sábado, 15 de agosto de 2015

A poesia de Mário de Sá-Carneiro


Como estamos no Verão e apetece mais a praia...

Como estamos no Verão e apetece mais a praia ou passear pelo campo para fugir do calor (que por estes lados não tem sido tanto assim …) deixo este apontamento ligeiro para assinalar que a Tertúlia ainda não morreu…está a saborear umas férias, que infelizmente o seu autor não consegue ter!

… ou passear pelo campo. 
Mas sempre vou lendo ou relendo alguns dos meus livros.
Neste momento estou a reler o Mário de Sá-Carneiro (1), de quem recomendo vivamente a leitura da sua obra.

Caricatura de Mário de Sá-Carneiro por Almada Negreiros
Mário de Sá-Carneiro nascido em Lisboa a 19 de Maio de 1890 e que se suicidou em Paris a 26 de Abril de 1916, foi um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu (2) (de que se comemora este ano o centenário do seu lançamento). Foi um poeta, contista e ficcionista.

José Pacheco (1885-1934), capa de Orpheu
Fascículo n.º 1, Janeiro - Fevereiro - Março de 1915

Embora tivesse adiado por alguns dias o dramático desfecho da sua vida, numa «cart de despedida» para Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro revela as suas razões para se suicidar que aqui se transcreve.

Retrato de Fernando Pessoa em 1914

Meu querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal equal – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. [...]
Mário de Sá-Carneiro, carta para Fernando Pessoa, 31 de Março de 1916.

Assinatura de Mário de Sá-Carneiro
Mas vejamos como esta personagem tão complexa nos deixou alguns dos nossos poemas mais sublimes:

Distante melodia
Num sonho d´Íris morto a oiro e brasa,
Vêm-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule -
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.

Então os meus sentidos eram cores,
Nasciam num jardim as minhas Ânsias,
Havia na minha alma Outras Distâncias -
Distâncias que o segui-las era flores...

Caía Oiro se pensava Estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me...
– Noites-lagoas, como éreis belas
Sob terraços-lis de recordar-Me...

Idade acorde d´Inter-sonho e Lua,
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz – anseios de Princesa nua...

Balaústres de som, arcos de Amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume...
Domínio inexprimível d´Ópio e lume
Que nunca mais, em cor, hei-de habitar...

Tapetes de outras Pérsias mais Oriente...
Cortinados de Chinas mais marfim...
Áureos Templos de ritos de cetim...
Fontes correndo sombra, mansamente...

Zimbórios-panteões de nostalgias,
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...
Escadas de honra, escadas só, ao ar...
Novas Bizâncios-Alma, outras Turquias...

Lembranças fluidas... cinza de brocado...
Irrealidade anil que em mim ondeia...
– Ao meu redor eu sou Rei exilado,
Vagabundo dum sonho de sereia...

Paris 1914 - Junho 30

Último soneto
Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes – e vieste...
– Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste –
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa ? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Paris - Dezembro 1915

Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

Paris 1916 

Todos estes poemas estão incluídos no livro Indícios de Oiro (3) de Mário de Sá Carneiro.


SÁ-CARNEIRO (Mário de) – Indicios de Oiro

Encadernação com lombada e cantos de pele azul decorada com nervuras e rótulos de ferros dourados em casas fechadas. Ligeiramente aparado e tintado à cabeça de azul.
Conserva capas da brochura.

Saudações bibliófilas e continuação de boas férias.

Eu cá volto às minhas leituras e às minhas flores.







Notas:
(1) Mário de Sá -Carneiro – Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro
(2) Revista Orpheu – Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Revista_Orpheu
(3) Conjunto de 32 poemas autógrafos, em caderno de capa dura azul, com assinatura do autor na capa, na diagonal – BNP: http://purl.pt/13863


Sem comentários:

Enviar um comentário