"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Daniel Filipe - «A Invenção do Amor»




Edição primitiva (1961)

Trago-vos hoje mais um poema – «A Invenção do Amor» – de Daniel Filipe. A poesia deste poema é "inevitavelmente retórica, porque não existe na cidade a experiência autêntica do amor que Daniel Filipe se obriga a inventar. E então há que forçar a entoação das palavras, enfatizá-las, repeti-las, numa tentativa de violentar o real e impor nele o projecto do poeta." (ESPADINHA, Francisco - "Nota sobre A Invenção do Amor", in A Invenção do Amor e Outros Poemas, 6.a ed., Lisboa, 1983, p. 14). As duas composições também coligidas neste volume, evocando, em epígrafe, Nicolás Guillén («Cantoe Lamentação da Cidade Ocupada») e Carlos Drummond de Andrade («Balafda para a Trégua Possível»), retomam a temática do amor-libertação, da concepção do amor como instrumento de combate que une o sujeito poético a uma companheira com quem travará uma luta pela humanização da cidade hostil, até que ela se converta em "cidade prometida"


Daniel Filipe

Daniel Damásio Ascensão Filipe nasceu em 1925 na ilha da Boavista em Cabo Verde. Ainda criança, veio para Portugal onde fez os estudos liceais. Foi jornalista e poeta. Co-director dos cadernos “Notícias do Bloqueio”, colaborou também assiduamente nas revistas “Seara Nova” e “Távola Redonda” e realizou, na Emissora Nacional, o programa literário “Voz do Império”. Combateu a ditadura salazarista, sendo perseguido e torturado pela PIDE.

Num curto espaço de tempo, a sua poesia evoluiu desde a temática africana aos valores neo-realistas e a um intimismo original que versa o indivíduo e a cidade, o amor e a solidão. O amor e a solidão, o indivíduo e a cidade recortam-se nos seus versos com acentos originais, fluentes e por vezes inesquecíveis

Daniel Filipe iniciou a sua actividade literária em 1946 com Missiva, seguindo-se Marinheiro em Terra (1949), O Viageiro Solitário (1951), Recado para a Amiga Distante (1956), A Ilha e a Solidão (1957) – Prémio Camilo Pessanha; o romance O Manuscrito na Garrafa (1960), A Invenção do Amor (1961) e Pátria, Lugar de Exílio (1963).
Faleceu em 1964 em Cabo Verde.


Editorial Presença
Colecção Forma n.º 1
(existem várias edições)

Ficam aqui alguns excertos do referido poema:

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia


“um menino pediu uma rosa vermelha”

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade


“Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos”

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
...

Espero que tenham gostado e, porque não, que tenham ficado com curiosidade suficiente para o ler todo ...digo-vos que vale bem a pena!

Saudações bibliófilas

1 comentário:

Marco Fabrizio Ramírez Padilla disse...

Rui.
¡Se pone muy bohemia la tarde!.
Muy buena poesía y excelente introducción.
Gracias por compartirla
Saludos