domingo, 5 de junho de 2016

O Museu do Neo-realismo em Vila Franca de Xira – apontamentos para um estudo do neo-realismo



Museu do Neo-realismo em Vila Franca de Xira
©Fotografia da CMVFX

Em 1927, José Régio com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões, fundara a revista presença, que veio a ser publicada, irregularmente, durante treze anos. Esta revista veio a marcar o segundo modernismo português, que teve como principal impulsionador e ideólogo José Régio, que também escreveu em jornais e revistas como Seara Nova.


Revista presença


Seara Nova

Na abertura do primeiro número da presença consagrou-se um texto programático de Régio Literatura Viva. Enuncia opções e valores que retoma no texto posterior Literatura Livresca e Literatura Viva. Foi manifesto assumido pelo grupo, instituindo um órgão oficial e marcando o sentido da acção do grupo, à margem de interesses sociais e de academismos formais, uma arte sem academismos anelante de inovação profissional.



RÉGIO, José – Literatura Livresca e Literatura. Manifesto Literário. Viva. Edições Presença
©D’outro tempo

No entanto devem-se referir dois momentos fulcrais na sua evolução: a dissidência de Miguel Torga, Branquinho da Fonseca e Edmundo Bettencourt


Miguel Torga

Este grupo, em 1930, editou o número único da revista Sinal dirigida por todos eles.


Revista Sinal

A partir deste momento, esta revista [presença] passou esta a assumir-se profissionalmente (Régio) “como o único órgão estável da vanguarda das artes e das letras portuguesas”; o segundo iniciar-se-á em 1935 com o antagonismo entre perspectivas inconciliáveis no que constituiu o seu núcleo duro: o psicologismo presencista e a ideologia política marxista neo-realista (designação que dissimulava, para a censura, o “realismo socialista” defendido por Andrei Jdanov).


Andrei Jdanov
Serão os dois grandes protagonistas desta polémica José Régio e Álvaro Cunhal.

Apesar do regime conservador de então, Régio manteve-se fiel aos seus ideais de socialista cristão e teve durante a sua vida uma participação activa, embora moderada, na vida pública, ainda que nunca condescendeu, na sua escrita, com uma contestação de tipo panfletário.


José Régio - Fotografia original com dedicatória de José Régio

Devido à sua posição independente polemizou acerbamente com escritores oriundos do neo-realismo, do concretismo, do experimentalismo e do formalismo, defendendo o ideal presencista de uma arte pela vida, fortemente individualista e que expressasse com sinceridade as mais íntimas emoções do artista - nas quais atribui especial relevo aos dilemas morais e à indagação religiosa. Mas se a inspiração do artista fosse predominantemente social, haveria que expressá-la com independência de quaisquer programas políticos (e Régio assim o demonstrou na sua poesia social de Fado, A Chaga do Lado e Cântico Suspenso), o que representou um desafio muito contestado naquela época de estritos alinhamentos.


©Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira

O neo-realismo é uma corrente literária de influência italiana que anexa algumas componentes da literatura brasileira, nomeadamente a da denúncia das injustiças sociais do romance nordestino.

Quer na poesia, quer na prosa, o neo-realismo assume uma dimensão de intervenção social, agudizada pelo pós-guerra e pela sedução dos sistemas socialistas que o clima português de ditadura mitifica.

E, a este propósito, convém lembrar, o que João Gaspar Simões escreveu em “Jorge Amado mestre do Neo-Realismo português” in Literatura, Literatura, Literatura. Lisboa: Portugália, 1964, pag. 317: “Parece-nos indiscutível a influência de Jorge Amado, não só na obra de alguns dos nossos neo-realistas, que chegaram a impor a sua personalidade, como não poucos que ficaram pelo caminho (…) o Neo-realismo é uma escola literária e se nos Estados Unidos existe é porque existem problemas que se confundem com os dos países atrasados quer do ponto de vista social quer económico.”

Como se disse acima, esta corrente literária inspirada pelas teorias marxistas do materialismo histórico e dialéctico, divulgadas nos meios políticos e intelectuais portugueses em meados dos anos 30, o movimento cultural do Neo-realismo começa a desenhar-se a partir de importantes polémicas literárias, mas ao contrário do que alguns propalam, o Neo-realismo não se pode reduzir a uma literatura regional, do Alentejo ou do Ribatejo, pois não se pode esquecer a importância da revista Sol Nascente, fundada por estudantes do Porto e editada naquela cidade de 1937 a 1940, ou da Vértice, que aparece em Coimbra em 1942, entre outras publicações. E que o Novo Cancioneiro, também editado em Coimbra pela mesma altura, incluiu poetas de todo o país. Ainda em Coimbra são numerosas as publicações próximas do neo-realismo, a maioria, é verdade, de vida efémera: Altitude, Cadernos de Juventude, Síntese. Em Lisboa destaca-se O Diabo, que afirmavam uma veemente oposição ao subjectivismo presencista, ao defenderem uma “arte útil” virada para os problemas reais da sociedade, fazendo assim a ruptura com o ideário romântico e positivista do século XIX.


O Diabo


Sol Nascente

Grande foi a influência do romance nordestino brasileiro da década de 30, não só no Brasil mas também em Portugal, pelo que significou de divisor das águas culturais, literárias e sociológicas em um e outro lado do Atlântico.

José Américo de Almeida, escritor e político

Escritores como José António de Almeida, Jorge Amado (talvez aquele com maior influência), Graciliano Ramos (o “comunista rebelde”), tiveram uma forte influência no nosso neo-realismo. E, convirá não esquecer a influência de José Lins do Rego na obra de Manuel da Fonseca.



ALMEIDA, José António de – A Bagaceira. Castilho, 1928, 3ª edição, com Glossário. Brochura. Livro em muito bom estado de conservação. Marcas de carimbo de editora e com nome de antigo proprietário na página de rosto. 305 pp.
©Buquineiro – Brasil

Com o romance A Bagaceira de José Américo de Almeida, segundo Tristão de Athaide, marcou um mediano dividindo o romance brasileiro em duas épocas, a de antes e a de depois.

Mas foi sobretudo pelas três vias diferentes e complementares de José Américo de Almeida, de Graciliano Ramos e, de Jorge Amado, que se processou o romance nordestino.
Em Portugal, nos escritores que estavam atentos ao que se passava no outro lado do Atlântico, depois das informações que especialmente a partir de 1938, noticiavam os correspondentes de jornais como O Diabo e a Nova Aurora.

E esse conhecimento foi importante porque veio atenuar o pouco conhecimento que entre nós se tinha da literatura brasileira.

Esta literatura foi dada a conhecer de modo mais sistemático por brasileiristas especialmente Osório de Oliveira com a edição da sua História Breve da Literatura Brasileira, publicada em 1939.

Na verdade, as condições político-sociais de uma década marcada não só pela crescente oposição entre fascismo e comunismo, como pelos ecos de sofrimento da Guerra Civil Espanhola e o início da II Guerra Mundial, exigiam a uma nova geração de escritores maior intervenção cívica e cultural, solidarizando-se desde logo com os desígnios progressistas da esquerda europeia, desde a Revolução Russa à Front Populaire, em França, ou à defesa da ética republicana, em Espanha.

Um dos grandes debates introduzidos pela estética neo-realista dizia respeito à dialéctica “forma” vs “conteúdo”, dando ênfase à mensagem simples e directa comunicada pela obra de arte (quer fosse literária, artística, ou outra). Abordada de modos distintos por alguns dos intelectuais então intervenientes, como Mário Dionísio (mais moderado, defensor de uma “osmose” entre “forma” e “conteúdo”) ou Rodrigo Soares e Álvaro Cunhal (defensores de um maior protagonismo conteudista no resultado criativo), esta questão manteve-se actuante ao longo dos anos 40, levando a tomadas de posição mais ou menos radicais que definiam o contexto crítico e intelectual do nosso País.

Para isso, muito contribuiu o momento político do segundo pós-guerra, a memória do Holocausto e ainda a esperança de democratização do regime que significou esse momento de viragem no século XX.

Ilustração para o romance Fanga (1943), de Alves Redol (1911-1969),
reproduzida postumamente na revista Vértice, número 258, de Março de 1965.

No ímpeto congregador desse desígnio colectivo, escritores como Alves Redol, Soeiro P. Gomes, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, João José Cochofel, Mário Dionísio, Sidónio Muralha, Armindo Rodrigues, Faure da Rosa, Mário Braga, Antunes da Silva ou Vergílio Ferreira, e artistas plásticos como Júlio Pomar, Manuel Filipe, M. Ribeiro de Pavia, Lima de Freitas, Cipriano Dourado, Vespeira, Rogério Ribeiro, Querubim Lapa, Alice Jorge ou José Dias Coelho, procuraram com as suas obras traduzir uma mensagem de liberdade e solidariedade social, esperançados num despertar de consciências que conduzisse à transformação política de um país que caminhava para a mais longa ditadura europeia.

O romance neo-realista reactiva os mecanismos da representação narrativa, inspirando-se das categorias marxistas de consciência de classe e de luta de classes, fundando-se nos conflitos sociais que põem sobretudo em cena camponeses, operários, patrões e senhores da terra, mas os melhores dos seus textos analisam de forma acutilante as facetas diversas dessas diversas entidades.

Mário Dionísio disse que apareceu espontaneamente, não por encomenda deste ou daquele. Impôs-se o sentimento de dar conteúdo à arte, como demonstram as polémicas sobre o primado do conteúdo ou da forma na arte, bastante acesas e de inegável interesse.


Alves Redol

Neste contexto, obras como Ilusão na Morte (novelas, 1938) de Afonso Ribeiro, Sinfonia da Guerra (poemas, 1939) de António Ramos de Almeida, ou logo depois Gaibéus (romance, 1939) de Alves Redol, Rosa dos Ventos (poemas, 1940) de Manuel da Fonseca, e Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes, vêm reforçar uma nova tendência na literatura portuguesa, traduzida desde cedo por um forte espírito engagée, isto é, politicamente empenhado na transformação das condições sociais do País, desenvolvendo temas como os conflitos de classe, a elevação moral dos oprimidos ou a esperança no futuro do Homem, identificando-se assim, de imediato, com o movimento de oposição ao regime salazarista do Estado Novo.


Alguns livros 1
©Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira



REDOL (ALVES) - Gaibéus. Romance. Lisboa: Livraria Portugália,1939. In-8º de 275-V págs. Brochura. Capa de brochura ilustrada
Primeira edição do primeiro romance de Alves Redol.


(Documento retirado de Ephemera, Biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira)



REDOL (ALVES) - Gaibéus. Romance. Lisboa: Inquérito, 1939. In-8º de 275-V págs. Brochura. Capa de brochura ilustrada.


Sol Nascente - Critica a Gaibeus de A. Redol por Joaquim Namorado

Após um período marcado pela tendência conteudista, fundadora do movimento, as preocupações dos escritores neo-realistas centrar-se-iam, cada vez mais, num mais amplo investimento estilístico em torno da obra literária, coincidindo com uma fase de plena maturidade da sua primeira geração, daí resultando alguns dos títulos maiores, como Seara de Vento (1958) de Manuel da Fonseca, Barranco de Cegos (1961) de Alves Redol, ou a revisão de Uma Abelha na Chuva (1969) de Carlos de Oliveira, que deu origem à sua 4ª edição.


Alguns livros 2
©Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira


Nos finais dos anos 30 e princípios de 40, quando começa a vida de escritor,
escrevendo poemas e crónicas para o jornal O Diabo, à mesa dos cafés Madrid e Portugal, no Rossio.


Homenagem a Manuel da Fonseca na Casa do Alentejo, em Lisboa.
Vêem-se, entre outros, o escritor ladeado por sua mãe e Ferreira de Castro,
 Alves Redol, Piteira Santos, Mário Soares e Rogério Paulo.


                                             
FONSECA, Manuel da – Cerromaior. Lisboa: Inquérito, 1943. 1ª edição. 302 pág.
Primeiro romance do autor.
©D’outro tempo



FONSECA, Manuel da – Seara de Vento. Lisboa, Editora Ulisseia Limitada, 1958. 1.ª edição. 176 págs. Capa impressa a uma cor (preto) e relevo seco, revestida com sobrecapa do pintor [Marcelino] Vespeira.
Exemplar muito estimado, somente a sobrecapa apresenta uns pequenos restauros; miolo limpo
©Frenesi Loja




FONSECA, Manuel da – O Fogo e as Cinzas. Lisboa, Editorial Gleba, Lda. s.d. [1951]. 1.ª edição. Capa de Victor Palla. 168 págs.
É o n.º 7 da notável colecção Os Livros das Três Abelhas, criada e dirigida pelo próprio Palla e por Aurélio Cruz
Exemplar estimado; miolo limpo.
Livro onde (ver Mário Sacramento, Há uma Estética Neo-Realista?, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1968) o escritor, logo no conto de abertura, «[...] descreve a decadência de valores humanos que a infiltração do capitalismo trouxe à vila pelas mãos do comboio, e mitifica assim uma idade de oiro preexistente [...].
Quer dizer: o escritor, ao criar a personagem [...] procura apoios nos quadros do passado – do passado histórico e do passado literário –, a fim de estabelecer confrontos, definir antagonismos e desencadear conflitos. [...]»
©Frenesi Loja

Por outro lado, assiste-se desde o final dos anos 40 e até princípios da década de 60 a um alargamento de interesses temáticos e perspectivas poéticas ou narrativas trazidos por uma vaga de escritores mais novos, como José Cardoso Pires (primeiro com Os Caminheiros e Outros Contos, de 1949, e anos depois com uma obra plena de maturidade estilística como O Hóspede de Job, de 1963), Ilse Losa (O Mundo em que Vivi, 1949), Orlando da Costa (A Estrada e a Voz, 1951), Júlio Graça (Buza, 1954), Urbano Tavares Rodrigues (Uma Pedrada no Charco, 1957) ou Augusto Abelaira (A Cidade das Flores, 1959).

Porém, apesar da diversificação e enriquecimento estético-formal então verificados, as preocupações político-sociais manter-se-iam, todavia, como matriz de uma produção cultural que não abandonara o seu propósito de consciencialização junto de uma comunidade de leitores que, mesmo perante a malha da censura e da perseguição política, não parara de aumentar, observando-se inclusive, nessa época, um acréscimo de popularidade e reconhecimento crítico entre os principais nomes do movimento neo-realista.



VÉRTICE. Revista de Cultura e Arte. Direcção de Carmo Vaz e Raúl Gomes; Editor: José de Sousa Brandão (passando mais tarde a direcção e propriedade para Raúl Gomes, sendo editor Mário Braga). Coimbra. Ano I - n.º 1, Maio de 1942 (a n.º 475, Julho-Dezembro de 1986 + indices de autores). 17,5x24 cm. E e B. —VÉRTICE. Revista mensal [mais tarde, bimestral]. Abril de 1988 a 2012. 2.ª série. N.º 1 a 163. Brochura.



Esta Revista, segundo Daniel Pires no Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do século XX: “(...) Constituiu uma tribuna do movimento neo-realista e foi palco privilegiado da resistência à ditadura. Tendo em consideração o seu valor intrínseco, faz parte do património cultural português do presente século. Com efeito, contribuiu, em paralelo com a Seara Nova, para a formação de várias gerações sendo, consequentemente, a sua análise obrigatória para o estudo dos vectores que presidiram na sociedade nacional (...)”.

O seu programa, ainda que vago, é assim definido: “VÉRTICE é uma revista portuguesa de cultura e arte. Publica-se mensalmente com 64 páginas de testo e gravuras de arte. Além das suas secções de Pedagogia, Actividade literária na Alemanha, Inglaterra, França e Itália, Página do Brasil, O Mundo da Ciência, Crítica de livros, Cinema, Desportos, Xadrez, etc., publicará sempre originais de autores portugueses, brasileiros e estrangeiros e em cada número uma notícia àcêrca de um grande escritor contemporâneo, ilustrada com um excerto da sua obra.(...)”



Publicação que nasce em Coimbra no ano de 1942, e que “custa de muita luta com a censura” antes da Revolução de 1974, conseguiu manter-se ano após ano, até que por circunstâncias de vária ordem passou para as mãos da Editorial Caminho, com a consequente mudança de direcção para Lisboa, em 1988, publicando uma segunda série.

Incorpora nas suas páginas milhares de textos dos mais variados géneros e tendências de nomes cimeiros da nossa literatura e arte tais como: Cesário Verde, Fernando Pessoa, Antero de Quental, Teófilo Braga, Raul Gomes, Carlos de Oliveira,  António de Sousa, Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Afonso Duarte, Afonso Ribeiro, Fernando Namora, Fernando Lopes Graça, Alves Redol, Armindo Rodrigues, Vergílio Ferreira, Victor Palla, Júlio Pomar, Ferreira de Castro, João José Cochofel, António Sérgio, José Gomes Ferreira, Manuel Bandeira, Mário Sacramento, Bento de Jesus Caraça, Sidónio Muralha, Eugénio de Andrade, A. Ramos de Almeida, José Ferreira Monte, Abel Salazar, Óscar Lopes, Manuel Ferreira, António José Saraiva, Mário Cesariny de Vasconcelos, Vitorino Nemésio, Mário Braga, Alexandre Cabral, João Gaspar Simões, António Ramos Rosa, José Cardoso Pires, Teixeira de Pascoaes, Irene Lisboa, Manuel da Fonseca, Pablo Picasso, Portinari, José Régio, Manuel Ribeiro de Pavia, Saul Dias, Alexandre O'Neill, José Blanc de Portugal, Lima de Freitas, Jaime Cortesão, Vieira d'Almeida, Joel Serrão, Jorge de Sena, Aquilino Ribeiro, António Rebordão Navarro, Urbano Tavares Rodrigues, Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, José Marmelo e Silva, Manuel Alegre, Jorge Reis, A. da Silva Ó, Adolfo Luxúria Canibal, Alexandre Cabral, Álvaro Cunhal, Ana Hatherly, Artur Bual, Baptista Bastos, Bernardo Pinto de Almeida, Eduardo Lourenço, Fernando Guimarães e centenas de outros nomes dificilmente enumeráveis. 

Muito valiosa e rara.



A 1.ª série encontra-se encadernada, em tecido, até ao n.º 450/451 de Set/Dez de 1982. Os restantes números quer da primeira série (16 números), quer da 2.ª série, encontram-se em brochura. O número 419 nunca foi publicado. A segunda série tem em falta apenas o número duplo 159-160.

As capas das brochuras encontram-se preservadas, estando a do primeiro número com pequeno defeito e outras tendo manchas de acidez próprias do papel. De uma forma geral consideramos um excelente exemplar.
©In-Libris

No início dos anos 50, a chamada “polémica interna do neo-realismo” traduziu-se por uma crescente clivagem em torno do problema da relação entre a forma e o conteúdo da obra de arte. De 1952 a 1954, as páginas da revista Vértice serviram de cenário a esse aceso debate intelectual. De um lado, João José Cochofel, Mário Dionísio e Fernando Lopes-Graça defendiam o primado da linguagem formal de cada obra de arte, enquanto António José Saraiva, Manuel Campos Lima e António Vale (Álvaro Cunhal) opunham o conteúdo como agente primordial de intervenção social da arte.


Mário Dionísio

Se os primeiros notavam que o valor do conteúdo podia identificar-se com a expressão maior da inovação formal, alimentando uma perspectiva heterodoxa que não abdicava ainda da função progressista da arte, os segundos mantinham uma linha de interpretação ortodoxa e contundente, ao manifestarem a necessidade da prevalência do conteúdo, em conformidade com a urgência de comunicação que a arte parecia ainda exigir. Se o conteudismo ortodoxo, associado a uma tácita ingerência do PCP nos destinos do movimento, parece ter tido então a última palavra – com a direcção da Vértice a por fim ao conflito para impedir a “eternização” da polémica – a verdade é que os anos 50 marcam precisamente a mais espontânea e abrangente liberdade formal do neo-realismo literário, denunciando assim a derrota de qualquer orientação doutrinária mais estreita ou dogmática.


Censura – Exame Prévio

A censura e a repressão política estiveram desde cedo associadas à praxis do regime salazarista. Dos famosos “exames-prévios”, ainda hoje associados à memória do “lápis azul”, resultavam as autorizações ou proibições formais sobre a manifestação de ideias no nosso País. Os cortes parciais, ou por vezes totais, de artigos, ensaios, romances, peças de teatro, ou a apreensão de obras de arte “subversivas”, faziam parte da ameaça criativa aos artistas e intelectuais portugueses, bastando para tal que o produto do seu trabalho implicasse, ou sugerisse apenas, qualquer espécie de sentido crítico em relação ao Estado Novo. Dessa forma, “avaliados”, ficavam condenados ao obscurantismo ou, na melhor das hipóteses, à clandestinidade. A censura generalizada, muitas vezes até a auto-censura, caracterizava assim o regime e, por consequência, quase toda a sociedade portuguesa, tendo os intelectuais e artistas neo-realistas sofrido de perto o estigma de uma repressão diminuidora da liberdade do pensamento.

Alguns livros 3
©Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira

Entre os novos romancistas e poetas que conscientemente assumiram, na fase inicial dos seus percursos literários, uma certa filiação no movimento do Neo-realismo, Baptista-Bastos, (com O Secreto Adeus, 1963), Mário Ventura, (A Noite da Vergonha, 1963), ou na poesia, José Carlos de Vasconcelos, (Canções para a Primavera, 1960), José Carlos Ary dos Santos (A Liturgia do Sangue, poesia, 1963) e Manuel Alegre, (com o conjunto de poemas Praça da Canção, 1965) tornaram-se nos primeiros herdeiros intelectuais de uma expressão cultural que, apesar de viver já nessa época as condições da sua própria dissolução, marcara cerca de três décadas do século XX português, entre o final dos anos 30 e meados dos anos 60.


José Carlos Ary dos Santos



SANTOS, José Carlos Ary dos – A Liturgia do sangue. Lisboa: Bertrand, sd.- 101 p.; 30x21 cm.

Refira-se que a herança de que aqui se fala não fora apenas literária ou criativa, mas igualmente, ou sobretudo, de cariz político, funcionando como motor de comunicação do movimento de oposição ao regime do Estado Novo, que por sua vez permanecia, aparentemente, sem fim à vista.

Porém, o Neo-realismo pode ser hoje observado, com distanciamento e objectividade, como um dos mais importantes movimentos culturais que o nosso País conheceu ao longo do século XX.

Desenvolvendo-se num momento extraordinário de viragem político-social em termos internacionais, que vai dos anos 30 ao pós-guerra, redefinindo coordenadas de acção e pensamento, ao desenhar uma nova e intensa dicotomia entre o sistema capitalista e a hipótese comunista, o Neo-realismo significou entre nós uma espécie de projecção artística das ambições políticas e sociais de uma parcela significativa da oposição portuguesa.

Se outro valor não tivesse, o ímpeto de liberdade que está subjacente a toda a criatividade neo-realista chegaria para fazer deste movimento um marco decisivo da nossa memória colectiva mais recente.


Fernando Lopes Graça

Tanto as artes plásticas, a música, o cinema e o teatro também reflectiram esta questão, que deixo para vossa pesquisa, pois aqui interessei-me mais pela literatura.

No que se refere ao teatro convirá não esquecer que pela sua ligação directa com o público era fortemente vigiado e reprimido, pelo que não deixa de ser curioso que, apesar de uma conjuntura tão hostil, seja possível sinalizar tantas e tão diferentes iniciativas dos neo-realistas, o que parece provar, em vários casos, um gosto intrínseco pelo teatro e uma persistente vontade de intervir por seu intermédio. Destacam-se como principais autores da dramaturgia neo-realista nas suas diferentes fases nomes como Luiz Francisco Rebello, Romeu Correia, Alves Redol, Pedro Serôdio ou Bernardo Santareno.


Teatro
©Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira

A mais importante corrente alternativa ao Neo-realismo é o Surrealismo, que passou a dominar no período conturbado da Guerra Fria, com o progressivo desencanto da literatura neo-realista.
Esta já dificilmente se adequava às camadas que pretendia interessar. Os ficcionistas neo-realistas adaptaram a sua escrita aos gostos e público, e na década de 50 já o Neo-realismo convergia com certas vanguardas estéticas (Surrealismo, Existencialismo).


Museu do Neo-realismo em Vila Franca de Xira
Logotipo

Neste momento o Museu tem duas exposições temporárias a decorrer:


“Os Ciclos do Arroz”.

Integrada no Programa de Comemorações do 25 de Abril do Município de Vila Franca de Xira, inaugurou-se no dia 16 de Abril a Exposição “Os Ciclos do Arroz”.

Com curadoria de João Madeira, a exposição pretende retratar uma experiência colectiva realizada em 1953, em que participaram Alves Redol, Júlio Pomar, Cipriano Dourado, Lima de Freitas, António Alfredo, Rogério Ribeiro e Alice Jorge.


Como  refere o curador da exposição, “Em ‘Os Ciclos do Arroz’ convergem estes dois mundos – o da criação artística e o do trabalho, em que artistas plásticos e escritores encontram na vastidão das terras alagadas, cavadoras, mondinas e plantadoras de arroz, sempre mulheres, invariavelmente jovens, robustas e sensuais, figuras individuais como que descolando-se da dureza do universo social que retratavam”.

A inauguração contou com a participação do Coro Notas Soltas de Vila Franca de Xira, num momento musical em torno da obra de Fernando Lopes-Graça.

"Passageiro clandestino Mário Dionísio - 100 anos" - Catálogo

No dia 14 de Maio inaugura no Museu do Neo-realismo a Exposição comemorativa do centenário de nascimento de Mário Dionísio, “Passageiro Clandestino Mário Dionísio 100 Anos”.

A exposição "Passageiro clandestino Mário Dionísio - 100 anos" conta com curadoria de António Pedro Pita, director do museu, e propõe-se fazer "a retrospectiva da obra do poeta, ensaísta e pintor", "um dos teorizadores mais importantes do movimento literário neo-realista nos anos 40" do século passado, segundo António Pedro Pita  curador desta  mesma exposição.

A exposição estará patente até 26 de Fevereiro de 2017.

Além de pintura de Dionísio, a mostra recorda "a regular colaboração" do autor em jornais e revistas literárias da época, "como Presença, Altitude, Revista de Portugal, Seara Nova e Vértice, entre outras".


Catálogo da Exposição (Texto)

"Poeta de combate e de intervenção", Mário Dionísio deixou uma obra literária construída ao longo de mais de meio século, no "plano da ficção, do ensaio e da poesia", mas "a sua primeira exposição individual [de pintura] apenas [se realizaria] em 1989", tendo sido bem acolhida pela crítica da especialidade, recorda a organização da mostra.


Mário Dionísio
(Auto-retrato – pormenor)

Nascido em Lisboa, em Julho de 1916, Mário Dionísio licenciou-se em Filologia Românica, em 1940, foi professor do ensino secundário e, após o 25 de Abril, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Na sua obra literária destacam-se os contos, reunidos em colectâneas como O dia cinzento, Monólogo a duas vozes e A morte é para os outros, a poesia de Solicitações e emboscadas, O riso dissonante, Memória dum pintor desconhecido ou Terceira idade, o romance Não há morte nem princípio, e as memórias de Autobiografia.



DIONÍSIO, Mário – Oiro! Caricatura duma Civilização. Lisboa, Edições Gleba, 1934. Capa de Luiz Areosa. 1.ª edição [única]. 2 págs. + 36 págs. 16,7 cm x 12,7 cm. 
Impresso sobre papel superior avergoado, acabamento com dois pontos em arame.
Exemplar muito estimado, apresentando fortes sinais de ferrugem nos agrafos; miolo irrepreensível, parcialmente por abrir.



Ostenta colado no verso da capa o ex-libris do conhecido médico portuense, bibliófilo e escritor anti-fascista Alfredo Ribeiro dos Santos
Acondicionado em estojo próprio de confecção recente
PEÇA DE COLECÇÃO
Livro de juventude enjeitado pelo escritor, provavelmente devido ao maniqueísmo no tratamento estético do motivo social.
©Frenesi Loja



DIONÍSIO, Mário – O Dia Cinzento. Coimbra: Coimbra Editora, 1944. Colecção Novos Prosadores. Capa com desenho de Leandro Gil (pseudónimo de MD).

No âmbito das artes plásticas, Mário Dionísio, além de um volume dedicado a Vincent Van Gogh, escreveu obras de "uma enverga­dura ensaística nunca antes pretendida", como assinalou o historiador de arte José Augusto-França, a propósito de títulos como Conflito e unidade da arte contemporânea e, sobretudo, em relação aos cinco volumes de A paleta e o mundo, que combina história, biografia e uma abordagem analítica da arte.

O espólio documental de Mário Dionísio está depositado na Casa da Achada -- Centro Mário Dionísio, em Lisboa, fundada por familiares, amigos, antigos alunos e admiradores da obra do escritor, que inclui a biblioteca privada do autor.

A exposição "Passageiro clandestino Mário Dionísio - 100 anos" está patente no primeiro piso do Museu do Neo-realismo, em Vila Franca de Xira, até 26 de Fevereiro de 2017.

Alves Redol - um percurso

Com este apontamentos quero expressar a minha admiração pelos vultos que ousaram dar forma a um movimento contestatário em termos de ideologia e a forma como a expressaram, em condições bem difíceis, produzindo algumas obras que ainda hoje fazem parte do nosso património cultural e são o espelho de uma realidade então vivida no Portugal desses anos.

Como em todos os movimentos há figuras marcantes e outras que tiveram uma passagem fugaz e de que quase já não nos lembramos, mas penso que não é razão para se tentar suprimir a memória, pelos "incómodos" que este possa provocar, de um movimento cultural (pois não foi só literário) que teve grande relevo entre nós em todos os campos culturais.

Concordar ou rejeitar as ideias é um direito de cada um, mas negar ou tentar fazer esquecer a sua importância é, em minha opinião, uma atitude culturalmente inadmissível.

Espero que esta polémica seja produtiva e que a sua memória não se perca.

Saudações bibliófilas.

Nota:
Fundamentei, em grande parte, a minha exposição na documentação do Museu do Neo-Realismo, por sintetizar bem toda a questão, pelo que aqui ficam os meus agradecimentos e parabéns à instituição pelo trabalho desenvolvido.


Artes Plásticas
©Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira

Leituras sugeridas:

ANDRADE, João Pedro de –  Ambições e limites do Neo-realismo Português. Introdução de Ernesto Rodrigues. Editora Acontecimento, 2002, ISBN 972-8011-36-9.

CRISTÓVÃO, Fernando (direcção e organização) – Do Romance Nordestino Brasileiro de 30 ao Neo-realismo Português. Colecção Cadernos Para Estudos 3. Coimbra: CLEPUL / Edições Almedina, 2013. 262 págs.

HENRIQUES, João Laranjeira – A Poesia no Neo-realismo Português: Primeiras Manifestações e 'Novo Cancioneiro'. Tese de doutoramento apresentada em 2010 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

PITA, António Pedro; SANTOS, David; PINTO, João Maio – Batalha pelo conteúdo: movimento neo-realista português: exposição documental. Vila Franca de Xira: Câmara Municipal de Vila Franca de Xira: Museu do Neo-realismo, 2007. ISBN 978-972-99040-5-9



TORRES, Alexandre Pinheiro –  O Movimento Neo-Realista em Portugal na sua Primeira Fase. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 2.ª edição, 1983.


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