"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

domingo, 1 de novembro de 2015

Alexandre Herculano – A Voz do Propheta: o contexto político da obra.



Nas novidades de Outubro de Livraria do Adro de Miguel de Carvalho, encontrei uma obra que me despertou a curiosidade.

Trata-se de A Voz do Propheta de Alexandre Herculano, pelo que tentei averiguar mais um pouco sobre ela.


Alexandre Herculano

É do resultado deste breve estudo que aqui deixo alguns apontamentos.







12464. HERCULANO, Alexandre – A Voz do Propheta. Ferrol (no verso Imprenta de Espeleta calle de la Union, Nº 57), 1836 e Lisboa, Typ. Patriótica, 1837. Dois opúsculos  in-8º de 35 e 32 págs. Brochuras. Folhas com marens desencontradas.

Raríssimo quando acompanhado das duas partes.
PRIMEIRA EDIÇÃO com capas de brochura.
Preço: 450,00€

Obra de grande impacto na época. Obra poética em molde de manifesto, influenciada pelas Paroles d'un Croyant de Lamennaisque e foi publicada anónimamente,com propósitos panfletários contra a revolução setembrista chefiada por Passos Manuel.

Como se depreende do título, o sujeito poético assume-se como Voz da Humanidade, dirigindo-se à Pátria na qualidade de defensor da Justiça e da Moral.

O primeiro opúsculo tem indicação de ter sido impressa em Ferrol, na Galiza, o que, segundo os bibliógrafos do escritor, não é seguro que tenha acontecido.


O Páteo do Gil na Rua S. Bento (já desaparedido)
(onde viveu a família e aqui nasceu Alexandre Herculano)

Aliás, Alexandre Herculano já se interrogara sobre o rumo da literatura portuguesa quando escreveu, e psso novamente a citar:

“Alexandre Herculano não se furtou a tomar parte nessa enorme tarefa. De imediato, preocupado com os rumos da literatura portuguesa, procurou expressar a nova concepção estético-literária do Romantismo em dois importantes artigos – “Qual é o estado da nossa literatura? Qual é o trilho que ela hoje tem a seguir?” (1834) e “Poesia: Imitação – Belo – Unidade” (1835) – ambos publicados no periódico quinzenal O Repositório Literário (1834-1835), da cidade do Porto. (1)

Do ponto de vista formal, A Voz do Propheta constitui um dos raros exemplos de utilização do verso branco ou de prosa bíblica do Romantismo português.


Gravura alegórica da Carta Constitucional de 1826

“Em novembro de 1836, com apenas vinte e seis anos de idade, o escritor Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo aparece propriamente para a literatura portuguesa. Sua estreia literária, marcada por um típico succès de scandale, deu-se através da publicação da primeira série de textos de um panfleto, de nítido teor político-messiânico, que ficou conhecido com o sugestivo nome de A voz do profeta.2 Em fevereiro do ano seguinte, sairia a segunda série3 juntamente com uma nova edição da primeira série,4como prontamente se apressava em informar ao público o seguinte anúncio do Diário do Governo, de 21 de fevereiro de 1837:…” (1)

Esta obra é um ataque panfletário à Revolução de Setembro de 1836. (2)

O movimento teve origem em Lisboa, onde em Outubro de 1836 desembarcavam os deputados eleitos no Norte.

Por essa altura já tinham sido publicados vários folhetos e jornais a pregar a revolução e a atacar o governo cartista, pelo que a população lisboeta, em geral, já tinha tomado conhecimento do que estava prestes a acontecer e acolheu o movimento de braços abertos. Quando os deputados desembarcaram, uma enorme multidão foi ao seu encontro. 



Capa e primeira página do original da Constituição de 1822

Pouco depois, gritava-se pela Revolução, pela Rainha e pela Constituição de 1822 e contra o Governo. Isto ocorreu a 9 de Setembro. A Rainha e o Governo, sem meios para combater a revolução (já que a Guarda Nacional apoiava também ela própria o movimento), entregou o poder aos representantes do Setembrismo. 

Eram eles Vitório de Sousa Coutinho, conde de Linhares, Sá da Bandeira e Passos Manuel. Nenhum deles tinha participado na revolução propriamente dita, mas afiguravam-se como os mais brilhantes e populares defensores das ideias setembristas.


Passos Manuel, o principal obreiro da Revolução de Setembro.

A Revolução de 9 de Setembro foi uma das poucas revoluções na História de Portugal que começou como um movimento estritamente civil e popular, e que só depois recebeu adesão militar, por parte da Guarda Nacional.

“Por sua conta, os setembristas, como ficaram conhecidos os membros da facção revolucionária, assim que foram alçados ao poder, com Passos Manuel à frente do Ministério do Reino, aboliram a Carta Constitucional, impondo ao país a adoção imediata da Constituição democrática de 1822, o que, de fato, aconteceu ainda no dia 10. No dia seguinte, a rainha, acompanhada do marido, o Príncipe D. Fernando, dirigiu-se aos Paços do Concelho para jurar o texto constitucional que fora restabelecido. Com algumas linhas de dramaticidade literária, Oliveira Martins (1996, p. 62) observa que “a mão da rainha hesitava, tremia, ao assinar o papel”, para, em seguida, rematar: “e que não admira. Esse decreto reduzia-lhe a Coroa a coisa nenhuma; tirava-lhe o direito do veto e todos os direitos soberanos”. (1)


Rainha D.ª  Maria II

Podemos enumerar como causas para o se desencadear: a miséria de boa parte do povo operário; a dependência em relação à Inglaterra; a concentração do poder político e económico numa burguesia limitada, predominantemente rural; o cariz fortemente antidemocrático do cartismo e da Carta Constitucional; e a revolução em Espanha de 1836, embora todo o processo político seja muito mais complexo.


Alexandre Herculano

Alexandre Herculano, cartista assumido, não aceitou esta alteração e: “Será, portanto, neste conturbado contexto histórico-político da vida portuguesa que o liberal cartista Alexandre Herculano, descontente com a orientação setembrista, escreverá e publicará A voz do profeta. Inicialmente, como era funcionário público, ele se recusou veementemente a jurar a Constituição vintista, e, como forma de protesto, pediu demissão sumária do cargo, que ocupava desde 1833, de segundo bibliotecário da Biblioteca Pública do Porto. Em carta, datada de 17 de setembro de 1836, ende-reçada a Manuel Pereira Guimarães, então presidente da Câmara Municipal do Porto, Herculano (s.d, p. 178-179) justifica sua decisão, alegando sua inteira fidelidade à Carta:” (1)

No entanto, ainda que nunca aceitasse esta situação, Alexandre Herculano, já instalado em Lisboa, publicaria A Voz do Propheta.

“Pouco tempo depois, já instalado em Lisboa, e reiterando o seu descontentamento, Alexandre Herculano apresenta ao país a primeira série de textos de A voz do profeta. Pode-se mesmo dizer que esta sua obra inicial se transformou numa espécie de resposta pública à Revolução de Setembro. Inspirado, notadamente como modelo literário, nas Palavras de um crente, de Lamennais, que, também em 1836, fora traduzido em Portugal, com evidentes tintas republicanas, por Antonio Feliciano de Castilho,8 o texto de Herculano, além de se constituir numa espécie de manifesto teórico do cartismo, apresenta-se também como uma verdadeira réplica ao padre francês, sobretudo no que se refere às ideias de povo e de soberania popular.” (1)





LAMENNAIS – Paroles d’un Croyant. Deuxième édition. Paris, Renduel, 1834 ; in-8 de 2 feuillets non paginés-237-(1) pages, demi-reliure de l'époque veau fauve, titre et décor aux fers, faux-nerfs et frises dorés au dos ; tranches jaspées, gardes de papier à la cuve, couverture non conservée. (eBay)

Espero, com, estas notas, ter-vos despertado a tenção para a leitura da obra e sobretudo para o estudo deste período bem conturbado da História de Portugal.

Saudações bibliófilas.

Notas:

(1) MARQUES, Wilton José – Alexandre Herculano e A voz do profeta in Navegações, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 40-47, jan./jun. 2012.
(Estudo de que recomendo vivamente a sua leitura atenta.)



(2) Revolução de Setembro de 1836 – Wikipedia.

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