"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

sábado, 9 de junho de 2012

Um manuscrito que nos revela um gosto bibliófilo




ALMEIDA, Pe. José Caetano de – Carta autógrafa (3 págs.; 22x15cm.)

Em conversa com um livreiro-antiquário este confidenciou-me:

"De facto não é muito vulgar no nosso país o coleccionismo de autógrafos, pessoalmente acho que tem a ver com uma questão mais de cultura do que da parte económica. Eu tenho para mim que há 3 “estádios” do bibliófilo! O 1º é coleccionar primeiras edições, o 2º é coleccionar temas (o que já implica comprar obras estrangeiras sobre esse tema!) e o 3º é coleccionar autógrafos! Para este 3º estádio o bibliófilo tem que já ter passado pelos outros, e só então começa a “sentir a história na mão” quando lê uma carta ou um documento. Eu sou suspeito nisto, mas como desde há cinco anos tenho tido a sorte (por força dos meus leilões de manuscritos) de manusear cartas inéditas de personagens importantes da nossa história, confesso que cada vez mais me “ comovo” (e é este verdadeiramente o termo que me ocorre para definir essa sensação) quando leio certas passagens!"


ALMEIDA, Pe. José Caetano de – Carta autógrafa (3 págs.; 22x15cm.)
(assinatura autógrafa)

Não é um documento histórico, de inegável importância ou raridade, que me leva a apresentar-vos esta carta manuscrita, mas sim por ela abordar temas de ordem literária e com um remate final que nos revela um certo pendor bibliófilo na escolha do exemplar que o autor faz para si.


ALMEIDA, Pe. José Caetano de – Carta autógrafa (3 págs.; 22x15cm.)

Trata-se de uma carta, assinada e datada do Paço de 10 de Maio de 1748, do Pe. José Caetano da Ameida dirigido a Filipe José da Gama, Academico da Historia e árcade, o bibliotecário de D. João V, aquém aquele pedira a opinião e conselhos sobre um elogio que acabara de escrever.


ALMEIDA, Pe. José Caetano de – Carta autógrafa (3 págs.; 22x15cm.)
(destinatário e data)

Nesta carta o Pe. José Caetano de Almeida analisa e aconselha algumas alterações à obra que lhe fora enviada:

“ … Remeto a V.M. o Elogio em todo o sentido elegante do Sr. Cardeal da Mota… … No frontispico onde V.M. nomea ao dito Cardeal = e primeiro Ministro de Estado = melhor será dizer = Ministro do Despacho Universal = ou = Ministro do Despacho del Rey N. Sr. = porque assim declarado he titulo de dignidade, ououcupação, que se pratica especialmente nos Reynos de Castella, e a esta imitação o declarou assim S. Magestade na pessoa do Cardeal Cunha; e no corpo do Elogio pode V.M. usar algumas vezes do quazi sinonimo de Ministro primeiro do Estado, ou da Monarchia Portugueza para fazer ainda mais agradável a sua lição. … … Deve V.M. fazer especialíssima Memoria da selectíssima e muito copiosa Livraria que ajuntou, e deixou o Sr. Cardeal… … Quando V.M. aponta o anno natalício deve declarar que a Vila de Castello Branco foy o lugar do seu nascimento;”


ALMEIDA, Pe. José Caetano de – Carta autógrafa (3 págs.; 22x15cm.)
(passagem em que descreve o exemplar pretendido)

Como bom bibliotecário, e revelando um elevado espírito de cultura bibliófila em minha opinião, antes de terminar pede ainda: “… assim que se acabar de imprimir este Elogio alem do exemplar, que heide dar áquella pessoa peço a V.M. mais alguns, de que hum hade ter a circunstancia de não ser cortado ou aparado; [o sublinhado é meu] e outro he para dar a meu Amo antes que lhe venhão as propinas das licenças, que sempre vem tarde, e a mas horas.”

Segundo Inocêncio (II, 299), Filipe José da Gama, publicou no mesmo ano o Elogio na morte do Ex.mo sr. Dr. João da Motta e Silva, Cardeal da Sancta Igreja de Roma, e Primeiro Ministro d’Estado. Lisboa, Tipografia de Pedro Alvares.

E a propósito do conteúdo desta carta, aqui fica um rápido esboço para sabermos quem foi o Cardeal da Mota.


Cardeal João da Mota e Silva

Dom João da Mota e Silva (dito o Cardeal da Mota) nasceu em Castelo Branco a 14 de Agosto de 1685.

Estudou na Universidade de Coimbra, obtendo um doutorado. Exerceu o cargo de cónego da Colegiada de São Tomé, tendo sido feito cardeal por Bento XIII no Consistório de 2 de Novembro de 1727, a pedido de João V de Portugal, com o Breve apostólico de 18 de Dezembro, o papa enviou-lhe o barrete cardinalício, mas ele nunca foi a Roma para receber o barrete e o título.

Foi eleito arcebispo de Braga em 1732, mas nunca obteve confirmação da Santa Sé.

Grande amigo do rei, após a morte de Diogo de Mendonça Corte Real, em 1736, foi convidado pelo rei para exercer o cargo de secretário de Estado (equivalente ao cargo de primeiro-ministro de Portugal). Era irmão do padre Pedro da Mota e Silva, o qual viria a ser secretário de Estado do Reino (ministro do interior) também durante o governo de D. João V.

Faleceu em Lisboa a 4 de Outubro de 1747.

Espero com estes modestos apontamentos ter despertado o vosso interesse para uma leitura mais atenta de alguns manuscritos que nos passam pelas mão e nem sempre lhes damos o devido relevo.

Saudações bibliófilas.



3 comentários:

Marco Fabrizio Ramírez Padilla disse...

Estimado Rui.
Me parece que el comentario del librero anticuario ilustra muy bien la fascinación que producen los documentos manuscritos. Entre las muchas virtudes que tienen los autógrafos; es que lo que ahora no podía ser demasiado importante, en el futuro puede serlo.
Aunque cualquier documento que menciona libros y bibliotecas para nosotros es importante,

Un abrazo

Rui Martins disse...

Estimado Marco

Obrigado pelo teu comentário.

Coloquei propositadamente a análise do meu amigo livreiro-antiquário, pois que esta reflecte de uma maneira simples, mas bem elucidativa, todo o significado e importância dos manuscritos.

Claro que só tempo ditará se um determinado manuscrito/autógrafo de hoje será importante no futuro, daí que por vezes muitos textos de grande valor se vão perdendo ao longo dos anos (e agora em que o espaço físico para a sua guarda é escasso e em que a comunicação via internet ultrapassou largamente o escrito ainda serão mais raros esses textos daqui a alguns séculos … mas isso será um problema para outras gerações!)

Mas para nós “simples biblófilos” o mais importante são manuscritos sobre bibliotecas e livros (e se aparecem pequenos textos/poemas originais anteriores à sua impressão “será ouro sobre azul” como dizemos), mas convirá não esquecer que em muitas colecções temáticas - viagens ou história, por exemplo – podemos encontrar manuscritos ou cópias manuscritas inéditas (como livros impressos), que irão enriquecer as nossas bibliotecas com documentos que completam ou podem mesmo esclarecer dúvidas de alguns dos livros das nossas colecções (livros que para mim continuam a ser “as jóias” das nossas bibliotecas!)

Um forte abraço

Galderich disse...

Rui,
Las cartas manuscritas me recuerdan siempre a los esbozos de dibujo ya que tienen la frescura y la espontaneidad que la obra terminada a veces no tiene.
Los manuscritos epistolares nos permiten entrar en la intimidad y algunas veces, no siempre, podemos conseguir informaciones interesantísimas y reveladoras de la época, de los personajes... En fin, un acierto tu apunte de hoy.