"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

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sábado, 25 de abril de 2015

Luandino Vieira – Luuanda. A censura e a ditadura em Portugal.

À memória da minha mãe



José Luandino Vieira

No dia em que se comemora o 41º Aniversário do 25 de Abril parece-me importante relembrar um escritor português, que se naturalizou angolano, e que sofreu bem as consequências de ter escrito e vivido num país onde imperava um ditadura e censura (1) férreas e implacáveis.
Por um lado felizmente, mas por outro não tanto assim, grande parte da geração que nos governa desconhece o que foi ter vivido nestes tempos e, como tal, por vezes estas reminiscências não passam disso mesmo – coisas de “velhotes!” 


25 de Abril em cada livro um amigo

José Vieira Mateus da Graça, conhecido por Luandino Vieira, nasceu a 4 de Maio de 1935, em Vila Nova de Ourém, tendo ido viver para Angola aos três anos com os pais.

Cidadão angolano pela sua participação no movimento de libertação nacional escolheu o nome de Luandino como homenagem a Luanda e contribuiu para o nascimento da República Popular de Angola.

Fez os estudos primários e secundários em Luanda, tornando-se depois gerente comercial para garantir o seu sustento.

A luta contra a dominação portuguesa custou-lhe mais de uma década na prisão, onde escreveu boa parte de sua obra. Entre seus diversos volumes de narrativas, destacam-se os romances A vida verdadeira de Domingos Xavier e Nós, os do Makulusu.



VIEIRA, Luandino – A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. 2ª Edição. Lisboa; Edições 70, 1975; In-8º de 128 páginas; Brochado.
Exemplar em bom estado de conservação
©Livraria Alfarrabista Liliana Queiroz (12,5€)




VIEIRA, Luandino – Nós, os do Mokuluso. 1ª Edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1974; In-8º de 140 páginas; Brochado
Exemplar com pequenos danos nas capas de brochura, extremidades ligeiramente gastas, miolo em bom estado de conservação.
© Livraria Avelar Machado (Lisboa, Portugal) (38,88€)

Acusado de ligações políticas com o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) foi preso em 1959 pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), no âmbito do que ficou conhecido como "processo dos 50".

Em 1961 voltou a ser preso pela PIDE, tendo sido condenado a 14 anos de prisão e a medidas de segurança. Em 1964 foi transferido para o campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde), onde passou oito anos, tendo sido libertado em 1972, em regime de residência vigiada, passando a viver em Lisboa.

Entre outros prémios literários, Luandino Vieira venceu o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores (1965), o Prémio Sociedade Cultural de Angola (1961), o da Casa do Império dos Estudantes - Lisboa (1963) e o da Associação de Naturais de Angola (1963).


José Luandino Vieira

A partir de 1972, e já a residir em Lisboa, Luandino Vieira iniciou a publicação da sua obra, na grande maioria escrita nas prisões por onde passou.

Regressou a Luanda em 1975, onde exerceu cargos directivos no MPLA e foi presidente da Radiotelevisão Popular de Angola. Membro fundador da União dos Escritores Angolanos - cuja condição sempre reivindicou, apesar de ter nascido em Portugal - exerceu funções de secretário-geral deste organismo desde a sua fundação a 10 de Dezembro de 1975 até 1992.


Edifício sede da União dos Escritores Angolanos, Luanda.

Entretanto, foi-lhe atribuído em 2006 o Prémio Camões, o maior galardão literário para a língua portuguesa, que recusou "por motivos íntimos e pessoais" (2), segundo o que alegou num comunicado de imprensa. Sabe-se por entrevistas dadas sobretudo ao Jornal de Letras Artes & Ideias que não aceitou o prémio por se considerar um escritor morto e que como tal o Prémio deveria ser entregue a alguém que continuasse a produzir.


Luandino Vieira recusa Prémio Camões

Tal facto veio-se alterar, pois O livros dos rios é um novo romance de Luandino Vieira (o primeiro de uma trilogia intitulada De rios velhos e guerrilheiros) editado pela Editorial Caminho em Novembro de 2006.
O escritor enquadra-se na geração da Cultura, surgida no final dos anos 50 — para prolongar a acção do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA, 1948) e da Mensagem (1951-52)—, de que se destacaram, entre outros, António Cardoso, Arnaldo Santos e Henrique Abranches. Mas, pela particularidade e projecção da sua obra, Luandino ultrapassa-a, para se fixar, nas últimas décadas, como uma das maiores figuras de escritor deste século, em língua portuguesa.

A parte significativa da sua obra foi escrita nos anos 60, nomeadamente os dois livros mais importantes, Luuanda e Nós, os do Makulusu. O primeiro constituiu uma autêntica revolução literária […]. O segundo, escrito durante uma semana, conforme indicação do autor, é para ele o texto com o qual mais se identifica em termos pessoais, quase autobiográficos, podendo ler-se como um testemunho vivencial e uma análise do colonialismo a partir de uma visão de dentro da sociedade branca.



VIEIRA, José Luandino, (pseud. de José Mateus Vieira da Graça), 1935- – Duas histórias de pequenos burgueses. Sá da Bandeira: Imbondeiro, 1961. 27, [1] p. : 17cm ; (2 estampas): Br. : Ilustrado com 2 linóleos de Luandino Vieira. Pouco vulgar. Muito bom exemplar. Colecção "Imbondeiro" – 23.
©Artes & Letras (Lisboa, Portugal) (45,00€)



Vieira, José Luandino – Vidas Novas. 1ª edição. Porto: Afrontamento, 1975. Brochura. 18,5x23cm. 116 páginas. Ilustrações de José Rodrigues.
© Livraria Avelar Machado (Lisboa, Portugal) (49,40€)

A sua obra divide-se em duas fases: a primeira, que agrega as estórias escritas até 1962, ou seja, todas as incluídas em Vidas novas, e que ainda se mantêm nos limites do discurso relativamente clássico, não demasiado afastado em relação à norma do português europeu e do modo narrativo conforme com o modelo do conto curto à Maupassant: a segunda fase, com a duração de dez anos, inaugurada pela escrita de Luuanda, tenderá progressivamente para a destruição da pacatez de leitura, disseminando marcas de angolanização da língua portuguesa, subvertendo a norma comunicativa do português-padrão de Lisboa, adoptando gírias, neologizações, tipicismos e outros recursos, também sintácticos, orais e tradicionais africanos, para construir uma língua literária propícia ao imediato reconhecimento da sua diferença. (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p.121)



VIEIRA, José Luandino (1935) – LOURENTINHO, DONA ANTÓNIA DE SOUSA NETO & EU. 1ª edição. União dos Escritores Angolanos, Lisboa, 1981. Brochura. In-8º (200x140). 1 Vol. de 131-[12] pp.
© CIMELIO BOOKS (Cascais, Portugal) (20,00€)



VIEIRA; José Luandino – O Livro dos Guerrilheiros, Narrativas. 1ª edição. Lisboa: Caminho, 2009. Brochura. 109 p.
© Livraria Avelar Machado (Lisboa, Portugal) (20,57€)

Tal como Guimarães Rosa, começou a usar a designação de estória para as suas narrativas, mais longas que o conto e menos desenvolvidas que a novela ou o romance. […]
A estória é, portanto, diferente da história: misto de mussosso (plural: missosso), fábula ou narrativa moral africana, tradicional, e pequena epopeia popular à moda do grande mestre brasileiro de Minas. Esse texto luandino caracteriza-se, na sua génese, por surgir num espaço de criação de uma linguagem nova, que parte da apropriação da língua já codificada e estabilizada socialmente (isto é, normativizada pelo uso erudito do colonizador), para desconstruí-la, por vezes ao nível minucioso da fonologia, num trabalho de Sísifo contra a montanha intransponível. A língua literária luandina surge assim na intersecção da língua natural portuguesa com a língua natural quimbunda, fornecendo aquela sobretudo o espaço lexical e a estrutura básica, interferindo esta nalguns pontos da sintaxe, introduzindo-se vocábulos crioulizados, aquimbundados, do quimbundo ou mesmo neologismos, além de certas nuances (circunlóquios, tautologias, etc.) prolongarem a oralidade gramatical e expressiva do português. […]



VIEIRA, José – Luuanda. Luanda; 1963. In-8ºpeq. de 103[3] p. - Brochura.
Muito rara edição deste célebre livro da literatura angolana e de língua portuguesa, impresso clandestinamente em Luanda e distinguido com o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, atribuição que determinou o encerramento forçado da Sociedade e a proibição do livro em Portugal.
Dedicatória do autor, assinada e datada.

Mas voltando ao livro de que vos quero falar – Luuanda é um livro de contos do escritor angolano José Luandino Vieira publicado clandestinamente em 1963 em Luanda (como se disse) e foi apreendido de imediato.

Este livro é constituído por três estórias: "Vovó Xíxi e seu neto Zeca Santos", "A estória do ladrão e do papagaio" e "A estória da galinha e do ovo".

As estórias de Luuanda dão-nos a conhecer o espaço angolano no período colonial tardio. Retratam o quotidiano dos musseques luandenses; as histórias das famílias, o ambiente caótico, de confusão que a própria arquitectura dos musseques representa. A relação entre os pretos e os brancos, novos e velhos, comportamentos e ideias, vêm marcar o início do estabelecimento de uma norma angolana, distinta da norma portuguesa, na escrita e representação cultural. Tudo o que é retratado reflecte a imagem do dia-a-dia do povo, sendo os mais velhos vistos como os sábios e os mais novos como os que ainda estão a aprender.
Para finalmente ser dada a voz aos angolanos, as estórias são uma mistura de português e inúmeras palavras e expressões em quimbundo. Só falando a mesma língua dos musseques, o texto teria acesso aos seus habitantes e seria apreciado na linguagem do povo.

Luuanda mostra-nos também a influência do português colonizador, sendo o português a língua de prestígio, utilizada pelas classes sociais mais altas, como patrões e administradores portugueses, e o quimbundo sendo a língua falada pelo povo do musseque nos seus contos e conversas. Para além desta nova linguagem, a comunidade de Luanda é representada também através de crenças e ensinamentos, sendo a verdade o povo angolano e a mentira representada pela implantação da lei português, o antigo crioulismo e o racismo existente nos tempos modernos.



VIEIRA, José Luandino, (pseud. de José Mateus Vieira da Graça), 1935- – Luuanda : estórias. (edição ilustrada por José Rodrigues). Lisboa: Edições 70, (1972) 187, [5] p. : (25 cm) : [3 Il.] : Br. Edição de 500 exemplares numerados e assinados pelos autor e ilustrador. Exemplar nº. 257. Bem conservado, pouco vulgar.
©Artes & Letras (Lisboa, Portugal) (120,00€)

A estória central do livro, “Estória do ladrão e do papagaio”, opera uma espécie de passagem entre a primeira narrativa – em que os protagonistas ainda não despertaram para a necessidade da militância na luta contra o colonizador – e a última – em que as personagens vão experimentar o alcance político da prática social solidária.

De um modo bem genérico, é possível dizer que o texto fala sobre o encontro de três africanos na prisão - Xico Futa, Lomelino dos Reis e Garrido Fernandes - e sobre o florescimento da solidariedade entre eles. Vale afirmar que o papel exercido por Xico Futa é central nessa interacção: ele é porta-voz de ensinamentos preciosos para as outras personagens e também para os leitores da estória.

Nesse sentido, a “parábola do cajueiro”, enunciada por Futa, é fundamental para a constituição de um saber revolucionário. Nessa narrativa de carácter didáctico, a personagem adverte que é preciso conhecermos a raiz ou o princípio daquilo que mobiliza as pessoas e as suas acções. Vejamos: 

[…] Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas. (pp. 71-72)

Ao insistir no facto de que devemos reflectir sobre o cajueiro - imagem das estórias entrelaçadas que conformam e justificam a realidade - e perseguir o fio da vida - fio das histórias pessoais e colectivas – Futa aponta para a necessidade de constituirmos a nossa identidade como sujeitos históricos, afirmando valores fundamentais para a mobilização popular contra o poder instituído.

Já no final da estória, a confraternização entre os capianguistas presos afirma a solidariedade tão necessária para o enfrentar da luta e é aí que a voz do narrador se vai manifestar pela primeira vez. A sua fala, antes de mais nada, pede um posicionamento dos leitores, propondo um julgamento estético - e ético - da própria estória: Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem (p. 120). Desse modo, “os que sabem ler” ocupam o lugar da audiência dos antigos “griots” e são convocados a aderir ou não à narrativa e aos seus ensinamentos.

Luuanda é uma obra histórica, vista como um autêntico livro de ruptura com a norma portuguesa na literatura angolana. Pelo seu cariz inovador, mereceu o reconhecimento geral e foi galardoado com dois importantes prémios – 1º Prémio D. Maria José Abrantes Mota Veiga, atribuído em Luanda em 1964.
Em 1965, o júri da Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu o Grande Prémio da Novelística a um jovem escritor, então desconhecido. A obra era o livro de contos Luuanda, e José Luandino Vieira o seu autor. 

Com a particularidade de, na altura da atribuição do galardão, o autor estar prisioneiro num campo de concentração, a cumprir uma pena de 14 anos por «práticas terroristas». A publicação do livro causou uma grande polémica e represálias na época Salazarista.



VIEIRA, Luandino - Luuanda estórias. 2ª Edição. Lisboa; Edições 70, 1972. In-8º de 187 (5) páginas; Brochado
 Edição apreendida em Portugal, possui assinatura de posse, bom estado de conservação geral.
©Livraria Alfarrabista Liliana Queiroz (25,00€)

Luuanda viria a ser publicado por Edições 70 em 1972 – a sua 2.ª edição seria mesmo apreendida e a Editora multada em 30 mil escudos, por despacho assinado pelo director-geral da Informação. Aliás, a pedido do Editor testemunhariam neste processo Ferreira de Castro e Jorge de Sena, com este último a afirmar «o papel primordial no desenvolvimento da literatura angolana de expressão portuguesa».

Obra ímpar pelo seu estilo – que inovava no uso da língua, fortemente marcada pelo português falado em Angola, como afirmaria Augusto Abelaira (Presidente do Júri que votou o prémio), – pela capacidade de criação literária, pela feitura de um universo novelístico, Luuanda foi, na altura, o texto que revelou um autor que se conta hoje entre os maiores da literatura de expressão portuguesa.



VIEIRA, José Luandino – Luuanda. Lisboa: Editorial Caminho. Outubro 2004. 158 pág. Brochura.

Espero que vos tenhas despertado o interesse e que sejam tentados a uma leitura (ou releitura) de alguma das suas obras.

Saudações bibliófilas.

Fontes consultadas:

Luuanda – Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Luuanda)

BEBIANO, Deize Pereira. “Língua Portuguesa e Identidade Nacional em José Luandino Vieira”. (http://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/291-língua-portuguesa-e-identidade-nacional-em-josé-luandino-vieira)

COELHO, Alexandra Lucas, “Luandino Vieira Quebra um Aparente Silêncio de Quase 30 Anos” (entrevista ao Suplemento Mil Folhas, Público, 15/12/2006)

GONÇALVES, Adelto – Luandino Vieira e a literatura como “arma”

ROSA, Patrícia Simões Oliveira, “José Luandino Vieira: A Palavra em Liberdade”.

SÁ, Ana Lopes de, “Luanda literária a várias cores O tema do racismo em Luandino Vieira e Uanhenga Xitu”.

SILVA, Patrícia Soares, José Luandino Vieira: afirmação de uma real identidade angolana. (http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/luandino.rtf)

Notas:
(1) Leia-se: Censura em Portugal – Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Censura_em_Portugal)

(2) Leia-se Diário de Notícias – Luandino Vieira recusa Camões por "razões pessoais" (http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=641087)

sábado, 31 de março de 2012

Luis Bernardo Honwana – um escritor moçambicano a não esquecer.




Luis Bernardo Honwana

Luís Bernardo Honwana (1) nasceu na cidade de Lourenço Marques (actualmente Maputo) em 1942. Cresceu em Moamba, no interior, onde seu pai trabalhava como intérprete. Aos 17 anos foi para a capital estudar jornalismo. O seu talento foi descoberto por José Craveirinha, famoso poeta moçambicano.

Em 1964, Honwana tornou-se um militante da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) que tinha como propósito conseguir a libertação de Moçambique de Portugal.

Devido às suas actividades políticas, em 1964, foi preso pela polícia política. Permaneceu encarcerado por três anos pelas autoridades coloniais.


HONWANA, Luis Bernardo – Nós Matámos o Cão Tinhoso (2)
Lourenço Marque, Sociedade de Imprensa de Moçambique, 1964.
1ª edição. 135 págs. In 8º. Encadernado.
Ilustrações de Bertina (fragmentos de desenho)

Foi durante o tempo passado na prisão que escreveu o seu único livro, Nós Matámos o Cão-Tinhoso, com o objectivo de demonstrar o racismo do poder colonial português. O livro chegou a exercer uma influência importante na geração pós-colonial de escritores moçambicanos. Muitos dos contos, escritos em português europeu padrão, são narrados por crianças. O universo social e cultural moçambicano durante a época colonial é o centro da análise das narrativas de Nós Matámos o Cão-Tinhoso. De acordo com Manuel Ferreira, “Os contos de Nós Mátamos o Cão-Tinhoso apresentam-nos questões sociais de exploração e de segregação racial, de distinção de classe e de educação”. Cada personagem em cada conto representa uma diferente posição social (branco, assimilado, indígena e/ou mestiço).



HONWANA, Luis Bernardo – Nós Matámos o Cão Tinhoso
Lourenço Marque, Sociedade de Imprensa de Moçambique, 1964.
1ª edição. 135 págs. In 8º. Encadernado.
Ilustrações de Bertina (fragmentos de desenho)

Após a independência, Honwana foi alto funcionário do governo e presidente da Organização Nacional dos Jornalistas de Moçambique. Desempenhou também funções de director do gabinete do Presidente Samora Machel e Secretário de Estado da Cultura.

Bibliografia:

Publicou Nós Matámos o Cão-Tinhoso em 1964. Livro que foi de imediato apreendido pela PIDE, o que o torna raríssimo na sua edição original. Em 1969, ainda em pleno colonialismo e com a guerra colonial no auge, a obra é publicada em língua inglesa (com o título de We Killed Mangy-Dog and Other Stories) e obtém grande divulgação e reconhecimento internacional, vindo a ser traduzida para vários outros idiomas.


HONWANA, Luis Pedro – Nosotros matamos al Perro-Tiñoso
(tradução em espanhol)
Editorial Baobab, 2008. 167 págs. Brochura.

Nós Matámos o Cão-Tinhoso é um livro de sete contos da autoria do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana, publicado em 1964 e considerado uma obra fundacional da literatura moçambicana moderna. Os contos incluídos no livro são “Nós Matámos o Cão-Tinhoso”, “O Dina”, “Papa, Cobra, Eu”, “As Mãos dos Pretos”, "Inventário de Imóveis e Jacentes”, "A Velhota" e "Nhinguitimo".

HONWANA, Luis Bernardo – Nós Matámos o Cão Tinhoso
(capa da brochura)
Lourenço Marque, Sociedade de Imprensa de Moçambique, 1964.
1ª edição. 135 págs. In 8º. Encadernado.
Ilustrações de Bertina (fragmentos de desenho)

O aparecimento desta obra estabeleceu um novo paradigma para o texto narrativo moçambicano. Na escrita dos contos que compõem o volume, Honwana favorecia um estilo simples e económico, prestando atenção aos aspectos visuais das histórias.

Um dos seus contos "As mãos dos pretos" foi registado no livro "Contos Africanos dos países de língua portuguesa", junto a outros contos dos autores Albertino Bragança, Boaventura Cardoso, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira, Mia Couto, Nelson Saúte, Odete Semedo, Ondjaki e Teixeira de Sousa. Todos estes autores vivem ou viveram em países africanos de língua oficial portuguesa.


Luis Bernardo Honwana

Nota do autor na contracapa da 1ª edição:

“Não sei se realmente sou escritor. Acho que apenas escrevo sobre coisas que, acontecendo à minha volta, se relacionem Intimamente comigo ou traduzam factos que me pareçam decentes. Este livro de histórias é o testemunho em que tento retratar uma série de situações e procedimentos que talvez interesse conhecer.

Chamo-me Luís Augusto Bernardo Manuel. O apelido Honwana não vem nos meus documentos. Sou filho de Raul Bernardo Manuel (Honwana) e de Nally Jeremias Nhaca. Ele intérprete da administração da Moamba e ela doméstica. Tenho oito irmãos.

Nasci em Lourenço Marques, em 1942, e vivi com os meus pais, na Moamba, até aos 17 anos. Actualmente moro no Xipamanine, em Lourenço Marques, e além de frequentar o liceu, sou jornalista.


We Killed Mangy-Dog & other Mozambiqu stories
(Tradução inglesa)

As minhas primeiras histórias datam do início da antiga página literária juvenil do jornal «Notícias», o «Despertar». Todavia quase os contos que agora são publicados começaram a ser feitos anteriormente, quando ainda não dava tanta atenção ao que de vez em quando me dava para escrever. Foi numa altura em que, embora praticasse desportos muito intensamente, um grupo de jornalistas, pintores e poetas ajudou-me a ler uma quantidade de livros importantes, levou-me a ver filmes que tinham de ser vistos e emprestou-me algumas das suas preocupações. Entretanto estudei desenho e pintura durante algum tempo e participei com vários trabalhos em exposições de arte. Também escrevi coisas para filmes que não se fizeram e pertenci a uma equipa que começou a fazer um filme e desistiu antes do fim.

Depois do «Despertar», Eugénio Lisboa, Rui Knopfli e José Craveirinha entusiasmaram-me, publicando algumas das minhas histórias em jornais. Há pouco tempo o Rancho, que tornou possível o aparecimento deste livro, falou-me pela primeira vez em editar alguns contos em livro.

Para a capa e para ilustrar as histórias aproveitaram-se fragmentos de desenhos que a Bertina tinha feito sem conhecer os meus escritos o que o Pancho usou depois de ver que as coisas que os desenhos contam são parecidas com as histórias que fiz. O pedaço de inventário é de um inventário verdadeiro: a mão d'As mãos dos pretos é a minha.”

Esta obra seria adaptada ao teatro pelo grupo O Bando em 2010 (entre muitas outras adaptações) e levado à cena de 20 de Maio a 20 de Junho de 2010, de Quinta a Domingo, às 22h:

- 20 de Maio a 6 de Junho na EB1 nº 2 de Palmela, Palmela;

- 10 a 20 de Junho no Teatro O Bando, Palmela.


Nós Matámos o Cão Tinhoso – Teatro O Bando

O Teatro O Bando convidou Rui Júnior a fazer a coordenação musical do espectáculo Nós Matámos o Cão Tinhoso a partir de um conto de Luís Bernardo Honwana com dramaturgia e encenação de Nuno Pino Custódio.

Sobre esta adaptação, Rui Júnior comentou:

“Tentei ilustrar musicalmente esta peça: pintá-la com sonoridades, ora com salpicos calmos e tranquilos, ora com pinceladas desenfreadamente tensas, preencher-lhe espaços sem lhe retirar os silêncios e as respirações. Antes de perceber há que ter vivido e encontrar, na nossa própria experiência de vida, o que o autor transmite, o que a música contida na narrativa nos faz ouvir: é neste espaço da nossa própria imaginação de espectador e ouvinte que encontramos a verdadeira percepção do que as obras tentam e por vezes conseguem conter e contar.”

HONWANA, Luis Bernardo – Nós Matámos o Cão Tinhoso e outros contos
Livros Cotovia, 2008, Colecção: Livros de Bolso
ISBN: 978-972-795-261-8

Para vossa apreciação aqui fica o registo de um dos mais belos contos deste livro:

AS MÃOS DOS PRETOS

"Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo.

Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.

Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agoraé ver-me a não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa.


As Mãos dos Pretos

O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse-me que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:

“Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e decidiram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!”.

Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.

Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.


HONWANA, Luis Bernardo – Nós Matámos o Cão Tinhoso
Afrontamento Editora. (3)
Brochura.

Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Vírginia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas.

Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!

A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos disso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela me disse foi mais ou menos isto:

HONWANA, Luis Bernardo – Nós Matámos o Cão Tinhoso.
(edição brasileira)
Ática , 1980. Coleção Autores Africanos n.º 4.
1ª edição. 96 págs. Brochura.
ISBN: 8508050410

“Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos”.

Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.

Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido."

Espero ter despertado a vossa atenção para este livro e sobretudo para o seu autor.

Saudações bibliófilas.


Notas:

(1) Para um melhor conhecimento da sua personalidade e ideais leia-se: “A cultura é o cimento mais adequado à construção dum novo país” entrevista de Helder Fernando em 22/10/2010


(3) Leia-se ainda: A Biblioteca do Macua