"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

domingo, 4 de junho de 2017

Uma conversa a propósito do Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco


Numa das minhas últimas a Lisboa tive ocasião de passar pela Livraria Artes e Letras – Avenida Elias Garcia, 153 – A | 1049 - 055 Lisboa | Portugal do meu estimado amigo Luís Gomes e conversar um pouco com ele.


Livraria Artes e Letras

Como esta questão de amizade não se mede pelo número de livros que este nos vende ou que eu lhe compro, mas sim pela sintonia de ideias que partilhamos (pelo menos é essa a minha opinião), fácil será perceber-se que se falou de tudo um pouco – projectos futuros que germinam nos nossos horizontes, experiências gastronómicas… e claro que também de livros!


Luís Gomes

E já que falamos de livros, como sempre dou uma espreitadela pelo que ele tem nas estantes do seu bom acervo e descobri (esta é a grande ilusão de qualquer bibliófilo ter a ideia da descoberta de um livro numa qualquer livraria!) um livrito curioso:



Alberto Pimentel ― Notas sôbre o Amor de Perdição. Lisboa, Guimarães & C.ª – Editores (68, Rua do Mundo, 70) 1915. In-8º de 155, [5] págs. Brochura.


Página de referência à 1.ª edição

"O romance Amor de Perdição, apesar do pálido conceito que dêle fazia o autor, entrou no gosto público e criou tão fortes raízes, que ainda agora foi reimpresso pela vigésima-primeira vez. / Em 1862, logo que êle aparece, a crítica dos homens de letras revela-se em perfeita concordância com a sôfrega procura do mercado. Vinte e nove anos depois de ter aparecido, uma empresa literária despende oito contos de réis numa edição monumental. / Mais tarde ainda, primeiro o drama, em seguida a ópera, redoiram o Amor de Perdição com uma intensa luz de vida e arte e colhem triunfos não inferiores aos do livro, nem menos ruidosos e espontâneos. / Finalmente, as traduções espanholas, italiana e suéca são factos demonstrativos de que o afecto dos portugueses pelo Amor de Perdição não é devido a uma especial sentimentalidade caseira que outros povos, da mesma raça latina ou de raça diferente, sejam incapazes de compreender e repercutir.”


Reprodução de páginas do manuscrito original

Capítulos: «Origens do «Amor de perdição»», «Dedicatória», «O Prefácio», «Acção e personagens», «Ainda o entrecho e as figuras», «Sensação causada por este livros – Um inquérito», «As edições», «As traduções», «O drama», «A ópera», «Ultima nota».

(Texto descritivo de outro bom amigo o Gonçalo Rodrigues)

Livro que me trouxe à memória quando li pela primeira vez o romance – seguramente há perto de 50 anos!

Sinceramente não me recordo com uma exactidão precisa de todos os pormenores do enredo, mas sim das suas linhas gerais, mas lembro-me (a minha memória visual é muito boa…) da capa do livrinho que li na altura.


Amor de Perdição – Capa da brochura do livro que li

Primeiras edições? O que era isso nessa época!

Li-a o que me caía entre mãos – o que me ofereciam como prendas pelo Natal e anos, assim como alguns que me compravam fora destas datas festivas e muitos outros que os meus colegas e amigos de infância me emprestavam…sempre fui um leitor bastante ecléctico!  

Algumas edições passaram pelas minhas mãos, claro que também a 1.ª edição, mas nenhuma me fez esquecer aquele primeiro livrinho que li!


Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco,
filho ilegítimo de Joaquim Botelho e de Jacinta Maria,
nasce em Lisboa, a 16 de Março de 1825

Mas voltemos ao Amor de Perdição e relembro convosco o seu enredo (e esta foi uma forma de o recordar):

Simão Botelho era filho do corregedor Domingos Botelho, tinha um irmão mais velho, Manuel, com quem tivera algumas desavenças, e irmãs mais novas. A sua mãe chamava-se Rita e por vezes tinha uma atitude de soberba.


Capa de brochura de Amor de Perdição

Simão era um jovem que envergonhava a família porque as suas amizades eram apenas com aqueles que pertenciam às classes mais pobres e de comportamento duvidoso, o que desgostava muito a seus pais.

Porém, passado um tempo Simão mudou totalmente; deixou de sair de casa, as suas más amizades findaram, as suas desordens também e passava os seus dias em casa junto com a sua irmã Rita.


Capa de brochura de Amor de Perdição

Esta mudança no comportamento dele devia-se à sua paixão por Teresa Albuquerque, filha de Tadeu Albuquerque. Simão e Teresa eram membros de famílias rivais, que se tinham apaixonado. Moravam em casas vizinhas em Viseu. Os jovens apaixonados, logo perceberam a impossibilidade da realização desse amor por meio do casamento, pois as suas famílias eram inimigas.

Não demorou a que começassem a sentir ódio pelos seus pais, no entanto mantêm um namoro silencioso através das janelas próximas. Ambas as famílias, desconfiadas, fazem tudo para combater esta união amorosa.

Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, ao descobrir o romance, trata de prometer a mão de sua filha a seu sobrinho Baltasar Coutinho. No entanto, a filha negou-se, até pelo facto de o seu primo a aborrecer muito, pelo que começaram então as ameaças a Teresa, casava-se ou não seria mais considerada filha, seria mandada para um convento.


Capa de brochura de Amor de Perdição

Na casa de Simão, o pai, muito irritado com aquela paixão resolve pôr fim ao romance entre seu filho e Teresa, enviando o jovem Simão a Coimbra para concluir os seus estudos e, deste modo, pretendia sufocar o amor dos jovens pela distância.

Simão, enlouquecido pela saudade de sua amada, decide ir a Viseu encontrar-se com Teresa. É hospedado pelo ferreiro João da Cruz, homem destemido, forte e fiel que devia favores a seu pai. Após uma tentativa falhada de se encontrar com Teresa Simão sai ferido. O rapaz busca refúgio na casa de João da Cruz para recuperar, dos ferimentos. Os amantes ainda mantinham comunicação por meio de uma velha mendiga que passava com frequência sob a janela do quarto de Teresa. Para castigar a filha, Tadeu de Albuquerque decide mandá-la para um convento do Porto. Porém Antes a jovem é recolhida num convento na própria cidade de Viseu, enquanto Tadeu aguardava a resposta do Porto.

Em Viseu, na casa do ferreiro, Mariana, filha do ferreiro acaba por se apaixonar por Simão, amor esse que ela não revela. Amor escondido, platónico e de uma dedicação extrema.


A morte de Baltasar Coutinho – Ilustração de Amor de Perdição

Simão ao tomar conhecimento dos factos, fica furioso e, num acesso incontido de raiva, decide tentar raptar Teresa. O jovem defronta-se com Baltasar, na tentativa de resgatar Teresa. Mesmo diante de várias testemunhas o jovem Simão atinge Baltasar com um tiro mortal. Simão é preso e condenado à morte. Porém, devido à interferência do corregedor Domingos Botelho, pai de Simão, a pena é convertida ao degredo nas Índias. A sentença do desterro sai, Simão é condenado a ficar dez anos na Índia.

Teresa começa a ter a sua saúde abalada, cada vez mais triste e magoada, parece ter perdido a vontade de viver.

Ao embarcar rumo à Índia, Simão vê, pela última vez no mirante do convento Teresa. Também Teresa contempla o navio que levava seu amado. Logo após, Teresa morre.


A morte de Teresa de Albuquerque – Ilustração de Amor de Perdição

Simão, antes de seguir seu destino, toma conhecimento da morte de Teresa e segue rumo ao degredo. Relê as cartas de Teresa enquanto o seu corpo é consumido pela morte. Alguns dias após o início da viagem, Simão adoeceu, tinha febres e delírios, Simão morre.

Mariana, não resistindo à perda de Simão, no momento em que vão lançar o corpo ao mar, lança-se ao mar também.

É sem dúvida um dos romances mais românticos e trágicos do romantismo português com o seu enredo shakespeariano a lembrar o de Romeu e Julieta – sem que com isto queira tirar o mérito ao ilustre romancista, nem que o livro seja decalcado deste enredo.


Uma das raras imagens de Ana Augusta Plácido,
depois Pinheiro Alves,
quando era ainda muito jovem.

Foi com Ana Augusta Plácido, que teve o seu grande envolvimento amoroso, mas, por imposição paterna, esta casa-se com um rico comerciante “brasileiro” que regressa de viagem (Manuel Pinheiro Alves), o que origina em Camilo uma profunda depressão e aversão a figuras de portugueses enriquecidos no Brasil que regressavam sem cultura nem princípios morais, como ele os caricatura em muitas das suas novelas, apresentando-os como figuras grotescas.


Cadeia da Relação do Porto – Interior

Ana Augusta Plácido deixa o marido para viver com o amante, o que era nesse tempo um escândalo passível de acção judicial. O escândalo traz notoriedade a Camilo. O casal, perseguido pela justiça, passa algum tempo fugitivo, escondendo-se em vários lugares, até que os dois amantes se vêem forçados a entregar-se à prisão (Ana em Maio e Camilo em Outubro). Acusados de adultério, ambos, são remetidos para a Cadeia de Relação do Porto.


Cela onde esteve Camilo Castelo Branco
©blog A Vida em Fotos

O cárcere durou um ano e dezasseis dias, período em que recebe a visita do rei D. Pedro V. Aqui, Camilo ocupou o tempo a escrever, entre outros escritos, num momento psicológico de alta tensão trágica, em quinze dias, o Amor de Perdição (1862), baseado em factos reais da sua história familiar – o seu tio paterno Simão António Botelho, mas largamente coloridos pela mestria da sua pena do escritor – onde a realidade se confunde com a imaginação do autor que está a viver o que o seu antepassado terá também sofrido.


in D. Pedro V, Um Homem e Um Rei (Ruben Andresen Leitão, 1950)

Julgados em tribunal, acabaram por ser absolvidos do processo porque o marido de Ana Plácido morrera e, portanto, terminara o crime de adultério. Passaram a viver juntos, finalmente.


Página de Alberto Pimentel ― Notas sôbre o Amor de Perdição.

Claro que não vou deixar passar esta conversa sem uma referência à sua 1.ª edição e à mais bela encadernação que vi (infelizmente só em fotografia) desta obra importante do nosso panorama literário (hoje um pouco relegada para seguindo plano, assim como toda a obra deste talentoso escritor)




Castelo Branco (Camilo) – Amor de Perdição (memórias d'uma família). Porto; Em Casa de N. Moré - Editor. 1862. In-8º gr. de XI, 249 p. il. - Encadernado.

Raríssima primeira edição do mais popular romance de Camillo.



"A novela de paixão amorosa mais intensa e profunda que se tenha escrito na Península" .  Unamuno.       
    

                                                                       
Chamo especial atenção para a maravilhosa encadernação inteira em marroquim verde, com lindíssimo e original trabalho a ouro nas pastas, lombada e seixas. Corte das folhas impecavelmente douradas. (encadernador francês?)



Ex-libris, na folha de guarda, do conhecido bibliófilo Emílio Monteiro. Sem capas de brochura, e discreta assinatura da época. Muito limpo e muito bem conservado. Exemplar muito atractivo.



Magnífica Peça de Colecção.

©Gabriela Gouveia – Livros Antigos (28/05/2015)

E assim desta conversa entre amigos, de um livrito (sem qualquer desprimor para o livreiro-antiquário), se construiu uma reflexão que muitas vezes fazemos quando entram nas nossas bibliotecas livros que nos recordam outros.

Saudações bibliófilas com votos de uma boa semana.


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