"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

domingo, 19 de dezembro de 2010

Os Irmãos Laemmert – os primórdios do livro impresso no Brasil




Retrato de D. João VI por Domingos António de Sequeira
Século XIX [1818-1826]
Óleo sobre tela, madeira entalhada e dourada 131,5 x 111,5 x 8 cm
Fotógrafo: Manuel Silveira Ramos © IMC / MC

Tudo começou no Rio de Janeiro, sede da Corte de D. João VI.

A história do livro no Brasil tem o seu começo quando, em 1808, a corte portuguesa se transfere para o Brasil para se precaver das invasões francesas.

Com D. João VI vêm, além de seu séquito, o primeiro prelo, de madeira e fabrico inglês e a Biblioteca Real.

D. João VI ordenou a instalação da Imprensa Régia. No entanto, “Quem quisesse publicar alguma coisa percorreria um longo caminho” (Isabel Lustosa), pois essa imprensa funcionava sob uma poderosa censura. A imprensa brasileira de então não era sinónima de liberdade ou de manifestação da opinião pública. Era proibida a impressão fora das oficinas da corte e publicava-se apenas o que era autorizado: o que não ofendia o Estado, a religião, os costumes.

Todo o original deveria ser enviado ao ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, donde passava para o Desembargo do Paço e finalmente chegava à Mesa Censória.


Gazeta do Rio de Janeiro
Setembro de 1808 - n.º 1

Da Imprensa Régia saiu o primeiro jornal brasileiro, a Gazeta do Rio de Janeiro, em 10 de Setembro de 1808, que só imprimia notícias de interesse do governo. Nesse mesmo ano surgiu em Londres, para fugir à Censura, O Correio Braziliense, do jornalista Hipólito José da Costa.


O Correio Braziliense
Junho 1808 - n.º 1

Depois de revogada, pelo decreto de 2 de Março de 1821, a proibição de se imprimir, multiplicaram-se os jornais, folhetos, revistas. Surgiu a primeira revista, As variedades ou ensaios de literatura em 1812 na Bahia. Em 1822, ano da Independência do Brasil, já havia 53 jornais em circulação.

Tomás António Gonzaga – Marília de Dirceu
Rio de Janeiro, Na Impressão Regia, 1810

O primeiro livro que se publicou foi Marília de Dirceu de Tomás António Gonzaga em 1810. (1) Nas Cartas Chilenas - conjunto de poemas que circulam anonimamente em Vila Rica, entre 1787 e 1788 -, os seus versos assumem um tom satírico. Aponta as irregularidades do governo de Luís da Cunha Menezes, configurando o ambiente de Vila Rica (actual Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil) ao tempo da preparação política da Inconfidência Mineira.


Tomás António Gonzaga – Cartas Chilenas
Rio de Janeiro, Eduardo & Henrique Laemmert, 1863

O Brasil desta época vivia sob forte influência cultural da França. Nesse contexto dois nomes se destacam e têm extrema importância para a cultura livreira do país: Laemmert e Garnier. Eram duas casas editoras que importavam muitos livros franceses para uma elite rica e culta. Enquanto essa pequena parcela gozava da mais refinada cultura, o restante dos brasileiros, cerca de 84% da população, não sabia ler.

A primeira a chegar foi a Livraria Universal fundada em 1833 por Eduard Laemmert, a quem, cinco anos mais tarde, se juntou o irmão Heinrich. Esta foi tão bem sucedida que logo abandonou o perfil exclusivo de loja para se tornar também editora. Em 1837 Eduard comprou três impressoras, viajou a Paris para aprender tipografia e em 2 de Janeiro de 1838 inaugurou a Typographia Universal. O negócio progrediu a tal ponto que a facturação cresceu trinta e uma vezes em apenas vinte anos.


Eduard Laemmert


Heinrich Laemmert

Os negócios com livros prosperavam. Almanaques, clássicos da literatura, dicionários, colecções, obras técnicas e académicas; os irmãos Laemmert são justamente considerados os responsáveis pelas primeiras publicações da qualidade do Brasil. (2)

Num enorme casarão da rua dos Inválidos trabalhavam, em 1859, cento e vinte pessoas, que imprimiam mil folhas por dia. Na oficina de encadernação, outros cinquenta homens produziam cinco mil livros encadernados por mês, além de catorze mil brochuras. Elogiada pelos operários e com os méritos reconhecidos pelo próprio imperador (que em 1862, fez uma visita oficial à casa), a Typografia Universal baseou muito do seu êxito no Almanaque Laemmert – nome pelo qual ficou conhecido o Almanaque administrativo, mercantil e industrial da corte e província do Rio de Janeiro.


Almanak Laemmert (1844)

Nascido como uma despretensiosa folhinha literária em 1839, bem mais completo que os concorrentes, não tardaram a cobrir notícias de todo o Império, e em 1875 saiu com 1700 páginas.

Embora o Almanaque fosse a imagem de marca da editora, outros livros contribuíram para o êxito da Livraria Universal. A maioria eram guias de bolso que ostentavam títulos de grande apelo popular, como Dicionário de medicina doméstica, Sucintos conselhos às jovens mães para o tratamento racional de seus filhos (ambos de Theodore Langgaard, médico dinamarquês radicado no Brasil), Colecção completa de máximas, pensamentos e reflexões, do marquês de Maricá, e Selecções de poesias dos melhores poetas brasileiros desde o descobrimento do Brasil. Obras técnicas e académicas também tinham vez, como Navegação interior do Brasil e Estudos de literatura contemporânea.


Johann Wolfgang Von Goethe (1775)

Os Laemmert publicavam ainda livros traduzidos do francês, mas o seu forte foram os originais alemães. Editaram Goethe (Amorosas paixões do jovem Werther) e foram pioneiros na literatura infantil, com As viagens de Gulliver, Contos selectos das mil e uma noites e Aventuras pasmosas do celebérrimo Barão de Münchausen, alguns traduzidos por nomes famosos como Capistrano de Abreu e Olavo Bilac.

Outro campo no qual a Universal se aventurou, embora pouco, foi o dos livros didácticos Por que me ufano do meu país de Afonso Celso (1900), escrito para celebrar os quatrocentos anos do descobrimento do Brasil, teve a primeira edição esgotada em alguns meses e tornou-se leitura obrigatória nas escolas secundárias.




Affonso Celso – Porque me ufano do meu paiz.
Rio de Janeiro/São Paulo, Laemmert & C. Livreiros-Editores, 1905.
3ª edição revista. Brochura, 202 págs.

A Livraria Universal fechou suas portas em 1909, logo depois do incêndio que lhe destruiu a biblioteca e os arquivos. Em 1910, os direitos de publicação dos livros foram negociados com a Francisco Alves, e o Almanaque foi vendido ao português Manuel José da Silva.

Em 1942, outro incêndio pôs um ponto final na trajectória do mesmo. A tipografia, com o nome de Gráfica Laemmert, continuou a funcionar e voltou a editar em 1970. Mas, dos Laemmert, só guardou o nome.


Baptiste Louis Garnier

Ao lado dos irmãos Laemmert, dividia o mercado de livros a Livraria Garnier, de seu fundador e editor, Baptiste Louis Garnier. Garnier editou clássicos estrangeiros e foi um dos primeiros a editar os autores brasileiros. Foi responsável também pelo lançamento de romancistas brasileiros, como José Veríssimo, Olavo Bilac, Artur Azevedo, Bernardo Guimarães, Sílvio Romero, João do Rio, Joaquim Nabuco. Baptiste Louis adoeceu e seu irmão, Hippolyte, assumiu a editora. Personalidade reservada e pouco ousado, Hippolyte não arriscava seu nome em autores desconhecidos. A sua política de compra definitiva de direitos de autor beneficiou a empresa, mas prejudicou autores que se iniciavam na vida editorial. Entre eles, Machado de Assis, de quem foi o primeiro e principal editor e de quem comprou, a preços ínfimos, os direitos de autor de todas as suas obras.


Livraria Garnier

Enquanto Laemmert editava publicações populares e manuais, em parque tipográfico situado na rua dos Inválidos, Garnier sofria uma certa discriminação por enviar para Paris as obras que editava. Além da sua política de compra definitiva dos direitos, Garnier, era, também por isso, visto com um “editor às avessas”: não incentivava a produção local de livros.


Livraria Garnier

Em busca de novos mercados, outros livreiros-editores emigraram para o Brasil na primeira metade do XIX.


Notas:

(1) Tomás António Gonzaga (Dirceu) (Porto,1744- Moçambique,1810)
Embora português de nascimento, Tomás António Gonzaga viveu no Brasil parte de sua infância. De volta a Portugal, formou-se em Coimbra, mas a partir de 1782 passou a exercer em Vila Rica o cargo de ouvidor.


Tomás António Gonzaga

Aos 40 anos de idade praticamente, Gonzaga apaixonou-se por uma adolescente de 17 – Maria Doroteia Joaquina de Seixas. A família da jovem opunha-se ao namoro. Quando o poeta já vencia a resistência da família, foi preso (1798) e enviado para a ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, como participante da Inconfidência Mineira.

Os últimos dezassete anos de sua vida passou-os no degredo, em Moçambique, casado com a filha de um comerciante de escravos. Gonzaga nunca se casou com Maria Doroteia, mas esse namoro tornou-se o primeiro mito amoroso de literatura brasileira e inspirou algumas das suas mais belas obras líricas.

(2) O Almanaque administrativo, mercantil e industrial do Rio de Janeiro para o ano de 1850, indicava a existência dos seguintes mercadores de livros:

- Agostinho de Freitas Guimarães e C., rua do Sabão, 26
- Albino Jordão, vende, compra e troca livros e toma a comissão de obras novas, rua do Ouvidor
- Crémiére, rua da Alfândega
- Désiré Dujardin, livraria bela-francesa, - rua do Ouvidor
- Eduardo & Henrique Laemmert, Livraria Universal, ruada Quitanda
- Firmin Didot Irmãos, rua da Quitand
- Garnier Irmãos, rua do Ouvidor
- Gerard e de Chirten, rua da Quitanda
- Junius Villeneuve, rua do Ouvidor
- Luís Ernesto Martin, Livraria Portuguesa, rua dos Ourives
- Mongier, rua do Ouvidor
- Serafim Gonçalves Neves, rua da Quitanda
- Soares e C., rua da Alfandega
- Souza e C., rua dos Latoeiros.


Fontes consultadas:

HALLEWELL, Laurence – O livro no Brasil. São Paulo: Edusp/T.A.Queiroz, 1985.
Jangada Brasil – Almanaque Suplemento de Variedades – Janeiro de 1999 – n.º 05


Saudações bibliófilas.


4 comentários:

Galderich disse...

Rui,
Un viaje muy interesante por el mundo del libro en portugués del s. XIX.
Gracias una vez más.

Marco Fabrizio Ramírez Padilla disse...

Rui.

Un artículo muy completo e interesante sobre el inicio de la imprenta en Brasil. Siempre me ha causado inquietud la fecha tan tardía de su establecimiento.¿cual será la razón? ¿causas políticas, o religiosas?

Saludos bibliófilos.

Anónimo disse...

Rui,

Parabéns por mais este belo texto informativo.

Saudações,

Angelo

Rui Martins disse...

Galderich,

Estes apontamentos servem apenas para relembrar – pois é do conhecimento de quase todos – o percurso do livro impresso e das suas vicissitudes, e aspectos particulares, em cada um dos vários pontos do “universo” português.


Marco Fabrizio,

O inicio tão tardio do livro impresso no Brasil deve-se fundamentalmente a razões politico-económicas. O Brasil só deveria fornecer ouro e produtos agrícolas, quanto a indústrias estavam interditas, e a imprensa era de alto risco para manter estes pressupostos: havia que limitar o contágio das ideais liberais que sopravam da Europa e, sobretudo, após a Independência dos Estados Unidos.

Razão da grande facilidade de penetração dos franceses no mercado livreiro brasileiro, mesmo com as suas edições francesas – embora só uma restrita elite de menos de 10% pudesse usufruir do prazer da sua leitura.

Curiosamente os nossos liberais ainda foram mais retrógrados do que os governantes do tempo do absolutismo no seu relacionamento com o reino do Brasil, o que facilitaria a sua independência e escapar aos tumultos republicanos e caudilhescos das recém independentes colónias espanholas.


Angelo,

Obrigado pelo teu comentário.
Como bem dizes, pretendo apenas informar, ou melhor recordar, como já referi, pois outros estudos podem e devem ser consultados para um conhecimento mais aprofundado desta temática.

Um abraço para vocês.