"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

terça-feira, 19 de junho de 2012

Abade de Faria – um apontamento a propósito de um livro



Abade Faria

Alain Marchiset apresentou, para venda, no seu blog Livres Anciens et Curieux um livro de um autor português que para alguns será um pouco desconhecido – o Abade de Faria.

Mas quem foi o Abade de Faria?

Podemos afirmar que, como cientista, demonstrou o carácter puramente natural da hipnose, tendo sido ele o primeiro a descrever com precisão os seus métodos e efeitos. Soube antever as possibilidades da sugestão hipnótica no tratamento das doenças nervosas.


Abade Faria – estátua em Panjim, capital do estado de Goa
(escultura de Ramchandra Pandurang Kamat of Madkai – 1945) 

José Custódio Faria mais conhecido por Abade Faria, filho do Caetano Valeriano Faria e Maria de Sousa, nasceu a 30 de Maio de 1756 em Candolim, concelho de Bardez, distrito de Goa antigo Estado da Índia. A família do abade, de portugueses, só possuía os nomes ocidentalizados – o pai era brâmane saraswati. Tinha ainda uma irmã adoptada, de nome Catarina. Os pais do abade mais tarde separaram-se, ambos aderindo à vida monástica.

Aos 15 anos de idade saiu de Goa acompanhado de seu pai com destino a Lisboa, onde chegou a 23 de Novembro de 1771. Passado pouco tempo seguiu para Roma, a fim de estudar no Colégio da Propaganda. Em 12 de Março de 1780 foi ordenado presbítero; doutorou-se em Filosofia e Teologia pela Universidade de Roma.


Papa Pio VI

As suas capacidades causaram boa impressão no papa de então (Giovanni Angelo Brachi - Pio VI), que o convidou para que realizasse um sermão na Capela Sistina, sermão que foi escutado por Sua Santidade em pessoa.

Regressou a Portugal, onde pela sua inteligência, saber e compostura moral chegou a conquistar grande fama de pregador.


D. Maria I. Rainha de Portugal
[Visual gráfico. - Lisboa : em caza de Fran.cº M.el Pires, [entre 1760 e 1783].
1 gravura : água-forte e buril, p&b ; 25,2x17 cm (matriz)

A rainha D.ª Maria I, “a louca” acabaria por requisitar um sermão do abade. Reza a lenda que o Abade Faria, ao ver a audiência tão ilustre “travou” a língua, não conseguia pronunciar palavra alguma. O seu pai ao aperceber-se do que se passava, engatinhou debaixo do púlpito e sussurrou em concanim (a língua local goesa) ao filho: ”são apenas vegetais…corte os vegetais!”. Depois da ajuda paterna, o medo dissipou-se e o sermão seguiu tranquilamente.

Esta experiência curiosa causou impressão fulminante no Abade Faria: como poderia uma simples frase fazê-lo perder o pânico momentâneo que o tomou?

Daqui terá surgido o seu interesse pelos estudos sobre hipnotismo, que o tornaria num dos grandes pioneiros da técnica.

Em 1787, Faria é implicado na conhecida “Revolta dos Pintos” também designada por “Conjuração dos Pintos” (o equivalente goês da “Inconfidência Mineira” brasileira), cujo objectivo era terminar com a administração portuguesa, mas que não obteve êxito, pois que foi denunciada, e duramente reprimida pelas autoridades portuguesas.

Acabaria por emigrar para Paris em 1788, e fixar residência na Rua de Ponceau. Foi um fervoroso defensor da Revolução Francesa (1789).


Déclaration des droits de l'homme et du citoyen
(10 de Agosto de 1793)

Pelo seu carácter irrequieto passa em 1795 a liderar um dos batalhões revolucionários, comandando uma das secções do tristemente célebre “10 do Vendimario”, que atacou a Convenção e em cuja queda tomou parte activa, pelo que conseguiu ter relações com altas personalidades políticas, frequentando com Chateaubriand (1), os salões de Madame la Marquise de Coustine, amigo do Marquês de Puységur (2) a quem dedicou o seu livro De la cause du sommeil lucide ou étude de la nature de l'homme.


François-René de Chateaubriand
(Pintura de Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson)

Em 1797 é preso por razões desconhecidas, passando um bom tempo numa solitária do temido presídio “Chateau d’If”. Lá, passa a maior parte do tempo a praticar as suas teorias de auto-sugestão. Algum tempo depois é liberto.

Em 1811 foi nomeado Professor de Filosofia da Universidade de França e eleito sócio da Societé Medicale de Marseille, ou seja membro da Academia de Medicina. Facto curioso por nunca ter sido médico.


Armand-Marie-Jacques de Chastenet,
Marquês de Puységur (1751–1825)

Em 1813 o Abade Faria, que era discípulo do Marquês de Puységur, soube que a divulgação de sonambulismo tinha crescido de importância; aproveita a oportunidade e regressa então a Paris, onde prega uma doutrina nova, que contribui para a aumentar a sua notoriedade; ganha uma aura auspiciosa, mostrando ser um rival de Mesmer (3) e dá início às suas práticas magnéticas.


Franz Anton Mesmer

Apesar de apodado de charlatão por uns, de possuir poderes divinos por outros, supondo-o as autoridades religiosas que ele está em pacto com o diabo, chega a revolucionar academias e agitar durante muitos anos outros centros científicos e as doutrinas teológicas.

Com a sua obra De la cause du sommeil lucide, ou étude de la nature de l'homme (Da Causa do Sono Lúcido no Estudo da Natureza do Homem), publicada em Paris em 1819, provoca intermináveis polémicas.

Mas o certo é que, rapidamente a fama do criador do hipnotismo vai crescendo, tornando-se na cidade de Paris, o alvo de atenção de todos. Foi ele o primeiro no mundo científico que defendeu a verdadeira doutrina sobre a interpretação dos fenómenos sonâmbulos, chegando a hipnotizar quase cinco mil pessoas. Escritores famosos de França, Bélgica, Portugal e Alemanha reconheceram o Abade Faria como o “Pai da Escola de Nancy”.

Porém, torna-se desgostoso ao ver que visões opostas à sua teoria de hipnose prevalecem. Acusado de charlatanismo, resolve enfim recolher-se a uma ordem monástica obscura,

Pobre e abandonado, quando ainda se encontrava em impressão o primeiro volume da sua célebre obra, faleceu duma apoplexia fulminante em Paris no dia 20 de Setembro de 1819.


Hippolyte Bernheim

O Professor Bernheim (4), um dos estudiosos consagrados à causa do hipnotismo, referindo-se ao Abade Faria dizia: “A Faria pertence o incontestável mérito de ter estabelecido em primeiro lugar a doutrina e o método do hipnotismo pela sugestão e de tê-lo nitidamente libertado das doutrinas singulares e inúteis que ocultavam a verdade. É na realidade, quem deu, antes de todos a concepção nítida e verdadeira dos fenómenos de hipnotismo”.

O Abade Faria foi muito popularizado e imortalizado pelo grande escritor francês Alexandre Dumas no seu conhecido romance O Conde de Monte Cristo, de aqui fica uma das suas edições mais antigas:


DUMAS, Alexandre. Le Comte de Monte-Cristo . . . Publie par le Siecle. Paris: Bureaux du Journal Le Siecle, [1845]-1846. Large quarto (301 x 213 mm). [4], 408 pp.
©Heritage Book Shop, ABAA

Existe também um importante estudo sobre a vida de Abade Faria intitulado Padre Faria na História do Hipnotismo, 1925 da autoria do eminente Professor Dr. Egas Moniz (prémio Nobel de Medicina juntamente com Walter Hess, em 1949).

Mais recentemente leia-se:


RODRIGUES, Santana. O ABADE FARIA. A vida e obra do misterioso personagem do romance "O Conde de Monte Cristo". Empresa Contemporânea de Edições. Lisboa. 1946. In-8.º de 167 pp.
©O Homem dos Livros - Porto

Já tracei um esboço biográfico de quem foi o Abade Faria, resta agora ver o livro em causa, apresentado por Alain Marchiset::




FARIA (Abbé J.C. de). De la cause du sommeil lucide, ou étude de la nature de l'homme. Vol. 1 (seul paru) Paris, chez Mme Horiac, 1819, in 8°, de 2ff. 463 pp., cart. papier marbré époque, p. de titre rouge, rousseurs et qq. annotations en marge. Exemplaire avec relié in fine une copie manuscrite de l'époque de l'article de Virey "Analyse de l'ouvrage de l'abbé Faria intitulé : De la cause du sommeil lucide" paru dans le journal complém. du Dictionnaire des sciences médicales, 1820, T.6 p.169 (23pp. d'une fine écriture penchée) (ex-libris Etienne Cluzel)



Rarissime et mythique édition originale. C'est à l'abbé Faria (1756-1819), qu'appartient incontestablement le mérite d'avoir le premier établi la doctrine moderne et la méthode de l'hypnose par suggestion. Il est en particulier le premier à nier l'existence du fluide magnétique ; à attribuer les phénomènes de somnambulisme à l'impressionnabilité psychique du sujet hypnotisé ; à découvrir le procédé suggestif ou psychique pour provoquer le somnambulisme ; à proposer une théorie psychologique pour expliquer les phénomènes du somnambulisme. Faria influencera surtout le Dr. Alexandre Bertrand et le Gal François Joseph Noizet, ainsi qu'Ambroise-Auguste Liébeault, le chef de file de l'École de Nancy. Il est singulier que dans l'esprit du grand public son nom soit surtout resté attaché au personnage du roman d'Alexandre Dumas "Le Comte de Monte Cristo". ¶ Caillet n°3815 - Crabtree no. 294:" This book by the Abbé Faria is one of the most important in the history of animal magnetism. Faria anticipated the views of Alexandre Bertrand by some years, contending that the true cause of the phenomena of animal magnetism was psychological. He believed that, contrary to Mesmer's teaching, there is no magnetic fluid, and that, contrary to Puységur's teaching, the power of the will of the magnetizer is not involved. In other words, Faria states that there is no extrenal agent that produces the efefects. Rather , the magnetizer makes use of ' suggestion' to produce a state of "lucid sleep", as Faria calls artifical somnambulsim. He says that the extraordinary powers of lucid sleep are always present in human beings, but normally unavailable. Because the sleeper does not recognize them as natural abilities, they are attributted to an external agent. Faria also states that the healing powers of ' lucid sleep' are due to the very powerful effects of suggestions coming from the operator. " - not in the Norman Mesmer col. (only the reprint edit. of 1906) - Pas dans Dorbon - Ellenberger découverte de l'inconscient p.66-67. (5)

Espero que o tema tenha despertado a vossa curiosidade.

Saudações bibliófilas.


Notas:

(5) Para os mais interessados, ou simplesmente curiosos, podem aceder a uma cópia pdf em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k83286f


4 comentários:

Marco Fabrizio Ramírez Padilla disse...

Estimado Rui.

Me gustó mucho el relato del Abad de Faria, cuenta con todos los elementos que hacen las grandes historias.
Otra de las virtudes de los libros, es que son motivo para retomar a tan interesantes personajes.

Saludos.

Marco

Rui Martins disse...

Estimado Marco,

Confesso que mesmo para mim, para quem a figura do Abade de Faria não era totalmente estranha, com esta pequena “investigação” acabei por descobrir alguns aspectos que me eram desconhecidos na sua trajectória.

Como bem dizes os livros, para além da sua posse e leitura, devem levar-nos a desvendar um pouco mais sobre eles e os seus autores.

Um abraço

Para a Posteridade e mais Além disse...

COME BEN DIZEIS,,,,LOS LIBRES ONDÉ QUE TÁ O PDF...POIS FALTA A DESCENDÊNCIA DE ANTU-SHENOJ TATARAVÔ DO DITTO ABADE ...

Rui Ribeiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.