domingo, 21 de fevereiro de 2016

O Mundo da Paz de Jorge Amado: um livro “errado”? – Alguns apontamentos críticos a seu propósito




AMADO, Jorge – O Mundo da Paz. União Soviética e Democracias Populares. Rio de Janeiro: Vitória, 1951. 410 pags.

Sobre este livro veja-se o que Jorge Amado escreveu:

“Passei o inverno de 1948-1949 na União Soviética, a convite da União dos Escritores Soviéticos; visitei nos últimos dois anos, vários países de democracia-popular: a Tchecoslováquia, a Polônia, a Hungria, a Rumânia, a Bulgária. Junto neste livro algumas observações feitas por mim no decurso dessas viagens. Não se trata nem de um livro de ensaios, nem de um estudo político, tão pouco de um volume de reportagens. São simples notas de viagem, despretensiosas. Escrevi estas páginas pensando no meu povo brasileiro, sobre a qual uma imprensa reacionária e vendida ao imperialismo ianque vomita, quotidianamente, infâmias e calúnias sobre a URSS e as democracias populares. O povo brasileiro não deseja a guerra e luta contra os que a querem provocar. Escrevendo este livro, anotações sobre a vida dos povos soviéticos e dos povos das democracias populares – pretendi colaborar para o restabelecimento da verdade e para mostrar como o trabalho construtivo da URSS e das democracias populares interessa ao mundo inteiro, é fator essencial na defesa da paz. Sentir-me-ei alegre se este meu livro for útil à luta do povo brasileiro contra o imperialismo ianque, pela sua libertação nacional e pela paz. Como uma contribuição à luta pela paz eu o escrevi e como homenagem de um escritor brasileiro ao camarada Stálin, no seu 70º aniversário, sábio dirigente dos povos do mundo na luta pela felicidade do homem sobre a terra”

Escrito no Castelo da União dos Escritores Checoslovacos, em Dobris, de Dezembro de 1949 a Fevereiro de 1950, o livro teve a sua 1ª edição pela Editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1951, 410 páginas e chegou à 5ª edição, quando o autor não mais permitiu a sua reedição.


Bacharel em Direito, 1935, mas nunca exerceu a profissão de advogado

Jorge Amado e a sua esposa Zélia Gattai conheceram o território soviético como convidados da União dos Escritores Soviéticos, entre Dezembro de 1948 e Janeiro de 1949. Os dois viajantes estivam, muito provavelmente, entre os primeiros brasileiros que visitaram aquele país após a Segunda Guerra Mundial. Este provável pioneirismo aparece nas memórias de Zélia Gattai, quando relembrou que até 1948: “pouquíssimos brasileiros haviam visitado aquele país socialista, e creio que nós éramos os primeiros a ir, depois do rompimento das relações com o Brasil, em 1947”.

A referida visita ocorreu, contudo, de maneira extremamente peculiar. Após a perda dos mandatos dos deputados comunistas brasileiros (na sequência da instauração de Estado Novo por Getúlio Vargas), Jorge Amado exilou-se voluntariamente na Europa, onde residiu em Paris, e visitou alguns países das chamadas Democracias Populares e principalmente a União Soviética. 

Realizou uma segunda viagem em circunstâncias completamente diversas. Jorge Amado e Zélia Gattai, na época a residir na Checoslováquia, tornaram a viajar a pátria soviética em 1951. O casal Amado embarcou em Praga com o objectivo de gozar um período de férias em Moscovo. A ideia da viagem partiu do romancista russo Ilya Ehremburg, que sugeriu o repouso por achar Jorge Amado muito abatido no árduo trabalho de redacção do seu livro naquele período, Os Subterrâneos da Liberdade

Em 1952 Jorge Amado viajou pela terceira vez à União Soviética. Um companheiro de viagem salientou a familiaridade de Jorge Amado com os soviéticos e a cordialidade com que era recebido nas entidades de escritores soviéticos. Ainda residindo na Europa, viajou com o objectivo de receber o Prémio Estaline, que lhe fora concedido em Dezembro de 1951.


Jorge Amado em Moscovo
©http://www.falandorusso.com/jorge-amado-na-cidade-do-premio-stalin-da-paz/

Jorge Amado utilizou o seu relato de viagem para produzir uma imagem da União Soviética como “baluarte da paz mundial” e de Estaline como um génio que guiava os povos na luta pela paz. A descrição de Amado sobre o pacifismo soviético pode ser melhor compreendida se considerarmos as tensões geradas pela Guerra Fria. A manutenção da paz mundial também foi um tema importante tanto para o mundo capitalista como para os países de influência comunista.

O discurso contido neste seu relato de viagem, deve ser encarado como o de um militante político que acreditava naquilo que estava a descrever e não apenas como um texto produzido por um escritor como instrumento de um eficiente trabalho de propaganda. 

Após os ataques feitos por Nikita Kruschev a Estaline e à orientação que, sob a sua direcção, o Partido Comunista adoptou à frente da União Soviética, o escritor brasileiro continuou a defender o socialismo, porém distanciou-se da política partidária e nos seus livros deixou de construir personagens com actuação revolucionária partidária. Não voltou a permitir a reedições de O Mundo da Paz, mas manteve os outros livros de cariz militante – como Seara Vermelha e a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade, entre outros, no seu catálogo.

Por causa deste livro, em 1951, Jorge Amado foi processado por infringir a Lei de Segurança, medida que se estendeu aos editores e às livrarias que exibiram o livro. Após o retorno de Jorge Amado ao Brasil, em Maio 1952, foi reactivado o processo contra a publicação do livro, quando o autor foi defendido pelos advogados João Mangabeira e Alfredo Franjan.

O juiz arquivou o processo, alegando que o livro era sectário e não subversivo. Foi traduzido para o checo e o capítulo Albânia é uma festa veio a ser lançado em livro separadamente e editado em albanês, eslovaco, francês, polaco e checo.


Edição, em separado, do capítulo do livro dedicado a Albânia

Mas vejamos um pouco do seu enquadramento político, para se ter uma visão mais correcta do significado deste livro na vasta bibliografia de Jorge Amado.


Jorge Amado

Inicialmente as obras de Jorge Amado tinham um cunho por demais evidente do seu posicionamento político e militante na defesa dos mais desfavorecidos e na abordagem de temas com eles relacionados.

É o período de obras que ficaram na memória de todos os seus leitores, e que são património da literatura brasileira, como O país do carnaval, de 1931, livro que conta a história de um jovem, Paulo Rigger, perplexo diante das dificuldades do mundo e ainda indeciso quanto ao caminho a tomar. O Brasil começa a aparecer com mais nitidez no seu segundo romance, Cacau, que descreve a dura vida dos trabalhadores das plantações de cacau da vila de Pirangi, na região de Ilhéus, Baía, de 1932. Em 1934, quando lança Suor, desloca a análise da vida no campo para as ruas das cidades — no caso, a cidade de Salvador. O romance conta a vida miserável de moradores de um sobrado do bairro histórico do Pelourinho. Publicado em 1935, Jubiabá reafirma, ainda com mais força, que o espírito lutador do brasileiro desemboca, necessariamente, na rebeldia e, logo depois, no combate e na luta política. No romance, o herói António Balduíno leva uma vida de malandro típico, boémio e arruaceiro. Em 1936, o romance Mar morto é outro exemplo da relação íntima entre Jorge Amado e o seu país. Cada vez que escreve sobre si, ele escreve sobre o Brasil, Nova viragem se dá quando, em 1937, Jorge Amado publica Capitães da Areia, livro em que os personagens são meninos abandonados, que vagueiam pelas ruas da cidade, que lutam para sobreviver.
Escrito em 1943, Terras do sem-fim faz uma dura descrição da vida miserável nos grandes latifúndios da Baía. São Jorge dos Ilhéus, de 1944, também trata das disputas políticas, em um cenário dominado pelo regime de semi-escravidão. Escreve ainda livros de grande importância histórica, embora de menor valor literário, como O cavaleiro da esperança, biografia do líder comunista Luís Carlos Prestes, em que trabalhou no ano de 1945, durante um breve exílio na Argentina e, depois, no Uruguai. No mesmo ano, unindo de uma vez a literatura com a política, Jorge se tornou-se vice-presidente do I Congresso dos Escritores, que fez duras críticas ao Estado Novo.


Cartaz de propaganda do Estado Novo – Era Vargas

O Estado Novo, ou Terceira República Brasileira, (1) foi o regime político brasileiro fundado por Getúlio Vargas em 10 de Novembro de 1937, que vigorou até 29 de Outubro de 1945.

Era caracterizado pela centralização do poder, nacionalismo, anticomunismo e pelo seu autoritarismo. É parte do período da história do Brasil conhecido como Era Vargas.


Título de eleitor de Getúlio Vargas

Em 10 de Novembro de 1937, através de um golpe de estado, Vargas instituiu o Estado Novo num pronunciamento em rede de rádio, no qual lançou um Manifesto à nação, no qual dizia que o regime tinha como objectivo "reajustar o organismo político às necessidades económicas do país".

Após a Constituição de 1937, Vargas consolidou seu poder. O governo implementava a censura à imprensa e a propaganda era coordenada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Também houve forte repressão ao comunismo, amparada pela "Lei de Segurança Nacional", que impediu movimentos revolucionários, como a Intentona Comunista de 1935, durante todo o período.


1º de Maio – Cartaz propagandístico da Era Vargas

Com o termo da Segunda Guerra Mundial, em 1945, com os países fascistas vencidos, o povo passou a criticar mais abertamente o governo ditatorial de Getúlio Vargas, e em conjunto vários intelectuais, artistas e profissionais liberais passaram a exigir o retorno da democracia e da liberdade ao país.

O povo pedia a renúncia de Getúlio Vargas, até que, em 29 de Outubro de 1945, um movimento militar chefiado por generais o afastou do governo.


Manchete sobre Renúncia de Getúlio Vargas

O poder ficou, temporariamente, sob a responsabilidade do Dr. José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, pois na Constituição de 1937 não existia vice-presidente. Este permaneceu no cargo durante o período de três meses, quando então transmitiu o comando ao general Eurico Gaspar Dutra, Presidente escolhido no dia 2 de Dezembro de 1945.


Manchete do suicídio de Getúlio Vargas

Ainda nesse ano, com o fim do Estado Novo, tornou-se deputado federal pelo PCB e casou-se com Zélia Gattai.


Cartaz da campanha pelo PCB em São Paulo em 1945

Ainda de acordo com CASTELLO, José – Jorge Amado e o Brasil, transcrevo:

“Essa radicalização política de sua literatura se prolonga durante o exílio de Jorge e Zélia em Praga, na Tchecoslováquia, no início dos anos 1950, quando escreveu O mundo da paz, livro de reportagens sobre o socialismo. Até que, em 1954, pouco depois de publicar os três volumes de Os subterrâneos da liberdade — romance ambientado na resistência ao Estado Novo — Jorge viveu um grande golpe pessoal. Naquele ano, durante o XX Congresso do Partido Comunista Soviético, o secretário-geral do partido, Nikita Khruchióv (1894-1971), denunciou publicamente as atrocidades cometidas pelo ditador Iossif Stálin, que esteve no poderde 1922 até 1953, ano de sua morte. A revelação foi uma grande decepção para Jorge — que em 1951 recebera, em Moscou, o Prémio Internacional Stálin.


José Estaline (2) em 1945.

Uma radical metamorfose íntima o afastou então de uma visão internacionalista, pautada pela doutrina do comunismo, e o aproximou ainda mais do Brasil e da realidade brasileira, ampliando seu olhar sobre nosso país. Essa reviravolta se refletiu, cinco anos depois, no romance Gabriela, cravo e canela, livro que marca sua ruptura com uma visão mais ortodoxa do mundo e que foi um de seus maiores sucessos internacionais.
[…]
Em 1961, mais próximo ainda das coisas brasileiras, Jorge Amado foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Em 1964, com Os pastores da noite, a presença do candomblé e do misticismo afro-brasileiro se tornam ainda mais presentes em sua literatura. Se com Gabriela ele reforça as tintas no retrato de um Brasil sensual e otimista, habitado por gente que tem uma alegria absolutamente indiferente às contingências sociais, em Os pastores ele volta a enfatizar a figura de um país no qual o espiritualismo e a religiosidade se agigantam. As forças místicas e irracionais se tornam, em definitivo, mais potentes que as circunstâncias sociais e políticas. Mas é com a publicação de Dona Flor e seus dois maridos, em 1966, que Jorge Amado se consagra de vez como o grande retratista do Brasil. Com uma tiragem inicial de 75 mil exemplares, o romance o consagra também como um fantástico vendedor de livros
[…]
As traduções no exterior ajudaram a aproximar as imagens de Jorge Amado e do Brasil. Já em 1937, aos 25 anos, mesmo ano em que o Estado Novo queimou seus livros em praça pública, teve dois de seus primeiros romances, Suor e Cacau, traduzidos para o russo.” (3)

Da análise, ainda que muito breve do seu percurso literário e, sobretudo da sua militância política, poderemos concluir que este livro, era um “verdadeiro hino panegírico ao estalinismo” já não tinha lugar na sua bibliografia “oficial”, pois a sua posição política modificara-se e o livro – diga-se em abono da verdade pobre em estilo – não tinha qualquer razão de ser reeditado.

Claro que ele reflecte o espírito do militante comunista perfeitamente enquadrado no espírito vigente nesses anos de apoio incondicional a Estaline e ao repúdio de todos os seus “detractores”

Mas mesmo os grandes escritores cometem “erros”, e este é, em minha opinião, o de Jorge Amado.

Mas claro que isso não lhe retira qualquer um dos seus muitos méritos que o colocam como um dos maiores escritores de língua portuguesa e da América Latina.

E já que falamos de obras “proscritas” pelos seus autores, convirá não esquecer que O país do carnaval não foi o primeiro livro escrito por Jorge Amado, mas sim: “Lenita, novela escrita por Jorge Amado, Dias da Costa e Edison Carneiro, em sua juventude, publicada em folhetim em 1930 n’O Jornal, de Salvador (4), e um ano depois em volume pelo editor A. Coelho Branco Filho, no Rio de Janeiro. (…)


AMADO, Jorge et al. – Lenita
©Acervo da Fundação Casa de Jorge Amado

Durante as atividades desenvolvidas como pesquisador da Fundação Casa de Jorge Amado no ano de 1989, sendo o responsável pela localização e coleta de todo material escrito por Jorge Amado ou sobre ele, com intuito de copiar, fotografar os referidos textos encontrados nos arquivos públicos ou particulares, além de aquisição das primeiras edições nos sebos e em poder de colecionadores, para serem encaminhados ao DPDOC (Divisão de Pesquisa e Documentação) da FCJA, responsável pela guarda, conservação, organização e divulgação do acervo Jorge Amado, tive a oportunidade de ter em mãos inúmeros documentos do início da carreira  (3(do grande romancista baiano.(…)
Encontrar um exemplar dessa novela hoje seria um grande achado. É considerada uma preciosidade para colecionadores. Alguns dos raros exemplares de Lenita ainda sobrevivem na Bahia, certamente não são muitos. Tenho conhecimento da existência de pelo menos três exemplares da única edição de A. Coelho Branco Filho, 1931: um pertencente ao professor e acadêmico Waldir Freitas Oliveira; outro que se encontra no acervo de obras contemporâneas especiais do CEDIC – Centro de Documentação e Informação Central sobre a Bahia da Fundação Clemente Mariani e finalmente a edição pertencente a Jorge Amado que hoje faz parte do acervo da Fundação Casa de Jorge Amado. Waldir Freitas afirma da existência de mais dois exemplares da novela, um em poder do médico Newton Bastos, filho do poeta Elpidio Bastos, membro de grupo modernista baiano – Poetas da Baixinha, e outro em mãos de familiares do saudoso acadêmico Waldemar Matos.” (5)

Saudações bibliófilas.


Bibliografia consultada:
 (e de leitura sugerida pela sua importância):

(1) O Estado Novo (Brasil) – Wikipedia

(2) Josef Stalin – Wikipedia



(3) CASTELLO, José – Jorge Amado e o Brasil in Caderno de Leituras




CRISTALDO, Janer – Engenheiros de Almas - O stalinismo na literatura de Jorge Amado e Graciliano Ramos. 129 pag.

(4) Esta novela foi publicada, em folhetim, com o título primitivo de “El-Rei...”, n’ “O Jornal”, da Baía, em Abril de 1930, e assinada com os pseudónimos GLAUTER DUVAL, JUAN PABLO e Y. KARL, respectivamente, OSWALDO DIAS DA COSTA, EDISON DE SOUZA CARNEIRO e JORGE AMADO in Acervo da Fundação Casa de Jorge Amado

(5) FRANCISCO, Gil – Lenita, estreia do romancista Jorge Amado in Blogue Jorge Amado (25 de Maio de 2011)

SOTANA, Edvaldo Correa –  O relato de Jorge Amado sobre a União Soviética e a manutenção da Paz Mundial  in ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.
http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S23.0300.pdf

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