"Se não te agradar o estylo,e o methodo, que sigo, terás paciência, porque não posso saber o teu génio, mas se lendo encontrares alguns erros, (como pode suceder, que encontres) ficar-tehey em grande obrigação se delles me advertires, para que emendando-os fique o teu gosto mais satisfeito"
Bento Morganti - Nummismologia. Lisboa, 1737. no Prólogo «A Quem Ler»

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

José Daniel Rodrigues da Costa




José Daniel Rodrigues da Costa

Trago-vos hoje um poeta, José Daniel Rodrigues da Costa (1), que foi uma das grandes vítimas de Bocage, que contra ele escreveu vários sonetos e se contam várias estórias sobre o seu relacionamento.
Aliás, este será o tema da nossa próxima conversa.

José Daniel nasceu em Colmeias – Leiria a 31de Outubro de 1757, donde cedo saiu. Chega a Lisboa aos dois anos de idade, onde falecerá a 7 de Outubro de 1832
Sob o pseudónimo de Josino Leiriense, que usava nas tertúlias da Arcádia Lusitana, Rodrigues da Costa teve uma vida de notoriedade social e intelectual, testemunhadas em várias obras literárias que publicou, quase sempre sob a forma de folhetos, que se vendiam como “livros de cordel” (2).


«Camara optica, onde as vistas ás avessas mostrão o mundo a's direitas»
por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de J.F.M. de Campos, 1824

Uma das mais célebres será «O Balão aos Habitantes da Lua» (1819). Desta obra deixo aqui o seu prólogo:

PRÓLOGO

Com a cabeça lá por esses ares
– Cá por certas razões particulares –,
A fazer um Poema corri pronto,
Mas fiquei ainda mais aéreo e tonto!
E talvez que saísse limitado,
Pelo fazer no ar muito apressado:
Que feito ser não pode com assento
Tudo o que tem no ar o fundamento.
Agora, qual Balão que atrai o povo,
Eu me apresento ao público de novo:
Subindo pouco e pouco sem perigos,
Na lembrança entrarei dos meus Amigos,
Dos meus Apaixonados, meus Leitores,
Dos Assinantes meus e mais Senhores
Que em Belas-Letras são do meu partido,
Que as minhas Obras têm comprado e lido,
A rogar-lhes, pedindo acolhimento,
– Ou me encontrem ou não merecimento –,
Para que o meu Poema gasto seja
E produza uma cousa que se veja.

Ou papel ou metal, tudo convém
Apesar do defeito que ambos têm:
Que o dinheiro papel, que nos consome,
Qualquer vento que vem o leva e some;
E o metal, que em despesas o consumo,
É um ar que lhe dá, torna-se em fumo!

Mas deixando o que já não tem melhora,
Da Máquina tratar pretendo agora.
Notei que ela subiu com gravidez,
Que teve o bom-sucesso nesse mês:
Sem parteira ou parteiro, desovou
E os ares de filhinhos povoou;
Pois viram-se, por ópticas lunetas,
Todos eles tornados em Cometas,
Que eram uns Balõezinhos muito anões
Por cima da Travessa dos Ladrões,
No sítio de Pedrouços, em Almada,
No Rossio, Olarias, na Tapada,
Fora alguns que, segundo o que se pensa,
Ficaram afogados à nascença.
Mas visto que esta mãe em tanta lida
Fora no parto seu bem sucedida...
Que muito que eu também deseje agora

Que este Poema tenha boa-hora!
Não se estranhe a prenhez ver-se hoje em macho,
Que igual sucesso nas Gazetas acho:
Pois já houve um rapaz que, sem defeito,
Lhe tiraram de dentro outro sujeito.

Na verdade me vejo confundido
Do que em Lisboa tem aparecido!
Que se mais dez ou vinte anos aturo,
Ainda espero de ver, eu lho seguro,
Que algum, que venha aqui de engenho e arte,
Tente a terra furar de parte a parte,
Para ouvir os Antípodas falar
E podermos com eles conversar.
Empreende-se ir além das nuvens rotas!
Em vez de botes, navegar em botas!
Uns cumprem o que dizem, outros não,
No entanto, haja prazer, viva a função!

Mas entre tudo quanto se tem feito,
Subir ao ar merece algum respeito:
Pois não é cousa pouca em quem se anima
A andar de guarda-costa lá por cima.
Porém talvez mais útil se fizesse,

Se caça nos piratas dar pudesse:
Ora descendo ao mar, ora subindo,
E onde quer que os achasse, ir-lhes caindo,
Qual falcão, vendo a lebre, aceso em fogo.
Que em cima. como um raio, lhe cai logo,
A dispersar aquela cruel praga
Que o Comércio do mundo estorva e estraga!
Fúrias que de veneno são nutridas,
Que aos Navegantes roubam, tiram vidas.

O meu herói brilhar deve na História
Ir o seu nome ao Templo da Memória;
Confessar lhe devemos a destreza,
O grande arrojo, a impávida afouteza;
E o seu merecimento abalizado
Seja ao Globo em meus versos decantado.


Argumento

Matemáticos pontos combinando,
Tendo por base a grande Astronomia,
Um Génio, que não tem nada de brando,
Projecta ir ver o Sol, fonte do dia:
Em pejado Balão vai farejando,
Subindo mais e mais como devia;
Divisa a Lua, mete-se por ela,
Pasma de imensas cousas que viu nela.


Foi promovido a Major da Legião Nacional do Paço da Rainha. Gozando da protecção do Intendente-Geral Pina Manique empenhado em manter a ordem social e reprimindo os ideais iluministas da Revolução Francesa, que perseguira Bocage como já vimos.
Ontem, como hoje, ter uma “boa protecção” era meio caminho andado para a fama ... se houvesse alguma arte também ajudava!
Atentemos no percurso destes dois homens, enquanto o “protegido” via a sua obra ser divulgada e apadrinhada o “crítico” e, sobretudo, de “ideias arrojadas e perigosas” era, ou tentava ser, repelido. Mas como sempre. a verdadeira arte triunfa: Bocage permanecerá para sempre no universo do nosso conhecimento, enquanto José Daniel Rodrigues da Costa talvez não esteja esquecido precisamente por Bocage ter existido.


«Camara optica, onde as vistas ás avessas mostrão o mundo a's direitas»
por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de J.F.M. de Campos, 1824



Bibliografia activa:
(textos disponíveis on-line na «Open-Library – beta»)

Jantar imaginado, com sobremeza, café e palitos, dado em meza redonda na casa de pasto do Desejo, sendo cozinheiro o Pensamento, e freguezes Gente de diversos paladares por José Daniel Rodrigues da Costa
Na impressão de João Nunes Esteves ..., 1826

Portugal convalescido pelo prazer que prezentemente disfruta na dezejada, e feliz vinda do seu amabilissimo monarcha o Sr. D. João VI. e da sua augusta familia por José Daniel Rodrigues da Costa
Na typografia Lacerdina, 1821

Na chorada perda do excellentissimo senhor D. José Thomaz de Menezes por José Daniel Rodrigues da Costa
Na typografia Nunesiana, 1790

Novidades da corte por José Daniel Rodrigues da Costa
Na offic. de Antonio Rodrigues Galhardo ..., 1777

Gemidos da tristeza na lamentavel perda de S.A.R. o senhor D. José, Principe do Brazil por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1788

Embarque dos apaixonados dos francezes para o hospital do mundo por José Daniel Rodrigues da Costa
Na offic. de Simão Thaddeo Ferreira, 1808

Silva por José Daniel Rodrigues da Costa
Na offic. de Antonio Rodrigues Galhardo ..., 1777

Ecloga, primeira parte, Jozino, e Darcia por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de Francisco Borges de Sousa, 1784

Qualidades de amigos e mulheres para o acerto dos homens por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de Domingos Gonsalves, 1782

Saudades dos pastores por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de Domingos Gonsalves, 1781

Modas do tempo descubertas na quarta parte dos Ópios por José Daniel Rodrigues da Costa
Na offic. de Simão Thaddeo Ferreira, 1788

Egloga a primavera de Portugal reproduzida nos serenissimos senhores Infantes por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de Filippe da Silva e Azevedo, 1785

Ecloga, primeira parte por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de Domingos Gonsalves, 1780

Ecloga, segunda parte por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de Domingos Gonsalves, 1780

O dependente feliz nas desordens da vida por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1782

Jogo dos dotes, para recreio das sociedades, em que se tirão lindas sortes em verso por José Daniel Rodrigues da Costa
S.T. Ferreira, 1802

Camara optica, onde as vistas ás avessas mostrão o mundo a's direitas por José Daniel Rodrigues da Costa
Na officina de J.F.M. de Campos, 1824

Barco da carreira dos tolos por José Daniel Rodrigues da Costa
Typ. de E.J. da Costa Sanches, 1850

Esperança realisada na feliz e desejada vinda do Sereníssimo Senhor Infante Dom Miguel ao Reino de Portugal por José Daniel Rodrigues da Costa
Impr. Regia, 1828

Saudações bibliófilos e votos de um excelente 2010!


(1) Consulte-se: José Daniel Rodrigues da Costa e veja-se o que sobre ele escreveu o nosso bibliógrafo Inocêncio Francisco da Silva.

(2) A designação de “livro de cordel” era dada pelo tipo de cozedura simples no folheto quando apresentava mais que um fólio impresso, e por serem normalmente vendidos em feiras de rua pendurados em cordéis, como num estendal, não de roupa, mas de folhetos. Também, eram vendidos pelos cegos ...

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Manuel Maria Barbosa du Bocage



M. M. Barbosa du Bocage

No dia do aniversário do falecimento de Bocage quero aqui deixar um testemunho. Trata-se dum poeta que é um mito, um homem que fez e deixou estória, e que foi objecto de várias anedotas, durante o antigo regime, servindo como escape de libertação da mordaça que nos calava a expressão.

Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765 e faleceu em Lisboa a 21 de Dezembro de 1805.(1)

Foi um poeta português e, possivelmente, o maior representante do arcadismo, ainda que se possa considerar o símbolo deste movimento literário, insere-se já num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico.

Nasceu em Setúbal às três horas da tarde de 15 de Setembro de 1765, era filho do bacharel José Luís Soares de Barbosa, juiz de fora, ouvidor, e depois advogado, e de D. Mariana Joaquina Xavier l'Hedois Lustoff du Bocage, cujo pai era francês. Teve cinco irmãos.


Livro de baptismos da paróquia de São Sebastião, fólio 176

Apesar do muito que sobre si se escreveu (2), ainda permanecem muitas lacunas a descoberto, pois boa parte da sua vida permanece um mistério. Não se sabe que estudos fez, embora se deduza da sua obra que estudou os clássicos e as mitologias grega e latina, que estudou francês e também latim.

O seu pai, José Luís Soares de Barbosa, nasceu em Setúbal, em 1728. Bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, foi juiz de fora em Castanheira e Povos, cargo que exercia durante o Terramoto de 1755, que arrasou aquelas povoações. Em 1765, foi nomeado ouvidor em Beja. Acusado de ter desviado a décima enquanto ouvidor, possivelmente uma armadilha para o prejudicar, visto ser próximo de pessoas que foram vítimas de Pombal, o pai de Bocage foi preso para o Limoeiro em 1771, nunca tendo feito defesa das suas acusações.

Daqui se compreende que a sua infância não foi muito risonha, pois quando estes acontecimentos se desenrolam, tinha apenas seis anos. O seu pai permanecerá preso seis anos. Só após a morte do rei D. José I, em 1777, com a "viradeira", recuperará a liberdade. Voltou para Setúbal, onde foi advogado.

A sua mãe era segunda sobrinha da célebre poetisa francesa, madame Anne-Marie Le Page du Bocage, tradutora do "Paraíso" de Milton, imitadora da "Morte de Abel", de Gessner, e autora da tragédia "As Amazonas" e do poema épico em dez cantos "A Columbiada", que lhe mereceu a coroa de louros de Voltaire e o primeiro prémio da academia de Rouen. Esta também o deixará órfão cedo, aos dez anos, com o seu falecimento.

A identificação das mulheres que amou é duvidosa e discutível.


Imagem do Lisboa no séc. XIX

Viveu num período em que o ambiente que então se respirava na capital era estreitíssimo e asfixiante. Por um lado, os medos da propagação das doutrinas filosóficas traziam empenhados o tribunal da Inquisição, a polícia e o intendente Pina Manique, seu chefe, na indagação minuciosa dos factos, mesmo os de menor alcance, que cada indivíduo pudesse praticar com intuitos liberais.
Por outro lado não estava ainda extinta a luta dos ódios contra o marquês de Pombal, a quem as famílias dos nobres, por ele castigados, acusavam violentamente, imputando-lhe acções desonrosas, delitos infamantes, e tentando reabilitar-se como inocentes no atentado contra el-rei D. José. Época de incertezas, de dúvidas, de receios e de perseguições

O gosto de então, a moda predominante, eram as canções brasileiras, cantadas à guitarra ou à viola, desde as reuniões de família, até ás orgias dos botequins. Todos os poetas escreviam letras para estas árias, e Manuel Maria, como Bocage era ordinariamente conhecido, não foi dos menos pródigos. Até porque. este sempre sonhava assemelhar o seu destino com o de Camões, de quem só invejava a imorredoura glória do grande épico, comparava a sua mocidade livre com a que ele tivera, e pensava que também este na corte compunha e recitava versos, requestava donzelas, e cantava a Natércia. Camões tinha ido ao Oriente, Bocage foi também.

Possivelmente ferido por um amor não correspondido, assentou praça como voluntário no Exército em 22 de Setembro de 1781 e ai permaneceu até 15 de Setembro de 1783.

Nesta data, foi admitido na Escola da Marinha Real, onde fez estudos regulares para guarda-marinha. No final do curso desertou, mas, ainda assim, aparece nomeado guarda-marinha por D. Maria I.

Em 14 de Abril de 1786, embarcou como oficial de marinha para a Índia, na nau “Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena”, que chegou ao Rio de Janeiro em finais de Junho.


Imagem do Rio de Janeiro, em princípios do séc. XIX

Fez escala na Ilha de Moçambique (início de Setembro) e chegou à Índia em 28 de Outubro de 1786. Em Pangim, frequentou de novo estudos regulares de oficial de marinha. Em 25 de Fevereiro de 1789 havia sido promovido a tenente, de infantaria da 5.ª companhia da guarnição da praça de Damão, onde chegara a 6 de Abril do mesmo ano, mas logo dois dias depois desapareceu, em companhia doutro oficial da mesma praça, indo ter, pela Porta do Campo, a Macau, onde sofreu inclemências, em resultado desta arrojada aventura. Nestas paragens foi ainda mais infeliz do que nas possessões da Índia, e só teve dois homens que lhe valeram: Lázaro da Silva Ferreira, governador de Macau, que o não pronunciou por haver desertado de Damão, e o negociante Joaquim Pereira de Almeida, que recebendo-o e dando-lhe agasalho o apresentou na sociedade macaense. Mas absolvida a culpa, o poeta não descansava com saudades da pátria, dos amigos e dos amores.

Partiu e, em Agosto de 1790, entrava a barra do Tejo. Chegava então a Lisboa o eco da Revolução Francesa de 1789. A liberdade era o hino que se cantava às escondidas por toda a parte, porque a polícia estava cada vez mais intransigente. O poeta cantou logo contra o despotismo, chamando-lhe “sanhudo, inexorável, monstro que em pranto, em sangue a fúria ceva”, mas que “não tiraniza do livre coração a independência”, e compôs muitos sonetos em honra da liberdade.

Ainda em 1790 foi convidado, e aderiu, à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, onde adoptou o pseudónimo Elmano Sadino Eram estes os sentimentos políticos de Bocage e de todos os sócios da Nova Arcádia, salvas poucas excepções.

No entanto, em 1793, tornou-se seu detractor.. Em todo o tempo que durou esta guerra com os seus colegas, levantada por vaidades de poetas e de literatos, jogaram-se as mais acerbas sátiras e vibraram-se epigramas os mais frisantes. (3)

A década seguinte é a da sua maior produção literária e também o período de maior boémia e vida de aventuras.

Em 1791 publicou o 1.º volume das suas Rimas, os Queixumes do pastor Elmano, e os Idílios marítimos. Em 1799 publicou o 2.º tomo das Rimas, e em 1804, o 3.º tomo.

Como já se referiu, dominava então em Lisboa o Intendente da Polícia Pina Manique, o qual, em 7 de Agosto de 1797, deu ordem de prisão a Bocage por ser “desordenado nos costumes”. Este ficou preso no Limoeiro até 14 de Novembro de 1797.


Bocage perante a Inquisição
«Não sou vil assassino...»

Valem-lhe os amigos que o socorrem e consegue ser despronunciado de delito contra o Estado, sendo entregue à Inquisição, tendo transitado para o calabouço da Inquisição, no Rossio, por erro religioso. Aí ficou até 17 de Fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades, dirigido pelos Padres Oratorianos de São Filipe Nery, depois de uma breve passagem pelo Convento dos Beneditinos, para uma espécie de cura espiritual no Oratório, donde só saiu, em liberdade, no último dia de 1798, regenerado mas profundamente debilitado. Durante este longo período de detenção, Bocage mudou o seu comportamento e começou a trabalhar seriamente como redactor e tradutor.

De 1799 a 1801 trabalhou sobretudo com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente bem situado e nas boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos trabalhos para traduzir.


BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du.
«Poesias Eróticas, Burlescas e Satyricas»
Bruxellas, MDCCCLX
(um dos livros mais proibidos de sempre...)

A partir de 1801, até à morte, em Lisboa na manhã de 21 de Dezembro de 1805, por aneurisma, viveu em casa por ele arrendada no Bairro Alto, naquela que é hoje o n.º 25 da travessa André Valente.

Espero que este esboço vos tenha despertado o interesse para a leitura e o estudo deste controverso poeta.

Saudações bibliófilas

(1) A título de curiosidade refira-se que era primo, em segundo grau, do zoólogo José Vicente Barbosa du Bocage, com vasta e importante obra publicada.

(2) Consulte-se por exemplo:
NORONHA, José Feliciano de Castilho Barreto e – Manoel Maria Barbosa du Bocage. Excertos ... Tomo III. Rio de Janeiro, Livraria B. L. Garnier Editor, 1867. In 4º de 326 pp.

BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. - POESIAS DE... Colligidas em nova e completa edição. Dispostas e anotadas por I. F. da Silva. E precedidas de um estudo biographico e litterario sobre o poeta, escripto por L. A. Rebello da Silva. Tomo I (ao Tomo VI). Lisboa, Editor: A. J. Lopes. MDCCCLIII. 6 Vols. In-8º

(3) Veja-se a este propósito:
NORONHA, José Feliciano de Castilho Barreto e – Manoel Maria Barbosa du Bocage. Excertos ... Tomo III. Rio de Janeiro, Livraria B. L. Garnier Editor, 1867. In 4º de 326 pp

sábado, 19 de dezembro de 2009

Inquisição de Lisboa on-line já disponível




Torre do Tombo

Quero deixar aqui esta informação, que me parece ser de grande utilidade, para todos aqueles que se debruçam sobre o estudo deste tema, ainda que tão polémico, mas que marcou de maneira “um pouco sinistra” toda a nossa história.

O projecto «Inquisição de Lisboa on-line», que esteve em curso no Arquivo Nacional da Torre do Tombo desde finais de Julho de 2007, e tornado possível pelo mecenato da REN - Redes Energéticas Nacionais SGP, S.A., está finalmente acessível ao público através da Internet, desde 7 de Dezembro.

O trabalho foi desenvolvido em várias vertentes, desde o imprescindível tratamento e descrição arquivística, passando pela intervenção curativa de alguma documentação, até à digitalização dos processos e dos livros da Inquisição de Lisboa, permitindo o acesso remoto e gratuito a uma vastíssima quantidade de documentos.


Inquisição de Lisboa, proc. 9352

Pode consultar os quase 18.000 registos de descrição de processos e documentação dispersa, e ver algumas das imagens associadas, estando também disponíveis as diversas séries de livros, como os Cadernos do promotor, Nefandos ou de Denúncias, entre muitos outros.


Inquisição de Lisboa, proc. 14649


Decorreu no passado dia 12 de Novembro de 2009, o workshop «A Inquisição de Lisboa na nova plataforma digital: acesso e disponibilização», onde foram apresentadas diversas comunicações que ilustraram o decurso do projecto.

Espero que este instrumento vos seja de grande utilidade.

Saudações bibliófilas.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Natal – uma reflexão muito pessoal



Seguramente que tínhamos, como sempre, muitos projectos...

Estamos quase no Natal e, mais um ano que se aproxima do seu fim.
Muitos acontecimentos se desenrolaram ao longo destes meses, nos quais nós fomos mais ou menos intervenientes.
Seguramente que tínhamos, como sempre, muitos projectos, mas por diversas vicissitudes da vida, só conseguimos concretizar alguns.

Para muitos o Natal é altura de festejos, de troca de prendas e, sobretudo, uma festa que tradicionalmente, reúne toda a família,
Mas esquecemo-nos de que na sua origem está o nascimento de Cristo e, para os cristãos, deveria ser um hino ao amor pelo próximo.
Como seria bom que todos nós, ao menos nesta quadra, tentássemos ver o Mundo por outra perspectiva e, porque não, com os olhos duma criança!

Quem melhor do que elas é capaz de parar para admirar, com os seus olhos cheios de inocência e o seu sorriso alegre e puro, o voo duma ave, o colorido duma flor, partilhar com um amigo as suas brincadeiras e os seus sentimentos.


...é capaz de admirar, com os seus olhos cheios de inocência e o seu sorriso alegre
e puro, o voo duma ave, o colorido duma flor, partilhar com um amigo
as suas brincadeiras e os seus sentimentos...

Ao crescermos, esquecemos este lado imaterial e puro e preocupamo-nos com os factores materiais e auto promocionais, voltando a cara ao próximo, quando este nos estende a mão, muitas vezes, só para ouvir uma palavra de alento.
Por que não repensarmos a nossa forma de estar no Mundo, tentar manter viva a criança, que existe dentro de todos nós, e deixar que ela possa demonstrar toda a sua ternura desligada de segundas intenções.

Se nós conseguimos partilhar e trocar opiniões sobre os nossos livros e a nossa paixão, a bibliofilia, porque não haveremos de alargar este espirito de partilha com aquilo que nos rodeia.


Iluminura do Livro “Hours of the Virgin”:
A Natividade, a adoração de Cristo menino por Maria e S. José, fl. 44v,
do chamado “Livro de Horas de Besançon”, datado de 1445

Não sou mais puro, nem melhor, que qualquer outro, mas hoje apeteceu-me trocar convosco estas palavras, pois que para além de bibliófilos somos Homens e hoje é com estes que eu me apeteceu falar.

Antes de terminar quero deixar-vos este poema dessa figura ímpar da nossa literatura que é Fernando Pessoa.

[CHOVE. É DIA DE NATAL]

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Saudações fraternas, pois as bibliófilas estão sempre presentes!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Sugestões natalícias




SHAKESPEARE, William. The Works of Shakespeare.
Oxford, 1743-44.

Para aqueles menos cuidadosos que ainda não compraram os seus presentes de Natal, e deverão ser muitos, como é o meu caso, deixo aqui algumas sugestões onde podem encontrar um bom livro que poderá ser uma excelente ideia de prenda para aquele(a) amigo(a) especial que aprecia os livros com grande entusiasmo.
Ainda que aparentemente banal, se conhecermos bem o destinatário, esta poderá ser uma prenda bastante personalizada e que perdurará para sempre na sua memória.

A «Livraria Burnay» apresentou o seu Boletim Bibliográfico n.º 44 com um lote de livros interessantes. Para o visualizar aceda em http://www.livrarialuisburnay.pt/ .


Boletim Bibliográfico n.º 44

A in-libris sugere alguns dos seus livros antigos em «Montra de Natal», nas temáticas de Literatura, Poesia, Etnografia, Culinária, História, Caça, Arte, Tiragens Especiais, Artes Decorativas e Filosofia, que poderemos utilizar como ofertas de Natal únicas, marcando assim a nossa relação com as pessoas de quem mais gostamos, de uma forma muito personalizada.



NAMORA (Fernando).— RELEVOS. Poemas. [Tipografia Louzanense. 1937)]. 18x23,5cm. LXIV págs. inums. B.Livro de estreia de Fernando Namora, muito raro e um dos mais procurados pelos coleccionadores da sua obra. Capa da brochura, desenhada pelo autor, impressa a ouro e com o seguinte registo tipográfico na contracapa: “Portugália. Coimbra. 1938”.RARA PEÇA DE COLECÇÃO



ORTIGÃO (Ramalho).— EM PARIZ. Porto. Typographia Lusitana. 1868. 14x20,5 cm. 235-III págs. E.
“Leitor amigo: — Tu, que a estas horas do mais ameno outono, estendes a polaina brança pela formosa varzea de Collares, ou passeias os teus consolados nervos á beira-mar pelas praias do Tejo ou pela foz do Douro, quem sabe se serás por mim!”Hoje em dia um viajante que se não apeie de balão com noticias da lua, precisa de nos ser muito sympathico para o não termos por um semsaborão quando vier contar o que viu. Este mundo está visto e revisto. A electricidade e o vapor tornaram toda a redondeza do globo terrestre tão comprehensivel como a circunferencia de uma tangerina que a gente atravessa com um palito e mette na algibeira acabado o jantar”. Primeira e mais rara das várias edições publicadas deste muito apreciado livro de viagens do excelente prosador que foi Ramalho Ortigão. Com as capas da brochura preservadas, encadernado à amador com original decoração a ouro na lombada e o corte superior das folhas carminado e pontilhado de pequenas estrelas douradas, tendo intactas as restantes margens. Assinatura de J. Campos Henriques no frontispício, do mesmo ano da publicação do livro.


A «Livraria Alfarrabista de Miguel de Carvalho» apresenta o seu «Catálogo de Livros Seleccionados – Dezembro 2009»



Destaco pela sua raridade e procura estes dois títulos.

QUEIRÓS, Eça de & ORTIGÃO, Ramalho – Mystério da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Notícias. Typographia de Domingos Luiz dos Santos, Rio de Janeiro,1878. In-8º de 394-(1) págs. Encadernação recente meia francesa em pele verde com dizeres na lombada. Rubrica de posso no frontispício. Aparados, papel com acidez generalizada, próprio da sua qualidade.
Trata-se de uma contrafacção da primeira edição portuguesa publicada em 1870 não referida nem por Guerra e Cal (“Bibliografia Activa e Passiva”) nem por Gondim de Freitas (“Tragédia de Eça de Queirós”). Ambos os queirosianos referem apenas a existência de uma segunda edição impressa no Rio de Janeiro em 1878 com indicação no frontispício e como tal seria uma contrafacção visto a segunda edição portuguesa ser impressa em 1885 pelo livreiro António Maria Pereira. ANEXA-SE A ESTE LOTE O EXEMPLAR DA CONTRAFAÇÃO COM INDICAÇÃO DE 2ª EDIÇÃO. Uma análise sem grandes cuidados às folhas de rosto de ambos os exemplares que se apresenta, verifica-se que são nítidas e óbvias as diferenças entre ambos, na obstante de serem impressos no mesmo ano. A mesma análise, mas agora mais atenta á página 21 verifica-se diferenças quanto à disposição da tipografia no último parágrafo. No entanto, são praticamente os mesmos tipos, a mesma composição e o mesmo papel utilizado na feitura de ambos os exemplares. MUITO RARO E ESPÉCIE BIBLIOGRÁFICA. PRATICAMENTE DESCONHECIDA. PEÇA DE COLECÇÃO.



VIEIRA, P. António – SERMOENS DO P. ANTONIO VIEIRA DA COMPANHIA DE IESU PREGADOR DE SUA ALTEZA. Primeira parte (à décima quinta). Lisboa, na Officina de Ioam Costa, 1679-1710. In-4º de 15 volumes.
Encadernações disformes inteira de carneira, alguns deles com pequenos defeitos e restauros. Frontispício do volume XII solto.
Trata-se da raríssima primeira edição de todos os sermões de uma das figuras de proa da literatura portuguesa de sempre. Samodães, 3516.


Para terminar a «Librairie Le Feu Follet» de Paris apresenta um Catálogo com o título "Offrir un cadeau", de que destaco esta obra pela sua excepcional qualidade:



(ALGERIE & COLONISATION) Charles NODIER Journal de l'expédition des portes de fer. Imp. Royale, Paris, 1844, 19x28,5cm, relié.
Edition originale jamais mise dans le commerce et imprimée sur vélin fort, seul tirage avec 6 Chine. Reliure en plein maroquin souris, dos à quatre nerfs soulignés de pointillés dorés et richement orné de caissons dorés avec incrustations de maroquin rouge et olive, dentelles dorées en tête et en queue, roulettes dorées sur les coiffes, plats décorés d'un très riche encadrement doré avec incrustations et listels de maroquin rouge, brun et olive enrichi de rosaces en écoinçons, dentelles dorées sur les coupes, contreplats richement doublés d'un encadrement à motif de feuilles de chêne et de glands dorés, riches fers dorés répétés 20 fois représentant un képi sur fonds de fusils et sabres orientaux entrecroisés, le tout dans un ensemble de mandorles mosaïquées en plusieurs nuances de brun en alternance avec des rosaces à incrustation de maroquin rouge, l'autre contreplat est aux mêmes motifs que le premier mais avec variations de couleurs des maroquins; gardes de soie moirée, pages suivantes de papier à la cuve, tranches dorées, très importante reliure Art Nouveau de Charles Meunier signée et datée de 1910.
Ouvrage ilustré de 200 vignettes dans le texte et de 40 figures hors-texte gravées sur bois, tirées avant la lettre sur Chine appliqué, par Raffet, Decamps, Dauzat.
Notre exemplaire est bien complet de sa carte dépliante in-fine.
Note manuscrite à la plume signée du général vicomte de Rumigny, aide de camp du roi, indiquant que cet exemplaire, imprimé spécialement pour lui, lui fut offert en 1844 par son altesse royale madame la duchesse d'Orléans.
Très bel exemplaire établi dans une importante reliure à décor de Charles Meunier.


Boas Festas e um Feliz Natal para todos os que tem tido a paciência de me ler. Espero que com novas e boas leituras ... claro que não as minhas! e um bom presente para recordar.

O Pai Natal já pensa nos vossos presentes...


Saudações bibliófilas.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Daniel Filipe - «A Invenção do Amor»




Edição primitiva (1961)

Trago-vos hoje mais um poema – «A Invenção do Amor» – de Daniel Filipe. A poesia deste poema é "inevitavelmente retórica, porque não existe na cidade a experiência autêntica do amor que Daniel Filipe se obriga a inventar. E então há que forçar a entoação das palavras, enfatizá-las, repeti-las, numa tentativa de violentar o real e impor nele o projecto do poeta." (ESPADINHA, Francisco - "Nota sobre A Invenção do Amor", in A Invenção do Amor e Outros Poemas, 6.a ed., Lisboa, 1983, p. 14). As duas composições também coligidas neste volume, evocando, em epígrafe, Nicolás Guillén («Cantoe Lamentação da Cidade Ocupada») e Carlos Drummond de Andrade («Balafda para a Trégua Possível»), retomam a temática do amor-libertação, da concepção do amor como instrumento de combate que une o sujeito poético a uma companheira com quem travará uma luta pela humanização da cidade hostil, até que ela se converta em "cidade prometida"


Daniel Filipe

Daniel Damásio Ascensão Filipe nasceu em 1925 na ilha da Boavista em Cabo Verde. Ainda criança, veio para Portugal onde fez os estudos liceais. Foi jornalista e poeta. Co-director dos cadernos “Notícias do Bloqueio”, colaborou também assiduamente nas revistas “Seara Nova” e “Távola Redonda” e realizou, na Emissora Nacional, o programa literário “Voz do Império”. Combateu a ditadura salazarista, sendo perseguido e torturado pela PIDE.

Num curto espaço de tempo, a sua poesia evoluiu desde a temática africana aos valores neo-realistas e a um intimismo original que versa o indivíduo e a cidade, o amor e a solidão. O amor e a solidão, o indivíduo e a cidade recortam-se nos seus versos com acentos originais, fluentes e por vezes inesquecíveis

Daniel Filipe iniciou a sua actividade literária em 1946 com Missiva, seguindo-se Marinheiro em Terra (1949), O Viageiro Solitário (1951), Recado para a Amiga Distante (1956), A Ilha e a Solidão (1957) – Prémio Camilo Pessanha; o romance O Manuscrito na Garrafa (1960), A Invenção do Amor (1961) e Pátria, Lugar de Exílio (1963).
Faleceu em 1964 em Cabo Verde.


Editorial Presença
Colecção Forma n.º 1
(existem várias edições)

Ficam aqui alguns excertos do referido poema:

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia


“um menino pediu uma rosa vermelha”

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade


“Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos”

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
...

Espero que tenham gostado e, porque não, que tenham ficado com curiosidade suficiente para o ler todo ...digo-vos que vale bem a pena!

Saudações bibliófilas

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

«Poema para Galileo» – António Gedeão



Depois das duas últimas mensagens que foram por demais fastidiosas, embora com interesse para uma melhor compreensão da bibliofilia em Portugal, proponho-vos hoje a leitura deste poema de António Gedeão (1).


Retrato de Galileu Galilei

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.



«Galileu frente ao Tribunal da Inquisição Romana»
Pintura de Cristiano Banti

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.


Capa de «Discorsi e Dimostrazioni Matematiche Intorno a Due Nuove Scienze»
publicada em Leiden em 1638.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.


Espero que tenham gostado. È um belo poema com muito para pensar ... e repensar.

Saudações bibliófilas.


(1) António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, nasceu em Lisboa a 24 de Novembro de 1906. Licenciado em Ciências Físico-Químicas, foi professor, pedagogo e autor de manuais escolares, historiador da ciência e da educação, divulgador científico e poeta. Publicou o seu primeiro livro de poesia, «Movimento Perpétuo» (Coimbra), em 1956. Em 1964, para comemorar o 4º Centenário do nascimento de Galileo Galilei, escreveu o "Poema para Galileo", que foi traduzido para língua italiana por Roberto Barchiesi, e publicado, em edição bilingue, pelo Istituto Italiano di Cultura. Este poema, musicado e cantado por Manuel Freire, conheceu uma grande expansão, tal como a "Pedra Filosofal", ou a "Lágrima de Preta". Faleceu em 19 de Fevereiro de 1997 na cidade de Lisboa.