Falar e escrever sobre Camilo Pessanha é ainda hoje um pouco tortuoso, porque, em relação à sua vida, as cartas da sua correspondência pessoal são poucas, os testemunhos de terceiros são confusos e pouco confiáveis, em função das suas muitas inimizades em Macau, e o campo aberto à imaginação pelo consumo do ópio e pela concubinagem pública com duas chinesas transformou-se terreno para todo o tipo de especulações, algumas das quais tiveram mesmo importância na recepção, interpretação e divulgação da sua poesia.
Camilo Pessanha
Furtado & Reis, fotógrafo
Camilo de Almeida Pessanha nasceu em Coimbra, na freguesia da Sé Nova, no dia 7 de Setembro de 1867. Filho de Francisco António de Almeida Pessanha (estudante de Direito) e de Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira (governanta da casa de seu pai). Foi registado como filho de pai incógnito.
Charles Baudelaire
Nasce no ano da morte de
Charles Baudelaire, que dez anos, com a sua
«teoria das correspondências» tinha lançado as bases do simbolismo francês na obra
«Les Fleurs du Mal»
Charles Baudelaire – «Les Fleurs du Mal».
S. e., s. l., s. d., 18 pp. (paginadas de 1079 a 1093 + 3 pp.).
Edição pré-original publicada na «Revue des Deux Mondes» junho de 1855
Viveu com os seus pais em Coimbra, nos Açores – onde o pai exerceu advocacia – e em Lamego.
Em Lamego no ano de 1878 termina a instrução primária, e em 1884 completa o curso liceal, no Liceu Central de Coimbra, ingressando posteriormente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Aqui se manterá até terminar o curso.
Neste ano de 1884, ano da sua admissão na Universidade de Coimbra, foi perfilhado pelo pai.
Camilo teve quatro irmãos. Por ordem de nascimento: uma irmã, chamada Madalena, que faleceu com 5 aos de idade, em 1875; um irmão, chamado Francisco, nascido em 1872 e falecido em 1948; uma segunda irmã, nascida em 1875, de nome Madalena da Purificação; e um segundo irmão, Manuel Luís, que nasceu em 1878.
Uma terceira irmã do poeta – provavelmente meio-irmã por parte do pai –, chamada Madalena da Paixão, nasceu em, 1887 e era ainda viva em 1967.
Coimbra – Aspecto do rio Mondegovendo-se um dos barcos típicos do Mondego
Aqui toma contacto com as novas ideias literárias, originárias de França, veiculadas pelas revistas “Boémia Nova” e “Os Insubmissos”. No entanto, não tomou qualquer parte activa na sua redacção.
Durante o período académico publicou poemas e outros escritos em revistas e jornais como “A Crítica” ou o “Novo Tempo”, embora tenha oferecido a maioria dos seus poemas.
Os seus poemas, escritos em folhas soltas e oferecidos a pessoas amigas, dispersaram-se ou chegavam mesmo a perder-se, sem que o autor se desse ao cuidado de guardar cópias, sendo no entanto capaz de reproduzi-los de memória quando desejasse.
Influenciado a princípio por Cesário Verde e Pierre Balayet, acabou por ser fortemente influenciado pela poesia de do poeta francês Paul Verlaine e tornou-se o mais puro dos simbolistas portugueses.
Refira-se que a sua intervenção neste período, e talvez a mais significativa, foi um artigo sobe o livro do poeta António Fogaça, a quem reprova a ausência de plano compositivo e a facilidade da estruturação do volume em duas partes, agrupando de um lado os poemas de forma livre e de outro os sonetos.
A vida boémia que fez durante o seu percurso académico, em nada contribuiu para a melhoria da sua débil constituição física. O absinto era a sua bebida favorita e foi acometido por várias crises nervosas.
Em 1890 António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio e Raul Brandão formam no Porto o grupo dos «Nefelibatas», ao qual Eugénio de Castro (que publica nesse ano Oaristos) e Pessanha aderem momentaneamente.
Aliás Camilo Pessanha foi sempre um pouco relutante nas adesões aos movimentos culturais da época, tal pode ser explicado pela sua insegurança, orgulho, apatia e a debilidade constitucional
A 11 de janeiro deste ano a Grã-Bretanha impõe a Portugal o
Ultimatum, com as graves repercussões políticas daí subsequentes.
Coimbra – Universidade
A vida de estudante não parece ter sido fácil. Demorou sete anos para terminar o Curso de Direito.
Como já se disse, viveu em Coimbra com a mãe e os irmãos, visto o pai estar colocado, como juiz em Vila Pouca de Aguiar, donde enviava os parcos recursos para a subsistência da família.
Após a reprovação no 4.º ano, que frequentara em 1887-1888, terá mesmo interrompido os estudos devido a uma muito provável crise nervosa. No entanto, não são de excluir as carências financeiras da família e a necessidade de conseguir recursos para a sua ajuda.
Em 1888, a mãe e a restante família, deixam Coimbra para ir viver com o pai, primeiro em Marco de Canaveses e depois em Monção, enquanto Camilo vai viver para casa de um amigo do pai.
Em junho de 1891 termina o curso de Direito.
António Nobre publica «Só» em Paris.
Em meados de 1893 vive grande aflição para conseguir emprego. Ingressa na magistratura, ocupando o lugar de subdelegado do procurador régio em Mirandela, Trás-os-Montes. Cargo que desempenha por curto espaço de tempo, ao que parece por não se submeter ao que considerava práticas corruptas da magistratura local.
Ainda neste ano, parte para Óbidos como advogado. Presta concursos e tenta conseguir um lugar de professor e de escrivão do Notariado Apostólico.
Nesta cidade, aproxima-se de Alberto Osório de Castro, cuja irmã, Ana de Castro Osório desperta sentimentos amorosos no poeta, levando-o a pedi-la em casamento, no qual ela declina.
Praia Grande - Macau
Imagem da época em que Pessanha aqui viveu
Para alguns biógrafos terá sido o amor não correspondido, a desilusão que a vida de província lhe havia provocado e as humilhações sofridas por Portugal no campo político que terão levado Camilo a mudar o rumo da sua vida; enquanto, que para outros, como Paulo Franchetti, advogam que esta mudança se deveu apenas aos falhanços de conseguir um posto de trabalho em Portugal e às várias hipóteses e tentativas de emigração.
Já em 1891 tentara ir para Timor e em 1892 tentara conseguir um cargo em Angola ou de exercer a advocacia em Damão.
Finalmente, em agosto de 1893, é aberto um concurso para seleccionar professores para o recém-criado Liceu de Macau. Camilo Pessanha apresenta-se como candidato e é aprovado e nomeado como professor de Filosofia Elementar.
Camilo Pessanha em traje de mandarim
Em 19 de fevereiro de1894 embarca para a China, onde permanecerá até à sua morte.
Desempenhou outras funções em simultâneo com a docência, tendo sido advogado, conservador do registo predial (1900) e juiz substituto do tribunal da comarca.
Wenceslau de Moraes
Após a sua emigração os cinco primeiros anos – entre 1895 e 1899 – são dos mais produtivos, pois escreve vinte dos cerca de cinquenta poemas conhecidos.
Em Macau, adquire o gosto pelo coleccionismo de objectos raros e curiosidade pela língua e literatura chinesa. O contacto com a cultura chinesa fez com que escrevesse vários estudos e fizesse traduções de autores chineses.
José Vicente Jorge
Pessanha teve um mestre de língua chinesa e um amigo, o sinólogo José Vicente Jorge, tradutor da Embaixada de Portugal em Pequim, Chefe da Repartição de Expediente Sínico em Macau, grande coleccionador de Arte Chinesa e autor do livro «Notas sobre a Arte Chinesa», que o introduziu no conhecimento da Arte e da Literatura chinesas e com quem publicou um livro de «Leituras Chinesas – Kuok Man Kau Fo Shü».
Camilo Pessanha e José Vicente Jorge
«Leituras Chinesas – Kuok Man Kau Fo Shü»
Os seus conhecimentos de língua chinesa permitiram-lhe traduzir as «Elegias Chinesas», sempre com a reconhecida ajuda do seu “querido mestre José Vicente Jorge, que a emendou em alguns pontos, aproximando-a mais da intenção original”.
Sobre esses mesmos conhecimentos esclarece Danilo Barreiros que Pessanha saberia cerca de 3.500 caracteres chineses.
No que respeita à Arte Chinesa, Pessanha coleccionou um apreciável conjunto de peças que adquiriu durante a sua longa estada em Macau e que ofereceu a Portugal, estando agora depositadas no Museu Machado de Castro, em Coimbra.
Raro par de vasos com tampas em porcelana Chinesa de exportação
decorados em esmaltes da paleta "wucai" (cinco cores) com cena doméstica.
C. 1640, reinado Chongzhen, dinastia. Ming
Como em tudo, os conhecimentos de Pessanha sobre a Arte Chinesa foram sempre muito contestados.
No seu ensaio «Camilo Pessanha, José Vicente Jorge e as Elegias Chinesas», escreve Danilo Barreiros: “... é de referir ter sido publicado em 7 de Fevereiro de 1915 no semanário O Progresso o seguinte convite: “O Governador da província de Macau e D. Berta de Castro e Maia têm a honra de convidar as pessoas das suas relações a visitar hoje, pelas 16 horas, no palácio do Governo, a exposição de preciosidades chinesas da colecção do Exmº. Sr. Dr. Camilo de Almeida Pessanha”. O malogrado governador Carlos da Maia, pessoa de grande cultura e bom gosto, jamais promoveria esta exposição se as peças apresentadas o não merecessem.”
Um prato em porcelana Chinesa de exportação (Companhia das Índias)
Decorado em esmaltes da paleta Família Rosa
com cena doméstica de uma senhora e dois meninos,
c. 1730, reinado Yongzheng, dinastia Qing.
Teve uma vida intima atribulada, dividida entre o consumo demasiado de ópio e a relação com uma companheira chinesa que lhe deu um filho – João Manuel de Almeida Pessanha – nascido em 1896.
Paul Verlaine
Neste ano morre
Paul Verlaine (tido como autor de cabeceira de Pessanha) que em 1874 publicara
«Romance sans paroles», onde dissera que
“ de la musique avant toute chose”. É esta tendência para a música que cultivou na sua obra poética. Pessanha
“o único verdadeiro simbolista da literatura portuguesa e, em absoluto, um dos maiores interpretes do simbolismo europeu” nas palavras de
Barbara Spaggiari, privilegiou o significante em relação ao significado, a melodia, assim como a sugestão, a sensação difusa, a imaginação e o fascínio pelo hermetismo e pela magia verbal na sua obra.
Paul Verlaine
Manuscrito autografo de ''Désappointement''
Publicado em 1913 na ''Biblio-sonnets''.
O último poema escrito antes da sua morte
As poucas viagens de Camilo a Lisboa tiveram como objectivo uma possível recuperação do seu estado de saúde, uma vez que, se encontrava viciado em ópio.
A facilidade e a conveniência das licenças médicas eram um dos atractivos da vida nas colónias.
A primeira ocorreu de agosto de 1896 a fevereiro de 1897, quando regressou de licença.
Terá feito uma possível tentativa de recuperação da degradação física para a qual caminhava pelo sua vida desregrada com o consumo de ópio.
Em 1899 alguns poemas seus são publicados na revista “Ave Azul” e em jornais de província, na sequência da segunda estadia entre outubro de 1899 a maio de 1900.
Regressou a Portugal entre setembro de 1905 e janeiro de1909, pelo que assistiu ao
regicídio de D. Carlos I e do príncipe herdeiro.
Voltará pela última vez em setembro de 1915 (e aqui ficará até março de 1916), ano da publicação dos dois primeiros números da revista
“Orpheu”.
Durante estes períodos conviveu com intelectuais destacados e firmou a sua imagem de poeta singular, sendo já, na década de 1910, bastante conhecido, apesar de ter publicado muito pouco.
Em 1916 recebe uma carta de Fernando Pessoa onde este manifestava admiração pela sua poesia, até então nunca editada, pedindo-lhe a publicação de alguns poemas na revista Orpheu n.º 3 (o que nunca irá acontecer).
Fernando Pessoa
“Há anos que os poemas de V. Ex.a são muito conhecidos, e invariavelmente admirados, por toda Lisboa. É para lamentar – e todos lamentam – que eles não estejam, pelo menos em parte, publicados. Se estivessem inteiramente escondidos da publicidade, nas laudas ocultas dos seus cadernos, esta abstinência da publicidade seria, da parte de V. Ex.a, lamentável mas explicável. O que se dá, porém, não se explica; visto que, sendo de todos mais ou menos conhecidos esses poemas, eles não se encontram acessíveis a um público maior e mais permanente na forma normal da letra redonda, (...) é porque muito admiro esses poemas, e porque muito lamento o seu caracter de inéditos (quando. Aliás, correm, estropiados, de boca em boca os cafés), que ouso endereçar a V. Ex.a esta carta, com o pedido que contém”
Mário de Sá-Carneiro
Também Mário de Sá-Carneiro já se manifestara, em 1914, em entrevista ao jornal “Republica”, sobre a inexplicável ausência de edição da obra de Pessanha: “a minha vibração emocional, a melhor obra de arte escrita dos últimos trinta anos (...) é um livro que não está publicado – seria com efeito aquele, imperial, que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande rimista” .
No ano do suicídio deste poeta, a 26 de abril de 1916, Luís de Montalvor publica quinze poemas de Pessanha no n.º 1 da revista “Centauro”.
Quanto ao seu desempenho profissional em Macau, os seus contemporâneos dividem-se: alguns descrevem-no como jurista brilhante, professor excepcional, patriota apaixonado e orador imbatível; outros, como um desregrado, incapaz de resistir à concupiscência oriental, por de mais achinesado para poder manter-se dignamente como funcionário colonial ou professor.
Mas a poesia de Camilo Pessanha, que foi de grande influência para a geração dos poetas modernistas, só será conhecida pelo público português a partir de 1920, quando Ana de Castro Osório, com base nos autógrafos que Pessanha lhe deixa em 1916, durante a sua última estadia em Lisboa, acrescidos de vários poemas dispersos que Pessanha distribuíra por amigos e conhecidos, compõe a 1ª edição de «Clepsydra» editada pela Lusitania.
Camilo Pessanha – «Clepsydra»
Lisboa, Edições Lusitânia, 1920. 1ª edição
In 8.º de LXXII págs. inums.
A esta 1ª edição vão suceder-se mais duas que lhe darão a sua forma actual:
«Clépsidra». Lisboa, Ática, 1945.
Editado por
João de Castro Osório, que insere uma nota explicativa à 2.ª edição, esta Clépsidra é ampliada em vários poemas, percebendo-se desde logo que para o editor, o livro de Camilo Pessanha não constituía uma unidade, mas seria o volume onde caberiam todos os poemas que se encontrasse do poeta. Uma
reimpressão desta 2.ª edição sai em 1956.
«Clepsidra e outros poemas». Lisboa, Ática, 1969.
Editado, novamente, por João de Castro Osório, esta 3.ª edição traz mais do que os poemas de Pessanha. João de Castro Osório publica as "Elegias Chinesas", um conjunto de traduções que Pessanha fez do chinês. Publica também o ensaio sobre o livro de Alberto Osório de Castro, «Flores de Coral» redigido pelo amigo Camilo Pessanha.
Ao título
«Clepsydra» atribuem-se muitas e variadas origens, no entanto, a mais considerada é a que remete para
Baudelaire, no seu poema
«L’horloge» e ao verso
”La gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide” .
Camilo Pessanha – «Clepsydra»
Poema manuscrito «Rufando apressado» com o local e data,
mencionados no fim , da seguinte forma: «De memoria. Lx., Jan. 15, 916».
BNP Esp. N1/1
A clepsidra é tomada como um objecto que participa das noções concreta e abstracta de tempo. O tempo das clepsidras é um tempo linear, angustiante, que marca o seu escoar.
No livro existe um plano teórico que faz reconhecer desde “Inscrição” (poema de abertura) até “Poema final” (em que o eu esgotou a sua vida, entrando na morte) uma unidade.
Ao longo desta obra, são visíveis os quatro grandes temas característicos do simbolismo: a dor, a solidão, a morte e a fuga para o nada. O termo decadência encontra-se presente no pessimismo de Pessanha, na sua angústia e saudosismo. Esta corrente reage contra o materialismo, procurando a espiritualidade, a imaginação e o ideal.
Após agravamento do seu estado de saúde, acaba por falecer vítima de tuberculose pulmonar no dia 1 de Março de 1926, encontrando-se sepultado no cemitério de S. Miguel Arcanjo em Macau.
Camilo Pessanha – “China : estudos e traduções”
Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1944
1ª ed. XII, 131, [4] p.
Espero ter conseguido mostrar, com este artigo, a dimensão de um autor, “maldito” para uns e idolatrado por outros (quer na sua época quer mesmo hoje) e como a qualidade da obra nem sempre é proporcional à quantidade.
Sem dúvida, a obra poética de Pessanha, na sua escassez material, é o fruto mais puro e ponderado do simbolismo português, marcou uma posição nunca suplantada por nenhum dos outros poetas simbolistas, e pode ser colocado ao lado dos grandes simbolistas europeus.
Os seus poemas simbolistas influenciaram largamente a geração modernista de Orpheu, desde Mário de Sá-Carneiro até Fernando Pessoa e mesmo de outros poetas mais contemporâneos.
Uma coisa é certa, depois de ter escrito este artigo sobre Camilo Pessanha, as dúvidas sobre a sua vida ainda persistem, senão mesmo adensaram-se ... só ficou uma certeza: a qualidade de da sua obra!
Saudações bibliófilas
Bibliografia activa:
Clepsydra (1920); China. Estudos e Traduções (1944); Clepsidra (1945); Clepsidra e Outros Poemas (1969).
Bibliografia passiva:
Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. Coordenação de Eugénio Lisboa. Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994. Vol. III. pp. 54-57.
FRANCHETTI, Paulo – “O Essencial sobre Camilo Pessanha”. Lisboa, INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2008. Colecção “Essencial” n.º 96. 112 pp.
Documentos:
Camilo Pessanha na BNP
Camilo Pessanha – “Palavras à Solta” n.º 13 – Ano 1 Quinzena 2 Maio 2007_8
Camilo Pessanha no inclinar da «Clepsydra»