 1905, deduz-se o montante de 20 milhões de francos segundo a tabela de conversão para o ano 2000, ou 3 milhões de Euros actuais (cerca de 4 milhões de dólares)!

Perante estes dados, pode-se concluir que Garraux seguiu a tendência dos investidores da sua época. Aplicou a maior parte de seu dinheiro em investimentos de alto risco, no mercado accionista, facto que se pode constatar pela existência de uma série de lotes de acções desvalorizadas ao lado de outras que mostram índices altos de valorização.

Estes investimentos foram em sectores que estavam em franco desenvolvimento nesta nova conjuntura de expansão capitalista: nas empresas de metalurgia; e no sistema de transportes, vias-férreas e fluviais de fundamental importância para o aumento dos circuitos de comércio, como se verificou no Brasil, particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre 1890 e 1914.


(2) Pouco se sabe da vida do Cónego Luís Vieira da Silva, um dos implicados na Conjuração Mineira de 1789. Mas deixou ele quase um milhar de livros, sequestrados pelas autoridades da Devassa. Formavam uma variada biblioteca, admiravelmente seleccionada, como provavelmente não existia outra igual em todo o País, naquela época. Que livros lia o Cônego? Quais eram as inclinações ou direcções do seu espírito, ávido de saber? Eis o que se investiga neste livro, tendo como base a relação dos livros apreendidos, que figura nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, mostrando que Luís Vieira, ainda que pobre e vivendo na longínqua e mal povoada Capitania das Minas Gerais, de onde nunca saíra, achara meios de reunir uma notável biblioteca.

O Cónego era pobre. Toda a sua riqueza estava na bem fornecida biblioteca que conseguira reunir. E provavelmente não ambicionava outra, tão certo é que aqueles que se inclinam ao amor dos livros prezam pouco o dinheiro e os bens deste mundo. Sábio como era, facilmente se consolaria da sua pobreza de intelectual, dizendo a si próprio que um mesmo homem não pode estimar “a pecúnia e as cousas do espírito”, ou, com palavras de um doutor da Igreja, a moeda de ouro e a Escritura.

Luís Vieira da Silva foi um leitor inteligente. Na sua lbiblioteca, excepcional para um Geralista (nome que também se dava ao Mineiro, filho das Minas Gerais), mesmo de boas letras, o antigo e o novo achavam-se bem representados e, em alguns casos, muitíssimo bem representados. Havia ali com que desenvolver integralmente as faculdades intelectuais e formar uma sólida cultura geral.

São evidentes os sinais de apreço à antiguidade clássica e aos melhores clássicos franceses e portugueses. E nota-se também, como era natural, o gosto pela literatura que no século XVIII tomara por toda a parte um carácter científico, filosófico ou utilitário que sufocava o poético, criador e lírico. O influxo francês mostrava-se exagerado. Voltaire era o grande mandarim literário, dentro e fora de França e ainda passava — ele, o Anti-Poeta! — pelo maior poeta lírico e dramático do século. Volumes de Voltaire foram encontrados entre os livros de Luís Vieira, Alvarenga Peixoto e Coronel José Resende Costa. Seu Essai sur la Poésie Épique foi, segundo João Ribeiro, o evangelho de Cláudio Manuel na composição do poema Vila Rica, artificioso e coriáceo exercício poético de um lírico já sem veia.

E, não o esqueçamos, era a época das Arcádias que em Portugal se fundaram à imitação das italianas e tiveram reflexos no grupo literário de Vila Rica.

Dos autores imortais da antiguidade clássica existiam na livraria do cónego: Virgílio, Horácio, Suetónio, Júlio César, Quinto Cúrcio, Ovídio, Terêncio, Catulo, Tibulo, Propércio, Cornélio Nepos, Ausónio, Manílio, Quintiliano, Sêneca, alguns em edições ad usum Delphini, e as orações de Demóstenes em latim.

Dos clássicos portugueses, viam-se os quinhentistas Sá de Miranda, Camões (Os Lusíadas, com as notas de Faria e Sousa), Barros e Diogo do Couto (Décadas) e Diogo Bernardes (O Lima), e o seiscentista Gabriel Pereira de Castro (Ulisséia, ou Lisboa Edificada). Dos setecentistas, Luís Antônio Verney (Obras, Lógica), Dom Antônio Caetano de Sousa (Memórias Históricas e Genealógicas dos Grandes de Portugal), Padre Antônio Pereira de Figueiredo (Compêndio das Épocas), Francisco José Freire...

Nada sobre o Brasil ou do Brasil. Muito mais tarde é que entraria nos homens ilustrados o apreço pela terra e as coisas brasileiras. Só uma obra de escritor nascido aqui, o Orbe Seráfico de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão.

Dos clássicos franceses, Corneille, Racine, Bossuet, Voltaire, Fénelon, Montesquieu, Marmontel... Em traduções francesas, Anacreonte, Le Paradis Perdu de Milton, La Méssiade de Klopstock e dois volumes de Mélanges de Littérature Orientale de Cordomi.


(3) O tipógrafo de origem francesa Pierre Seignot-Plancher pode ser considerado um desses primeiros aventureiros no mercado livreiro nacional. A Restauração dos Bourbons iniciou-se em 1815, após a queda de Napoleão, porém a opressão atingia o seu auge com o reinado de Carlos X, em 1824. Num tempo em que era crime vender qualquer escrito de Voltaire, crime maior seria certamente o de quem não só vendia, mas editara as obras completas do abominado polígrafo. Naquele período não havia possibilidades de manter o comércio editorial e o exílio de Plancher foi inevitável. A opção pelo Brasil, provavelmente, deveu-se pela informação da existência de um regime monárquico constitucional. Todavia, ele não poderia supor a metamorfose que sua vida sofreria com a travessia do Oceano Atlântico em direcção à capital fluminense. De plebeu na Europa transformou-se em fidalgo no Brasil.

É verdade que seu nome está profundamente enraizado à história da imprensa periódica: fundou, no ano de sua chegada, em 1824, o Spectador Brazileiro e, pouco mais tarde, em 1827, o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Projecto pioneiro, que se tornou célebre não apenas por apresentar um tipo de jornalismo ainda inédito no Brasil, ou seja, textos informativos sobre as coisas do comércio – movimento dos navios, das casas comissárias, esboços estatísticos, legislação – mas também pelo cuidado com que eram feitas as edições, de tal modo que a sua oficina acabou por criar um estilo próprio e foi seguido por outros impressores.


(4) “A presencia permanente em Paris, do nosso socio o Sñr. Raphael Suarez mantendo entre nós relações constantes, estamos habilitados a apresentar aos nossos freguezes as novidades notaveis sobre sciencias e artes, logo depois de sua publicação na Europa. Fiados na benevolencia do Respeitavel Publico os nossos esforços serão attendidos: o único resultado que almejamos sendo de completamente satisfazer as pessoas que se dignão honrar-nos de sua confiança, esperamos que os Nossos Freguezes e em particular o Illustre Corpo Academico se servirão continuar-nos a protecção que até hoje nos tem concedido.” [Garraux, De Lailhacar & Cie, S. Paulo, 15 de Outubro de 1863]


(5) Esta publicação foi alvo de críticas em resenha publicada por Miranda de Azevedo num texto rigoroso, no qual o autor aponta lapsos de A. L. Garraux quanto à pesquisa bibliográfica realizada.


Bibliografia:

DEAECTO, Marisa Midori – Anatole Louis Garraux e o comércio da livraria francesa em São Paulo (1860-1890). Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de Setembro de 2005

FUTATA, Marli Delmônico de Araújo e MIZUTA. Celina Midori Murasse – Pierre Plancher e a ação político - educativa do Jornal do Commercio no final do primeiro Reinado.

GARRAUX, A. L. – Bibliographie Brésilienne. Catalogue des ouvrages français et latins Relatifs au Brésil (1500-1898). Paris : CH. Chadenat, Libraire ; Jablonski, Vogt et Cie., 1898.

GARRAUX, Anatole Louis – Bibliographie brésilienne : catalogue des ouvrages français & latins relatifs au Brésil, 1500-1898. 2.ª ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1962. 519 p.

Elaborada pelo livreiro Anatole Louis Garraux, a Bibliographie brésilienne relaciona obras francesas e latinas relativas ao Brasil desde a descoberta até 1898. Visualização completa:

HALLEWELL, Laurence – O livro no Brasil. São Paulo: Edusp/T.A.Queiroz, 1985.

ROCHA Netto, Bento Munhoz – Presença do Brasil. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1960 Coleção Documentos Brasileiros n.º 104 (Dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa). 1º edição. Brochura. VIII (2) 186 (1) pp.

VILLAÇA, António Carlos – José Olympio. O descobridor de escritores. Rio de Janeiro: Thex Editora, 2001. Capa de Geraldo Jantzen.1ª edição. Brochura. 292 (2) pp. Ilustrado.



Veja-se ainda neste blogue:


sábado, 20 de novembro de 2010

Livraria Castro e Silva – Salón del Libro Antiguo - Madrid 25-28 Novembro 2010





A Livraria Castro e Silva, como sempre vocacionada para o mercado do livro antigo, vai estar presente no XIII Salón del Libro Antiguo – Madrid 2010, que decorrerá no Hotel Miguel Angel de 25 a 28 de Novembro 2010.

Este Catálogo reúne algumas obras de inegável qualidade e raridade, das quais deixo alguns exemplos escolhidos um pouco ao acaso:

 

2. ADRICHEM VAN DELFT, Christian. CRONICON DE CHRISTIANO ADRICOMIO DELFO. TRADUCIDO DE LATIN EN Español por Don Lorenço Martinez de Marcilla, Cavallero de la Orden de Calatrava, Conde de Montoro, Virrey, y Capitan General del Reyno de Mallorca, &c. Año 1679. EN MADRID: En la Imprenta Imperial. A costa de Juan Martin Merinero, Mecader de Libros. In 8.º Encadernação da época em pergaminho.

 



7. ANDRADE, Carlos Manuel de. LUZ DA LIBERAL, E NOBRE ARTE DA CAVALLARIA, LISBOA, NA REGIA OFFICINA TYPOGRAFICA. ANNO M. DCC. XC. (1790) In fólio. Encadernação da época inteira de pele com ferros a ouro e nervos na lombada. Ilustrado com o retrato de D. João VI em anterrosto, 2 vinhetas e 93 gravuras extra texto, algumas desdobráveis, tudo magnificamente desenhado por Carneiro da Silva e gravado por Frois. Obra máxima da tipografia portuguesa do século dezoito, famosa e valiosa internacionalmente, praticamente única no seu género entre nós e possivelmente o melhor tratado equestre da sua época a nível mundial. Exemplar em perfeito estado de conservação, na impressão desta obra muito nítida foi utilizado papel de grande qualidade. Tiragem de 1000 exemplar.

 





30. CHAUMETON, Francois Pierre. FLORE MÉDICALE, Décrite par F. P. Chaumeton, docteur en médecine, peinte par Mme. E. P[anckoucke], et par P. J. F. Turpin. Paris, C.L.F. Panckoucke, éditeur du Dictionnaire des Sciences Médicales, 1814-1818. 6 volumes. In 8.º de 20x12 cm. Encadernação da época inteira de pele mosqueada nas pastas com efeito marmoreado, as lombadas lavradas com finos ferros a ouro, rótulos vermelhos. Obra publicada originalmente em fascículos (correspondendo 90 entregas/livraisons entre 1814-1820)



40. GARMA Y DURAN, D. Francisco Xavier de. ADARGA CATALANA, ARTE HERALDICA Y PRACTICAS REGLAS DEL BLASON, con ejemplos de las piezas, esmaltes, y ornatos de que se compone un Escudo, interior, y exteriormente. Por D. Francisco Xavier de Garma, y Duràn, Secretario del Rey nuestro Señor y su Archivo General de la Corona de Aragon, y Académico de la Academia Real de Barcelona. Barcelona. En la Imprenta de Mavro Martì. Año 1753. In 8.º 3 volumes encadernados em 2. Encadernações da época em pergaminho. Ilustrado a água-forte, com 2 anterrostos gravados e assinados Garma delin, Anastasio Lleopart e Ignasi Valls scul. 2 vinhetas decorativas e 37 gravuras, algumas desdobráveis com cerca de 1500 escudos heráldicos. Palau, III 320. «Obra buscada y que se ha hecho rara.

 

41. GIRARD, Jaques François. L’ACADEMIE DE L’HOMME D’ÉPÉE OU LA SCIENCE PARFAITE DES EXERCICES DEFFENSIFS ET OFFENSIFS, EN 116. PLANS EN TAILLE DOUCE. A LA HAYE, CHEZ JEAN VAN DUREN, 1755. In fólio oblongo. Ilustrado. Encadernação da época inteira de pele.





49. KELLERHOVEN, F. LA LÉGENDE DE SAINTE URSULE. Princesse Britannique et ses onze mille vierges. D’Après les anciens tableaux de l’église de Sainte-Ursule a Cologne reproduits en chromolitographie. Publié par… texte par J. B. Dutron. Planches et texte inèdits. Chez l’Auteur. Impressions lithochromiques par Hangard Maugé. Typographie par Simon Raçon. Paris. 1860. In fólio. Encadernação da época inteira de chagrin vermelho.

 



60. MANUSCRITO - BLASON DE LAS ARMAS, ORIGENS Y DESCENDENCIA de los linajes de los de La Vega, Guerra, Guerreros, Bustamantes, Calderones, con toda la sua notoriedad e diferencia de armas y apellidos... 1667. In-fólio de 31,5 x 22 cm. Com (11) - 148 fls. mss. em papel, e 2 fls em pergaminho contendo dois brasões iluminados de página inteira, de belíssima execução, pintados a lindas cores. Encadernação inteira de pergaminho da época. Contém ainda seis pequenos brasões iluminados no texto.






61. MANUSCRITO – CARTA EXECUTÓRIA SÉCULO XVII – FILIPE III. dada “En la noble Villa de Talavera diezysiete dias del mes de Junio de mill y seiscentos y ocho”. Isentando ConJoan Sigler de Esnada e sua esposa de “pechar” (pagar imposto aplicado aos moradores que não pertenciam à nobreza local ou filhos de algo) certificada pela chancelaria de Valladolid. In fólio de 28x29 cm. Com 34 fólios manuscritos sobre papel. Iluminado com o brasão de armas iluminado a cores sobre pergaminho. Encadernação da época inteira de pele belamente decorada com ferros a ouro nas pastas cercadura e florões com motivos vegetalistas, apresenta alguns picos de traça nas guardas.

 

92. SANTA MARIA, Francisco de. O CEO ABERTO NA TERRA HISTORIA DAS SAGRADAS CONGREGAÇÕES dos Conegos Seculares DE S. JORGE EM ALGA DE VENESA, E DE S. JOAÕ EVANGELISTA EM PORTUGAL. LISBOA. Na Officina de MANOEL LOPES FERREYRA. 1697. In fólio de 35x23,5 cm. Encadernação da época inteira de pele com nervos e ferros a ouro na lombada, super-libris de D. Pedro II. Ilustrado com magnifico frontispício gravado. Exemplar da tiragem especial de grande formato e da biblioteca rei D. Pedro II, com margens muito generosas e impresso sobre magnifico papel de linho muito alvo e encorpado. Folha de rosto impressa a três cores vermelho, negro e verde.





97. SOLINO, Júlio. IOANNIS CAMERTIS MINORITANI, ARTIVM, ET SACRAE THEOLOGIAE DOCTORIS, IN. C. IVLII SOLINI [polistora] / ENARRATIONES. Additus eiusdem Camertis. In fólio. Encadernação recente com lombada em pergaminho e pastas em papel decorativo.

Para os que não poderão estar presente convido-os a uma consulta detalhada deste Catálogo, pois encontrarão seguramente exemplares que vos despertarão algum interesse, para aqueles que se irão deslocar ao Hotel Miguel Angel, nunca será demais uma consulta prévia para uma visita mais criteriosa.

No entanto, todos ficarão mais enriquecidos, nos seus conhecimentos, pela consulta deste mesmo Catálogo.

Saudações bibliófilas.