Um coleccionador de livros
Paulo Costa Domingos da Frenesi
Loja (http://frenesilivros.blogspot.pt/)
fez uma montra que divulgou junto dos seus clientes e amigos, onde se podem
encontrar alguns livros de inquestionável interesse.
Claro que se trata de uma amostra
muito pequena do vasto acervo que espera pela nossa pesquisa e consulta.
Mas vou então aquilo que nos
interessa.
Embora não seja muito frequente,
desta vez vamos encontrar uma boa proposta na temática do livro antigo, pelo
que é exactamente nessa área que me vou debruçar na minha apresentação.
ERASME [DESIDERIUS ERASMUS] – L’Éloge de la Folie. Trad. do latim
por M. [monsieur Nicolas] Gueudeville. Gravuras de C. Eisen. s.l. [Paris], s.i.,
1771. «Nouvelle Édition,
revue & corrigée fur le Texte de l’Édition de Bâle. Et ornée de
nouvelles figures. Avec des notes.» (2.ª edição). 16,1 cm x 10,5 cm. 8 págs.
(não numeradas) + XXIV págs. (prefácios) + 13 folhas em extra-texto (gravuras).
Profusamente ilustrado.
Encadernação antiga com lombada
em pele gravada a ouro, pastas forradas a tela, bonitas vinhetas gravadas a
ouro nos remates da pele. Pouco aparado. Sigla de posse (ou marca de
encadernador?) ao rés da lombada: J. M. S. V.
Exemplar muito estimado; miolo
limpo, papel sonante. Carimbo do livreiro-antiquário
Gris y Zavala (Lima) no rodapé do frontispício. Ostenta colado no verso da pasta
anterior o ex-libris de Manuel R. Pereira da Silva.
PEÇA DE COLECÇÃO
185,00€ (IVA e portes incluídos)
Tradução de referência do texto
quinhentista, seguindo a edição de Basileia, escrupulosamente levada a cabo
pelo antiquário Charles Patin em 1676.
CONSELHEIRO [M. M.] LISBÔA – Relação de uma Viagem a Venezuela, Nova
Granada e Equador. Bruxelas, A. Lacroix, Verboeckhoven e C.ª, Editores,
1866. 1.ª edição. 23,8 cm x 15,9 cm. 394 págs. + 1 folha dupla (mapa) + 29
folhas em extra-texto (sendo seis delas desdobráveis) + 8 págs. (pauta musical).
Profusamente ilustrado.
Encadernação recente
meia-francesa em pele e papel de fantasia com gravação a ouro na lombada. Conserva
as capas de brochura.
Exemplar muito estimado; miolo
limpo e parcialmente por abrir. Discreta rubrica de posse no canto superior
direito do frontispício, pequena etiqueta de biblioteca no canto superior
esquerdo da capa de brochura.
Peça de colecção com grande interesse científico.
180,00€ (IVA e portes incluídos)
Não é um livro de viagem
turística. É o testemunho expedicionário de um observador que soube, por
comparação, detectar a novidade nos usos e costumes, na religião, na geografia,
na gastronomia, e até colher apontamento das culturas locais e das tecnologias
práticas. Porque o Autor tinha em mente dar a conhecer – prioritariamente aos
brasileiros – o «estado social e material dos paizes limitrophes», que, apesar
de o serem, «são no Brasil inteiramente desconhecidos».
MANOEL BERNARDES, padre – Pam Partido | em pequeninos | para os
pequeninos da casa | de Deos, | Breve tratado Efpiritual, em que fe inf- | true
hum Fiel nos pontos principaes | da Fè, e bons coftumes | Ajuntaõ-fe hũa vifaõ
notavel, que huma ferva | de Deos teve dos tormentos do Inferno, e hu- | mas
Meditações fobre os Noviffimos | Compofto pelo Padre | … | da Congregaçaõ do Oratorio de Lisboa.
Lisboa Occidental, Na Officina de Miguel Rodrigues, 1726. [4.ª edição (segundo
Inocêncio)]. 2 tomos (encadernados em 1 volume) (completo). 15,3 cm x 10,3 cm.
220 págs. + 2 págs. + 198 págs.
Encadernação da época inteira em
pele, com nervuras e gravação a ouro na lombada. Corte marmoreado.
Exemplar em bom estado de
conservação, discretos restauros à cabeça das págs. 159 a 176 sem afectar a
mancha de texto; miolo limpo, papel sonante.
Dedicatória de Ayres de Carvalho
na folha de resguardo do verso da capa anterior.
250,00€ (IVA e portes incluídos)
Dizem-nos António José Saraiva /
Óscar Lopes (ver História da Literatura Portuguesa, 15.ª ed., Porto Editora,
1989):
«[...] Nascido de uma ligação
irregular, talvez de pai judeu, recebeu ordens sacras e professou em 1674 na
Congregação do Oratório de S. Filipe Néri, que o padre Bartolomeu do Quental
trouxera para Portugal seis anos antes e que tão grande papel desempenhará nas
reformas pedagógicas do séc. XVIII entre nós. [...]
Ideologicamente, e apesar da sua
vasta informação literária e teológica, a obra de Bernardes é a de um cristão
simples, sem problemas filosóficos, a quem a vergonha materna, as leituras
ascéticas e o confessionário inculcaram a ideia de que o mundo secular está
profundamente corrompido. Na sua prosa macia, com uma delicadeza eufemística e
dir-se-ia que voluptuosa, perpassam abundantes casos que dão da mulher, mesmo
da mãe, irmã ou freira, o juízo mais pessimista. Mas ao lado dessa podridão, de
cujo contacto Bernardes afasta habilmente a fímbria da sua prosa imaculada, o
mundo foi e é sempre, para ele, um teatro de constantes e ininterruptos
prodígios miraculosos. [...]
Não se lhe pode, no entanto,
contestar certa perspicácia psicológica em todas as fases dos exercícios de
ascese ou de expansão mística. São sensíveis as suas afinidades com a mística
quietista, pela importância que atribui à contemplação extática, embora evite
as teses, entretanto condenadas, de Molinos, assim como as dos Alumbrados.
Contudo o grande mérito de
Bernardes é o de artista da prosa narrativa. As explicações didácticas, as
análises doutrinais que, sobretudo nos tratados ascéticos, se carregam do
lastro, para nós incómodo, das citações escriturárias, patrísticas,
escolásticas ou literárias, revelam já o estilista; mas é quando procura
atingir o grande público através de narrativas muito chãs e impressivas,
seguidas de comentários moralistas, que Bernardes revela os seus melhores dons
artísticos. [...]»
MANOEL BERNARDES, padre – Luz, e Calor | Obra espiritual para os que
tratam | do exercicio de virtudes, e caminho de perfeiçaõ, | dividida em duas
partes. | Na primeira fe procura communicar ao entendimento Luz de muitas
verdades im- | portantes, por meyo de Doutrinas, Sentenças, Induftrias, e
Dictames ef- | pirituaes. Na fegunda fe procura communicar à vontade Calor do
Amor | de Deos, por meyo de Exhortações, Exemplos, Meditações, Col- |
loquios, e Jaculatorias. Lisboa, Na Officina Patriarcal de Francifco Luiz
Ameno, 1758. 4.ª edição («Quarta impreffaõ»). 20,6 cm x 15,7 cm. 16 págs.
(frontispício, dedicatórias, licenças de impressão e sumário) + 660 págs. (38
das quais com o índice remissivo).
Encadernação antiga inteira em
pele, com nervuras na lombada, rótulo e gravação a ouro. Aparado, corte
carminado.
Exemplar em bom estado de conservação;
miolo muito fresco e, no geral, limpo. Sem sinal de traça.
A folha-de-rosto ostenta no canto
inferior esquerdo pequeno desenho infantil; ao longo das margens de algumas
páginas da obra, apesar de já desvanecidas, surgem ocasionais linhas de apontamento
sem afectar o corpo do texto.
Dedicatória de Ayres de Carvalho
na primeira folha-de-guarda.
95,00€ (IVA e portes incluídos)
Inocêncio Francisco da Silva, no
seu Diccionario Bibliographico Portuguez (tomo V, Imprensa Nacional, 1860), dá
fé da existência de Bernardes assim:
«Presbytero da Congregação do
Oratorio de Lisboa, cuja roupeta vestiu aos trinta annos de edade, sendo já
graduado pela Universidade de Coimbra nas Faculdades de Canones e Philosopbia.
– N. em Lisboa a 20 de Agosto de 1644, e m. na casa do Espirito‑sancto, a 17 de egual mez de 1710, havendo perdido inteiramente
o siso dous annos antes. [...]»
ARNOLDI VINNII – Institutionum Imperialium Commentarius Academicus, et
Forensis... Gottl. Heineccius recensuit, & præfationem notulasque adjecit
[junto com] Selectarum Juris Quæstionum... Veneza, Typis Antonii Graziosi, 1768.
[a 1.ª edição é do século XVII)]. 4 livros em 2 tomos + 2 livros (tomo III)
encadernados em 2 volumes. 23,8 cm x 19,5 cm. [XXXII págs. + 536 págs.] + [IV
págs. + 452 págs. + VIII págs. + 172 págs.]
Encadernações homogéneas de época
inteiras em pele mosqueada com nervuras e vinhetas gravadas a ouro nas
lombadas; perderam ambos os rótulos.
Exemplares em estado muito
razoável de conservação, miolo limpo.
Assinatura de posse rasurada no
frontispício do tomo I
180,00€ (IVA e portes incluídos)
Obra redigida em latim, de vasto interesse jurídico. Do autor
diz-nos o Diccionario Popular, historico, geographico, mythologico,
biographico, artistico, bibliographico e litterario (dir. Manoel Pinheiro
Chagas), 13.º vol., Typographia da Viuva Sousa Neves, Lisboa, 1884:
«[...] Jurisconsulto e professor
hollandez, n. em 1588 e m. em 1657. Tendo estudado durante alguns annos a
legislação romana e as leis do seu paiz, começou em 1615 a publicar alguns
trabalhos sobre o direito romano, nos quaes se affastou da rotina, e em que
apesar de não descobrir o systema que 150 annos depois tornou conhecidos os
nomes de Hugo, Hubold e Savigny seguiu chronologicamente as mudanças da lei
romana, e os seus progressos e tendencias sempre elevadas, especialmente sob o
influxo do christianismo, regeitando o estudo litteral dos textos.
[...] pela sua erudição profunda
e variada, pela sua eloquencia e pela sua logica severa era considerado um dos
mais distinctos professores e pelo seu methodo racional, e pelas suas
descobertas pessoaes era considerado superior a todos.
Vinnius que [...] os seus
compatriotas tinham na conta de primeiro entre todos os jurisconsultos d’essa
epoca recusou todas as honras, e não querendo nunca deixar o magisterio quando
já muito cansado não podia fazer cursos regulares, presidia a conferencias em
que os discipulos discutiam sob a sua presidencia, pontos difficeis de direito.
[...]»
MIGUEL CARDOSO – Os Elementos da Ethica de João Gottlieb Heineccio
[...]Com as suas notas, Interpretados e traduzidos, que Ao Illuftriffimo, e
Excellentiffimo Senhor Fernando da Costa de Ataide e Teive de Souza Coutinho,
do Confelho de Sua Mageftade, Tenente General dos feus Exercitos com o Governo
das Armas da Provincia da Beira, Commendador de Rebaldeira na Ordem de S.
Thiago, Senhor Donatario dos Confelhos de Baiaõ, e S. Chriftovaõ de Nogueira, e
dos Foros do Lamegal, &c. &c. &c. Coimbra, Na Real Imprensa da
Universidade, 1792. [1.ª edição]. 14,9 cm x 10,2 cm. 6 págs. + 232 págs.
Encadernação da época inteira em
pele, sem nervuras, com discretos ferros a ouro na lombada.
Miolo em muito bom estado de
conservação; extensos sinais de traça na pele tal como mostra a imagem junto.
45,00€ (IVA e portes incluídos)
Trata-se de um estudo acerca
daquele que foi, na primeira metade do século XVIII, um mestre fundador da
filosofia jurídica, entendida esta enquanto conjunto de princípios objectivos
do Direito. Johann Gottlieb Heineccius viveu entre 1681 e 1741, e pode ser
considerado o jurista de referência para a Europa.
LUIZ DE SOUZA, frei – Vida | do Veneravel | D. Fr. Bartolomeu | dos
Martyres | da Ordem dos Pregadores, | Arcebifpo de Braga, Primaz das Hefpanhas.
Paris, Na Officina de Antonio Boudet, Impreffor de S. M. Chriftianiffima, 1760.
2.ª edição («nova ediçaõ»). 2 tomos (completo). 20,2 cm x 13,5 cm. [XX págs. +
388 págs.] + [2 págs. + 320 págs.]
Encadernações dissemelhantes
inteiras em pele, da época, com nervuras pontuadas pela gravação a ouro e
rótulos também gravados a ouro.
Exemplares muito estimados; miolo
limpo, papel sonante. Carimbo de posse no frontispício
do tomo segundo.
320,00€ (IVA e portes incluídos)
Professo no convento dominicano
de São Domingos de Benfica, frei Luís de Sousa (1555-1632) dá à estampa esta
obra, de um português de alta correcção, partindo de umas notas coligidas por
um outro religioso da Ordem, frei Luís Cacegas (1540 ?-1610), cronista este,
vigário e superior do convento. A primeira edição da vertente obra fôra
impressa em Viana por Nicolau Carvalho em 1619.
Ainda que fora desta temática,
não quero deixar de referir mais estas quatro obras.
Pela qualidade das suas ilustrações temos:
aa.vv. – Album do Zé Povinho do Porto. Porto, Clube Fenianos Portuenses
/ Papelaria e Typographia Academica, 1908. 1.ª edição [única]. 22,2 cm x 16,8
cm. 152 págs. (quase exclusivamente impressas retro).
Profusamente ilustrado a preto e
a cor.
Encadernação editorial «na casa
de Alexandre Duarte Corrêa».
Exemplar muito estimado; miolo
limpo e fresco.
Peça de colecção.
115,00€ (IVA e portes incluídos) [RESERVADO]
Celebra este álbum Alexandre
Correia Júnior, pitoresca figura portuense que, para quase todos, aí encarnava
o Carnaval e, portanto, uma espécie de Zé Povinho nortenho... Isto segundo os
próprios promotores da edição. Claro que o original lisboeta foi sempre um
pouco de tudo... menos carnavalesco! Terá sido, este último, um tolo, mas um
tolo virado à política e à intervenção cívica.
Inclui a vertente obra
colaborações plásticas, musicais e literárias, entre muitíssimas outras, de
António Teixeira Lopes, Manuel Monterroso, Sebastião Magalhães Lima, Francisco
Valença, João Chagas, Alonso, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Sampaio (Bruno),
Jaime Cortesão, etc.
Pela excelente encadernação veja-se esta:
MANUEL DA SILVA GAYO – Torturados. Porto, Livraria Chardron – De
Lello & Irmão, editores, 1911. 1.ª edição. 18,6 cm x 12,6 cm. 8 págs. + 416
págs.
Encadernação de artista (não
identificada, imitando o estilo de Victor Santos), inteira em pele com gravação
a ouro em ambas as pastas e na lombada, tendo sido esta última acentuada por
alto-relevo decorativo entre as nervuras; seixas gravadas a relevo-seco. Pouco
aparado, sem capas de brochura.
Exemplar em bom estado de
conservação; miolo limpo.
Ostenta colado no interior das
guardas da encadernação o ex-libris de Rogélio Barros Durão.
Peça de colecção.
95,00€ (IVA e portes incluídos)
Filho do escritor liberal António
da Silva Gaio, cujo romance histórico Mário bastou para que a posteridade o não
pudesse esquecer, este Manuel notabilizou-se mais pelas ideias de um
parnasianismo nacionalista, de um decadentismo simbolista, que partilhava com,
por exemplo, António Feijó, ou Eugénio de Castro, ou Gonçalves Crespo.
E de uma das mais famosas
polémicas do nosso séc. XIX refira-se esta miscelânea:
A.[LEXANDRE] HERCULANO – Eu e o Clero [miscelânea]. Lisboa, Imprensa
Nacional, 1850-1851. 1.ª edição [excepto a primeira brochura (2.ª edição)]. 5
brochuras em 1 volume. 20 cm x 13,5 cm 20 págs. + 18 págs. + 68 págs. + 32
págs. + 36 págs.
Títulos individuais:
[1]
Eu e o Clero – Carta ao Em.º Cardeal-Patriarca
[2]
Considerações Pacificas sobre o opúsculo Eu e o Clero – Carta ao redactor do
periodico A Nação
[3]
Solemnia Verba – Cartas ao Senhor A. L. Magessi Tavares sobre a questão actual
entre a verdade e uma parte do clero
[4]
A Batalha d’Ourique e a Sciencia Arabico-Academica – Carta ao redactor da
Semana
[5]
Da Propriedade Litteraria e da recente convenção com França – Carta ao Senhor Visconde
d’Almeida-Garrett
Encadernação da época,
meia-inglesa em pele e papel de fantasia com gravação a ouro na lombada. Pouco
aparado, sem as capas de brochura.
Exemplar bem conservado; miolo
limpo.
Peça de colecção.
125,00€ (IVA e portes incluídos)
Estão aqui reunidas num único
volume as peças essenciais de uma vastíssima polémica em torno da rejeição, por
parte de Herculano, dos fundamentos milagreiros da batalha que, em 1139, travou
D. Afonso Henriques nos campos de Ourique contra os sarracenos. Evento este tão
estrondosamente vitorioso, de um grupo minúsculo de tropas contra um imenso
exército inimigo, que levou o nosso monarca a autoproclamar-se, logo ali, rei
de Portugal. José Custódio e José Manuel Garcia (Opúsculos IV, Editorial
Presença, Lisboa, 1985) contextualizam o sucedido após a publicação, em 1846,
do primeiro volume da História de Portugal de Herculano:
«[...] Quanto ao milagre, cavalo
de batalha da questão de Ourique, Herculano afirma friamente que não há
qualquer referência em que o historiador se possa estribar. O espírito positivo
era adverso ao maravilhoso e ao metafísico e via nos “contadores de histórias”
falsários e embusteiros que forjavam inclusive documentos para aduzir provas.
Por isso “discutir todas as fábulas que se prendem à jornada de Ourique fora
processo infinito”. A da aparição de Cristo ao príncipe Ibn Erick antes da
batalha fundamentava-se num documento tão mal forjado “que o aluno instruído de
diplomática – a ciência por excelência da crítica histórica – o rejeitaria como
falso”.
Ora todos estes argumentos foram
lenha para a fogueira. Podia um homem, mesmo que fosse um historiador, rejeitar
assim, de um momento para o outro, todas as motivações pátrias, toda a origem
sacra da realeza (e da nação), toda a fundamentação clara e inequívoca do 5.º
Império? Seria possível permitir que um “ateu” mascarado viesse abalar os
alicerces da afectividade pública e as esperanças mais recônditas da protecção
divina?
O país em 1846 já havia mudado. A
mentalidade, no entanto, ainda estava presa às forças anímicas do inconsciente
colectivo. A segurança, a razão cartesiana, a clareza das ideias, a organização
científica da sua fundamentação, não podiam esperar outra coisa senão uma
reacção visceral de todos aqueles que viam agora no campo das letras e da
cultura científica uma ruptura, digamos, epistemológica, com aquilo que lhes
era mais caro: as prerrogativas intelectuais, os privilégios de influência, os
ídolos do saber.
Era uma controvérsia de facto
bizantina e Herculano soubera vê-la no contexto como um nada científico:
“parece, na verdade, impossível que tão grosseira falsidade servisse de assunto
a discussões graves” [...]
A Solemnia Verba constitui o mais
importante documento da polémica de Ourique quer pela sua argumentação sólida,
quer, sobretudo, pelo seu carácter teórico-metodológico. Herculano explica a
situação actual da crítica histórica e analisa a sua evolução desde que ela
fora fundada pela Congregação de Saint-Maur, no séc. XVII, avançando na
determinação das principais regras da crítica em relação às fontes históricas.
[...]»
Fora da referida polémica
encontra-se a notável brochura Da Propriedade Literária, que nos mostra um
intelectual contra a «literatura-mercadoria» ou «literatura-agiotagem». Ainda
José Custódio e José Manuel Garcia (Opúsculos I, Editorial Presença, Lisboa,
1982):
«[...] Herculano era um escritor
romântico e, ao contrário do que se pensa amiudadas vezes, o romantismo não era
apenas um estilo literário. Era acima de tudo um comportamento social
profundamente enraizado na função cultural do homem liberal. A literatura tem
pois um lugar próprio no comportamento do intelectual como na condução
formativa das novas gerações em termos de língua, de história e de valores
nacionais, sociais e morais. [...]»
Termino com esta curiosidade editorial (a fazer lembrar o ecletismo da Livraria
José Olympio no Brasil):
GABRIELE D’ANNUNZIO – O Triunfo da Morte. Trad. Celestino Gomes.
[Capa de João Carlos (Celestino Gomes)]. Lisboa, Editorial «Gleba», L.da |
Centro Tip. Colonial, 14 de Agosto de 1945. 2.ª edição.* 18,8 cm x 13 cm. 408 págs.
Encadernação de amador muito
modesta inteira em tela encerada, gravação a ouro na lombada. Aparado. Conserva
as capas de brochura.
Exemplar muito estimado; miolo
limpo.
17,00€ (IVA e portes incluídos)
Trata-se do romance inspirador do
nazi-fascismo, da autoria do homem – Gabriele d’Annunzio (1863-1938) – que lhe
criou as bases filosóficas, introduzindo na Itália a legitimação de um
“super-homem” nietzscheano, mas radical, amoral e violento.
* Embora o vertente editor não
registe a informação, já existia este livro em português, traduzido por Amadeu
Silva d’Albuquerque em 1903. Mas o mais estranho é o eclectismo ideológico da
Gleba, ao ser a mesma editora do comunista ortodoxo Soeiro Pereira Gomes (?!),
e de Manuel da Fonseca, e de José Cardoso Pires...
The workshop of bookbinder T. J.
Cobden-Sanderson. circa 1890,
In Illustrated London News
Boas leituras, na esperança que
as escolhas sejam do vosso interesse, com votos de bom fim-de-semana.
Saudações bibliófilas
(Como sempre os descritivos e as
fotografias ilustrativas são da responsabilidade e copyright do livreiro, tendo
procedido apenas à sua adaptação para as normas seguidas no blogue)
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