Como estamos no Verão e apetece mais a praia...
Como
estamos no Verão e apetece mais a praia ou passear pelo campo para fugir do
calor (que por estes lados não tem sido tanto assim …) deixo este apontamento
ligeiro para assinalar que a Tertúlia ainda não morreu…está a saborear umas
férias, que infelizmente o seu autor não consegue ter!
… ou passear pelo campo.
Mas
sempre vou lendo ou relendo alguns dos meus livros.
Neste
momento estou a reler o Mário de
Sá-Carneiro (1), de quem recomendo vivamente a leitura
da sua obra.
Caricatura de Mário de Sá-Carneiro por Almada Negreiros
Mário de Sá-Carneiro nascido em Lisboa a 19 de Maio de 1890 e
que se suicidou em Paris a 26 de Abril de 1916, foi um dos grandes expoentes do
modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu (2) (de que se comemora este ano o
centenário do seu lançamento). Foi um poeta, contista e ficcionista.
José Pacheco (1885-1934), capa de Orpheu
Fascículo n.º 1, Janeiro - Fevereiro - Março de 1915
Embora
tivesse adiado por alguns dias o dramático desfecho da sua vida, numa «cart de
despedida» para Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro revela as suas razões
para se suicidar que aqui se transcreve.
Retrato de Fernando Pessoa em 1914
Meu querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o
seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá
deste mundo. É assim tal equal – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo
ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena
lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre
quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a
dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas
circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa
situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única
maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre
sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra
– vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua
Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil
maravilhas, mas não tenho dinheiro. [...]
Mário de Sá-Carneiro, carta para
Fernando Pessoa, 31 de Março de 1916.
Assinatura de Mário de Sá-Carneiro
Mas
vejamos como esta personagem tão complexa nos deixou alguns dos nossos poemas
mais sublimes:
Distante melodia
Num sonho d´Íris morto a oiro e brasa,
Vêm-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule -
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.
Então os meus sentidos eram cores,
Nasciam num jardim as minhas Ânsias,
Havia na minha alma Outras Distâncias -
Distâncias que o segui-las era flores...
Caía Oiro se pensava Estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me...
– Noites-lagoas, como éreis belas
Sob terraços-lis de recordar-Me...
Idade acorde d´Inter-sonho e Lua,
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz – anseios de Princesa nua...
Balaústres de som, arcos de Amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume...
Domínio inexprimível d´Ópio e lume
Que nunca mais, em cor, hei-de habitar...
Tapetes de outras Pérsias mais Oriente...
Cortinados de Chinas mais marfim...
Áureos Templos de ritos de cetim...
Fontes correndo sombra, mansamente...
Zimbórios-panteões de nostalgias,
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...
Escadas de honra, escadas só, ao ar...
Novas Bizâncios-Alma, outras Turquias...
Lembranças fluidas... cinza de brocado...
Irrealidade anil que em mim ondeia...
– Ao meu redor eu sou Rei exilado,
Vagabundo dum sonho de sereia...
Paris 1914 - Junho 30
Último soneto
Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes – e vieste...
– Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.
Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste –
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...
Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...
E fugiste... Que importa ? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...
Paris - Dezembro 1915
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
Paris 1916
Todos estes poemas estão incluídos no livro
Indícios de Oiro (3) de Mário de Sá Carneiro.
SÁ-CARNEIRO (Mário de) – Indicios de Oiro
Encadernação
com lombada e cantos de pele azul decorada com nervuras e rótulos de ferros
dourados em casas fechadas. Ligeiramente aparado e tintado à cabeça de azul.
Conserva
capas da brochura.
Saudações bibliófilas e
continuação de boas férias.
Eu cá volto às minhas
leituras e às minhas flores.
Notas:
(3)
Conjunto de 32 poemas autógrafos, em caderno de capa dura azul, com assinatura
do autor na capa, na diagonal – BNP: http://purl.pt/13863
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