terça-feira, 28 de abril de 2015

No 6º Aniversário da “Tertúlia Bibliófila” – Algumas reflexões


No dia do 6º aniversário da “Tertúlia Bibliófila” vou aproveitar para trocar algumas impressões convosco.


As mãos que manuseiam os livros…
[Gravura de Albrecht Dürer]

Em primeiro lugar, nunca é demais referir que sem o vosso apoio – tanto pelo número de leitores, como pelos comentários deixados ou até por contacto pessoal – não teria a motivação para continuar com este trabalho.

Deste modo, este aniversário deverá ser encarado como uma festa de todos nós – os bibliófilos que gostam de falar sobre livros – mas sobretudo daqueles que vão tendo paciência para me lerem!

A Libreria Anticuaria La Galatea publicou uma fotografia no Facebook (que com a devida vénia aqui insiro), que espelha bem o esforço que representa elaborar um simples “escrito” (nem me atrevo a chamar-lhe artigo), pois que para isso as pesquisas teriam de ser muito mais abrangentes, cuidadas e, sobretudo, trazerem à luz algo de novo.


Agradecidos de la vida, con amigos y libros... Sobre todo buenos amigos...
El profesor Rico ejerciendo de librero por un día...
©Libreria Anticuaria La Galactea

Como muitos dos meus leitores são de várias nacionalidades e eu, sempre que possível gosto de ler os escritores estrangeiros nas suas línguas originais, passaram também por aqui um conjunto interessante de autores estrangeiros com alguma relevância.

Deixou-se uma “pincelada” numa tela muito vasta daquilo que se poderia ter escrito, ou dito, sobre estes mesmos autores.

O leitor

Com efeito, como bibliómano inveterado, que o sou, delineie alguns dos perfis dos autores que compõem o meu universo literário – nem sempre coincidente com o vosso (e ainda bem!).

Mas vejamos alguns desses exemplos:

Comecemos com Charles Dickens.


Charles Dickens - uma sessão de leitura

E cite-se uma das suas várias obras:



Our Mutual Friend, the last complete novel by Charles Dickens, began serialization in May, 1864


Tivemos também aqui Victor Hugo.


Victor Hugo



HUGO, Victor – Les Châtiments. Nouvelle édition illustrée. Eugène Hugues, Editeur, rue Thérèse, 8, Paris, s.d. (1884). Paris, Typographie A. Quantin, rue St-Benoit, 7. 1 volume grand in-8 (28,7 x 20 cm) de (10)-335 pages.

Broché, couverture saumon illustrée (vignette sur le premier plat). Réclame pour l’édition Hugues des Œuvres de Victor Hugo (détails). Non rogné. Exemplaire sur papier de chine. Quelques légères colorations par endroit sur les deux plats de couverture. Infimes fendillements du papier de couverture au dos (brochage très solide). Absolument aucune rousseur.
Texte encadré d’un filet noir, les illustrations à pleine page sont comprises dans la pagination. Les dessins sont d’Emile Bayard, J.-P. Laurens, Férat, Méaulle, Chovin, H. Vogel, L. Benett, Charles Hugo, Victor Hugo, T. Schuler, Ferdinandus, A. Lançon, H. Daumier, Lix. D. Maillard, G. Vuillier, A. Marie Chapuis, L. Mouchot, et C. Guyot.
UN DES 50 EXEMPLAIRES SUR PAPIER DE CHINE (N°20).

Assim como Emile Zola.


Émile Zola
[Portrait d'Émile Zola avant 1880]



ZOLA, Emile  - Le Docteur Pascal. Paris, Bibliothèque-charpentier, 1893. In-8° relié 19 X 13 centimètres, demi-maroquin à coins, reliure à la bradel, dos orné d'ellipses, tête dorée, couvertures conservées.

Reliure signée Ch. Meunier. (Reliure en très bon état).
Il y juste une minuscule tâche brune sur le bord de 3 ou 4 pages.
Il y a bien le tableau dépliant, un portrait et 390 pages.
L'un des 340 exemplaires numérotés sur papier de Hollande, édition originale.
Bel exemplaire.
Une autre édition est parue la même année.

Os autores portugueses também não foram esquecidos e assim podemos ver Antero de Quental:



Antero de Quental



QUENTAL, Antero de – Beatrice. Coimbra; Imprensa da Universidade, 1863. In-4º de 39 [1] pag. - Encadernado. Primeira Edição. Segundo livro de poemas do autor, e um dos mais raros da sua bibliografia. Publicado dois anos depois dos "Sonetos". Muito bonita encadernação com lombada em pele decorada com finos ferros a ouro. Conserva intactas as capas de brochura. Excelente exemplar. Muito Rara Peça de Colecção.

Claro que Camilo Castelo Branco não podia faltar.


Camilo Castelo Branco, visconde de Correia Botelho




CASTELO BRANCO, Camilo – BOHEMIA // DO // ESPIRITO // POR // CAMILLO CASTELLO BRANCO // (vinheta editorial) // PORTO // LIVRARIA CIVILISAÇÃO // 4, Rua de Santo Ildefonso, 6 // - // 1886. In-8.º gr de 454-I págs. Encadernado.

Compreende ante-rosto com os dizeres BOHEMIA DO ESPIRITO e verso em branco; frontispício textualmente descrito supra e verso com subscrição tipográfica TYP. DE ARTHUR JOSÉ DE SOUSA & IRMÃO // Largo de São Domingos, 58 – Nº telephonico, 131; página 5ª com PREAMBULO datada na página seguinte; o texto propriamente dito inicia-se na página 7 e decorre até à página 454 incluindo as ERRATAS e o INDICE.
PRIMEIRA EDIÇÃO apreciada colectânea de escritos, primitivamente dada a lume em diversas publicações. BASTANTE INVULGAR. Junto ao frontispício vem um bom retrato de Camilo.
Encadernação francesa inteira de chagrin azul, com dourados, não contemporânea. Sem capas de brochura. Bom exemplar, limpo.

Vergílio Ferreira e a minha ligação ao meu velho Liceu Camões também não podiam faltar:


Vergílio Ferreira no Liceu Camões (1981)



FERREIRA, Vergílio – Onde Tudo Foi Morrendo. Coimbra; Coimbra Editora, Ldª. 1944. In-8º de VIII-436 [2] p. Encadernado. Primeira Edição.

Primeira e muito rara edição do segundo livro do autor, da qual deixamos as primeiras linhas: "Pela janela aberta vem a poesia da dispersão. Tudo se calou naquela hora sombria. E longa. As árvores quedaram-se, transidas de frio, de braços nus erguidos ao céu. Mas o céu escondera-se porque os ventos lhe tinham desdobrado nuvens espêssas pela curva abatida. Então os homens ficaram tristes, olhando, em silêncio, a planície sem fim. Rostos enegrecidos, barba crescendo, negra e negra, sempre crescendo, olhos necessitados inundando o ar... Pelo céu recôncavo ecoam uivos fundos de cães que choram lá para as bandas do cabo do mundo. Lamentos de uma angústia tôrva. Por isso o azul do céu foi sorrir para as terras do Sol. E a aldeia começou a fugir também para as terras do Sol. Só aquela janela aberta olha a tristeza das árvores abandonadas e derrama na saleta escurecida a desolação do Outono.(...)."

Capa de Regina Kaspizykowi, mulher de Vergilio Ferreira.

Integrada na colecção Novos Prosadores, que lançou os primeiros romances do neo-realismo português.
Apreendido pela censura política da época.
Excelente exemplar.


Crianças numa livraria.
(será este o futuro da bibliofilia…é nele que temos de apostar!)

Um outro tema que me tem chamado a atenção é o uso/abuso do termo RARO.


Vamos falar de raridades….

Com efeito, quando folheamos catálogos de livreiros-antiquários para venda a preço fixo, ou para um leilão, encontramos a indicação no descritivo de um determinado livro: RARO.

No entanto, é frequente já termos deparado com esta mesma classificação noutros catálogos que consultáramos recentemente ou apareceram noutras vendas/leilões, há pouco tempo, e sempre com esta mesma indicação de raro! 
(mas se o livro aparece assim tantas vezes, será que é mesmo raro ou será uma grande coincidência?)

E isto para não falarmos nos diversos graus: RARO, MUITO RARO e RARÍSSIMO!

(Nunca me esqueço duma frase do meu prezado amigo Luís Gomes: “Um livro ou é raro ou não o é!” – e penso que tem razão apesar da sua simplicidade classificativa)

Mas afinal como se poderá definir a raridade de uma obra?

Claro que nenhum bibliófilo português terá escrúpulos em aceitar a raridade desta obra.:

QUENTAL, Antero – SONETOS // DE // ANTHERO// Editor – Sténio // COIMBRA // Dezembro 1861. In 8º gr. De XII-23-III págs.

É muitíssimo raro (e lá me fugiu o dedo para adjectivar a raridade!) pois são conhecidos muitos poucos exemplares e é seguramente uma das mais raras espécies bibliográficas de toda a literatura portuguesa.

(O último exemplar vendida foi aquando do leilão da Biblioteca do Dr. Laureano Barros – lote 4955, ex-Biblioteca de V. Avilez Perez que tinha sido vendido no leilão da mesma por 500$ e já lá vão mais de mais de 40 anos!)

Fiquemos por esta edição, que não é assim tão má:



QUENTAL, Antero de – Sonetos / Antero de Quental.
Porto: Imprensa Portugueza, 1881. - 32, [4] p. ; 19 cm.
(Bibliotheca da Renascença)

Obviamente que se consideram nesta categoria, como regra geral, todas as primeiras edições de uma obra e, em especial das primeiras produções literárias de cada escritor.
Também se devem incluir, em minha opinião, nesta categoria as chamadas edições especiais de tiragem muito limitada. (Não confundir com tiragens comemorativas que essas são geralmente em tiragens de maior número de exemplares.)

Tomando como ponto básico a premissa acima referida, em minha opinião, devem ser incluídas aqui apenas exemplares cuja edição foi de pequena tiragem (poucas centenas de exemplares), obras que sofreram processos de destruição (as purgas inquisitoriais ou políticas fruto da censura religiosa ou política) ou ainda aquelas escassas edições que o seu autor decidiu destruir posteriormente depois de publicadas e de que se salvaram pouquíssimos exemplares.


Estado Islâmico incendeia biblioteca de Mossul, queimando 8 mil livros raros

Deste modo, são obras de que são conhecidos poucos exemplares, ausentes muitas vezes mesmo das instituições estatais – bibliotecas nacionais ou museológicas.

Mas talvez seja mais prático ilustrar com alguns exemplos:




ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner – Poesia. Edição de autor, Coimbra, 1944. In-8º de 85-(3) págs. Encadernação inteira em sintético com dizeres e florões a ouro. Folha de guarda, ante-rosto e rosto com poemas escritos a tinta (não autógrafos). Foram publicados apenas 300 exemplares.
MUITO RARO.

Primeiro livro da poetisa, publicado em 1944.
Espero
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.


Livraria Alfarrabista Miguel de Carvalho

Na livraria Livros Antigos de Gabriela Gouveia temos um outro clássico em termos de raridade:



NOBRE, António – . Paris; Léon Vanier, Éditeur. 1892. In-8ºgr. de VI-157-III págs. - Encadermado.
Primeira Edição.

Primeira, mais rara e muito valiosa edição de um dos maiores e mais queridos livros de Poesia Portuguesa, absolutamente fundamental na história da Poesia portuguesa de todos os tempos, numa sóbria e esmerada edição em papel de linho impressa em Paris.
Tiragem limitada a apenas 230 exemplares.
Excelente exemplar. Magnífica encadernação com lombada e cantos em pele e gravação a ouro. Assinada Fersil Porto.
Ex-libris de Nuno Francisco Sttau Monteiro Ferreira da Silva, no interior da encadernação.
Conserva as raras capas de brochura com as respectivas badanas e a lombada em excelente estado, por aparar.
Muito Rara Peça de Colecção.



«A Paródia em Coimbra», caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro
que parece representar o poeta António Nobre rodeado de símbolos universitários,...

E já agora que estamos em maré de poesia veja-se este outro exemplar da mesma Livraria:



SÁ-CARNEIRO, Mário de - Dispersão. 12 Poesias por… Lisboa: Em casa do autor, 1 Travessa do Carmo, 1913. In- 4º gr. de 70[2]p. - Encadernado.

Raríssima e Muito Valiosa
Primeira Edição.
Tiragem única de 250 exemplares.
Obra de extrema   importância  na  literatura  modernista  portuguesa.
Admirável capa de brochura, ilustrada a cores e ouro, por José Pacheco (ilustrador da capa do nº 1 da revista Orpheu).
Capa que tem a particularidade de possuir margens consideravelmente maiores do que as dimensões do corpo do volume, daí que sejam raros os exemplares que a mantenham na sua integridade. 
Excelente exemplar, com as capas de brochura em perfeito estado de conservação. Encadernação sóbria inteira em pele, com gravação a ouro na lombada.
Valiosa Peça de Colecção.


Livraria Livros Antigos de Gabriela Gouveia

Um outro aspecto que não se pode deixar de considerar é o preço destas raridades: a obra pode ser mesmo rara, mas o seu conteúdo e qualidade literária é tão pobre que o valor é quase nulo; enquanto outras obras que levam a classificação de INVULGAR/POUCO COMUM podem atingir preços muito mais altos, pois embora existam mais exemplares disponíveis no mercado, a procura é tanta que o valor sobe em função dessa mesma procura.

Evidentemente que não se trata dos exemplares referidos acima!

Mas nem só de raridades vivem os bibliófilos – ainda que sonhem com elas constantemente e muitas vezes na miragem de uma “descoberta” quase milagrosa numa livrariazita perdida no mapa ou num livreiro distraído (é tão fácil sonhar…), pois temos muitos outros livros importantes para ler ou adquirir. 

Como disse o meu amigo Eduardo De Blas Duport “!Tantos libros….! y tan poco tiempo!”


!Tantos Libros...!y tan poco tiempo
©Eduardo De Blas Duport

Aqui vos deixo estas reflexões com um convite à vossa participação na discussão dos temas e espero que para o ano nos encontremos aqui de novo.

Assim eu continue a ter “alguma arte e engenho!” para ir escrevinhando alguns "textozitos" e também disposição para isso…pois que esta já me começa a faltar por vezes.


Saudações bibliófilas.

sábado, 25 de abril de 2015

Luandino Vieira – Luuanda. A censura e a ditadura em Portugal.

À memória da minha mãe



José Luandino Vieira

No dia em que se comemora o 41º Aniversário do 25 de Abril parece-me importante relembrar um escritor português, que se naturalizou angolano, e que sofreu bem as consequências de ter escrito e vivido num país onde imperava um ditadura e censura (1) férreas e implacáveis.
Por um lado felizmente, mas por outro não tanto assim, grande parte da geração que nos governa desconhece o que foi ter vivido nestes tempos e, como tal, por vezes estas reminiscências não passam disso mesmo – coisas de “velhotes!” 


25 de Abril em cada livro um amigo

José Vieira Mateus da Graça, conhecido por Luandino Vieira, nasceu a 4 de Maio de 1935, em Vila Nova de Ourém, tendo ido viver para Angola aos três anos com os pais.

Cidadão angolano pela sua participação no movimento de libertação nacional escolheu o nome de Luandino como homenagem a Luanda e contribuiu para o nascimento da República Popular de Angola.

Fez os estudos primários e secundários em Luanda, tornando-se depois gerente comercial para garantir o seu sustento.

A luta contra a dominação portuguesa custou-lhe mais de uma década na prisão, onde escreveu boa parte de sua obra. Entre seus diversos volumes de narrativas, destacam-se os romances A vida verdadeira de Domingos Xavier e Nós, os do Makulusu.



VIEIRA, Luandino – A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. 2ª Edição. Lisboa; Edições 70, 1975; In-8º de 128 páginas; Brochado.
Exemplar em bom estado de conservação
©Livraria Alfarrabista Liliana Queiroz (12,5€)




VIEIRA, Luandino – Nós, os do Mokuluso. 1ª Edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1974; In-8º de 140 páginas; Brochado
Exemplar com pequenos danos nas capas de brochura, extremidades ligeiramente gastas, miolo em bom estado de conservação.
© Livraria Avelar Machado (Lisboa, Portugal) (38,88€)

Acusado de ligações políticas com o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) foi preso em 1959 pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), no âmbito do que ficou conhecido como "processo dos 50".

Em 1961 voltou a ser preso pela PIDE, tendo sido condenado a 14 anos de prisão e a medidas de segurança. Em 1964 foi transferido para o campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde), onde passou oito anos, tendo sido libertado em 1972, em regime de residência vigiada, passando a viver em Lisboa.

Entre outros prémios literários, Luandino Vieira venceu o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores (1965), o Prémio Sociedade Cultural de Angola (1961), o da Casa do Império dos Estudantes - Lisboa (1963) e o da Associação de Naturais de Angola (1963).


José Luandino Vieira

A partir de 1972, e já a residir em Lisboa, Luandino Vieira iniciou a publicação da sua obra, na grande maioria escrita nas prisões por onde passou.

Regressou a Luanda em 1975, onde exerceu cargos directivos no MPLA e foi presidente da Radiotelevisão Popular de Angola. Membro fundador da União dos Escritores Angolanos - cuja condição sempre reivindicou, apesar de ter nascido em Portugal - exerceu funções de secretário-geral deste organismo desde a sua fundação a 10 de Dezembro de 1975 até 1992.


Edifício sede da União dos Escritores Angolanos, Luanda.

Entretanto, foi-lhe atribuído em 2006 o Prémio Camões, o maior galardão literário para a língua portuguesa, que recusou "por motivos íntimos e pessoais" (2), segundo o que alegou num comunicado de imprensa. Sabe-se por entrevistas dadas sobretudo ao Jornal de Letras Artes & Ideias que não aceitou o prémio por se considerar um escritor morto e que como tal o Prémio deveria ser entregue a alguém que continuasse a produzir.


Luandino Vieira recusa Prémio Camões

Tal facto veio-se alterar, pois O livros dos rios é um novo romance de Luandino Vieira (o primeiro de uma trilogia intitulada De rios velhos e guerrilheiros) editado pela Editorial Caminho em Novembro de 2006.
O escritor enquadra-se na geração da Cultura, surgida no final dos anos 50 — para prolongar a acção do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA, 1948) e da Mensagem (1951-52)—, de que se destacaram, entre outros, António Cardoso, Arnaldo Santos e Henrique Abranches. Mas, pela particularidade e projecção da sua obra, Luandino ultrapassa-a, para se fixar, nas últimas décadas, como uma das maiores figuras de escritor deste século, em língua portuguesa.

A parte significativa da sua obra foi escrita nos anos 60, nomeadamente os dois livros mais importantes, Luuanda e Nós, os do Makulusu. O primeiro constituiu uma autêntica revolução literária […]. O segundo, escrito durante uma semana, conforme indicação do autor, é para ele o texto com o qual mais se identifica em termos pessoais, quase autobiográficos, podendo ler-se como um testemunho vivencial e uma análise do colonialismo a partir de uma visão de dentro da sociedade branca.



VIEIRA, José Luandino, (pseud. de José Mateus Vieira da Graça), 1935- – Duas histórias de pequenos burgueses. Sá da Bandeira: Imbondeiro, 1961. 27, [1] p. : 17cm ; (2 estampas): Br. : Ilustrado com 2 linóleos de Luandino Vieira. Pouco vulgar. Muito bom exemplar. Colecção "Imbondeiro" – 23.
©Artes & Letras (Lisboa, Portugal) (45,00€)



Vieira, José Luandino – Vidas Novas. 1ª edição. Porto: Afrontamento, 1975. Brochura. 18,5x23cm. 116 páginas. Ilustrações de José Rodrigues.
© Livraria Avelar Machado (Lisboa, Portugal) (49,40€)

A sua obra divide-se em duas fases: a primeira, que agrega as estórias escritas até 1962, ou seja, todas as incluídas em Vidas novas, e que ainda se mantêm nos limites do discurso relativamente clássico, não demasiado afastado em relação à norma do português europeu e do modo narrativo conforme com o modelo do conto curto à Maupassant: a segunda fase, com a duração de dez anos, inaugurada pela escrita de Luuanda, tenderá progressivamente para a destruição da pacatez de leitura, disseminando marcas de angolanização da língua portuguesa, subvertendo a norma comunicativa do português-padrão de Lisboa, adoptando gírias, neologizações, tipicismos e outros recursos, também sintácticos, orais e tradicionais africanos, para construir uma língua literária propícia ao imediato reconhecimento da sua diferença. (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p.121)



VIEIRA, José Luandino (1935) – LOURENTINHO, DONA ANTÓNIA DE SOUSA NETO & EU. 1ª edição. União dos Escritores Angolanos, Lisboa, 1981. Brochura. In-8º (200x140). 1 Vol. de 131-[12] pp.
© CIMELIO BOOKS (Cascais, Portugal) (20,00€)



VIEIRA; José Luandino – O Livro dos Guerrilheiros, Narrativas. 1ª edição. Lisboa: Caminho, 2009. Brochura. 109 p.
© Livraria Avelar Machado (Lisboa, Portugal) (20,57€)

Tal como Guimarães Rosa, começou a usar a designação de estória para as suas narrativas, mais longas que o conto e menos desenvolvidas que a novela ou o romance. […]
A estória é, portanto, diferente da história: misto de mussosso (plural: missosso), fábula ou narrativa moral africana, tradicional, e pequena epopeia popular à moda do grande mestre brasileiro de Minas. Esse texto luandino caracteriza-se, na sua génese, por surgir num espaço de criação de uma linguagem nova, que parte da apropriação da língua já codificada e estabilizada socialmente (isto é, normativizada pelo uso erudito do colonizador), para desconstruí-la, por vezes ao nível minucioso da fonologia, num trabalho de Sísifo contra a montanha intransponível. A língua literária luandina surge assim na intersecção da língua natural portuguesa com a língua natural quimbunda, fornecendo aquela sobretudo o espaço lexical e a estrutura básica, interferindo esta nalguns pontos da sintaxe, introduzindo-se vocábulos crioulizados, aquimbundados, do quimbundo ou mesmo neologismos, além de certas nuances (circunlóquios, tautologias, etc.) prolongarem a oralidade gramatical e expressiva do português. […]



VIEIRA, José – Luuanda. Luanda; 1963. In-8ºpeq. de 103[3] p. - Brochura.
Muito rara edição deste célebre livro da literatura angolana e de língua portuguesa, impresso clandestinamente em Luanda e distinguido com o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, atribuição que determinou o encerramento forçado da Sociedade e a proibição do livro em Portugal.
Dedicatória do autor, assinada e datada.

Mas voltando ao livro de que vos quero falar – Luuanda é um livro de contos do escritor angolano José Luandino Vieira publicado clandestinamente em 1963 em Luanda (como se disse) e foi apreendido de imediato.

Este livro é constituído por três estórias: "Vovó Xíxi e seu neto Zeca Santos", "A estória do ladrão e do papagaio" e "A estória da galinha e do ovo".

As estórias de Luuanda dão-nos a conhecer o espaço angolano no período colonial tardio. Retratam o quotidiano dos musseques luandenses; as histórias das famílias, o ambiente caótico, de confusão que a própria arquitectura dos musseques representa. A relação entre os pretos e os brancos, novos e velhos, comportamentos e ideias, vêm marcar o início do estabelecimento de uma norma angolana, distinta da norma portuguesa, na escrita e representação cultural. Tudo o que é retratado reflecte a imagem do dia-a-dia do povo, sendo os mais velhos vistos como os sábios e os mais novos como os que ainda estão a aprender.
Para finalmente ser dada a voz aos angolanos, as estórias são uma mistura de português e inúmeras palavras e expressões em quimbundo. Só falando a mesma língua dos musseques, o texto teria acesso aos seus habitantes e seria apreciado na linguagem do povo.

Luuanda mostra-nos também a influência do português colonizador, sendo o português a língua de prestígio, utilizada pelas classes sociais mais altas, como patrões e administradores portugueses, e o quimbundo sendo a língua falada pelo povo do musseque nos seus contos e conversas. Para além desta nova linguagem, a comunidade de Luanda é representada também através de crenças e ensinamentos, sendo a verdade o povo angolano e a mentira representada pela implantação da lei português, o antigo crioulismo e o racismo existente nos tempos modernos.



VIEIRA, José Luandino, (pseud. de José Mateus Vieira da Graça), 1935- – Luuanda : estórias. (edição ilustrada por José Rodrigues). Lisboa: Edições 70, (1972) 187, [5] p. : (25 cm) : [3 Il.] : Br. Edição de 500 exemplares numerados e assinados pelos autor e ilustrador. Exemplar nº. 257. Bem conservado, pouco vulgar.
©Artes & Letras (Lisboa, Portugal) (120,00€)

A estória central do livro, “Estória do ladrão e do papagaio”, opera uma espécie de passagem entre a primeira narrativa – em que os protagonistas ainda não despertaram para a necessidade da militância na luta contra o colonizador – e a última – em que as personagens vão experimentar o alcance político da prática social solidária.

De um modo bem genérico, é possível dizer que o texto fala sobre o encontro de três africanos na prisão - Xico Futa, Lomelino dos Reis e Garrido Fernandes - e sobre o florescimento da solidariedade entre eles. Vale afirmar que o papel exercido por Xico Futa é central nessa interacção: ele é porta-voz de ensinamentos preciosos para as outras personagens e também para os leitores da estória.

Nesse sentido, a “parábola do cajueiro”, enunciada por Futa, é fundamental para a constituição de um saber revolucionário. Nessa narrativa de carácter didáctico, a personagem adverte que é preciso conhecermos a raiz ou o princípio daquilo que mobiliza as pessoas e as suas acções. Vejamos: 

[…] Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas. (pp. 71-72)

Ao insistir no facto de que devemos reflectir sobre o cajueiro - imagem das estórias entrelaçadas que conformam e justificam a realidade - e perseguir o fio da vida - fio das histórias pessoais e colectivas – Futa aponta para a necessidade de constituirmos a nossa identidade como sujeitos históricos, afirmando valores fundamentais para a mobilização popular contra o poder instituído.

Já no final da estória, a confraternização entre os capianguistas presos afirma a solidariedade tão necessária para o enfrentar da luta e é aí que a voz do narrador se vai manifestar pela primeira vez. A sua fala, antes de mais nada, pede um posicionamento dos leitores, propondo um julgamento estético - e ético - da própria estória: Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem (p. 120). Desse modo, “os que sabem ler” ocupam o lugar da audiência dos antigos “griots” e são convocados a aderir ou não à narrativa e aos seus ensinamentos.

Luuanda é uma obra histórica, vista como um autêntico livro de ruptura com a norma portuguesa na literatura angolana. Pelo seu cariz inovador, mereceu o reconhecimento geral e foi galardoado com dois importantes prémios – 1º Prémio D. Maria José Abrantes Mota Veiga, atribuído em Luanda em 1964.
Em 1965, o júri da Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu o Grande Prémio da Novelística a um jovem escritor, então desconhecido. A obra era o livro de contos Luuanda, e José Luandino Vieira o seu autor. 

Com a particularidade de, na altura da atribuição do galardão, o autor estar prisioneiro num campo de concentração, a cumprir uma pena de 14 anos por «práticas terroristas». A publicação do livro causou uma grande polémica e represálias na época Salazarista.



VIEIRA, Luandino - Luuanda estórias. 2ª Edição. Lisboa; Edições 70, 1972. In-8º de 187 (5) páginas; Brochado
 Edição apreendida em Portugal, possui assinatura de posse, bom estado de conservação geral.
©Livraria Alfarrabista Liliana Queiroz (25,00€)

Luuanda viria a ser publicado por Edições 70 em 1972 – a sua 2.ª edição seria mesmo apreendida e a Editora multada em 30 mil escudos, por despacho assinado pelo director-geral da Informação. Aliás, a pedido do Editor testemunhariam neste processo Ferreira de Castro e Jorge de Sena, com este último a afirmar «o papel primordial no desenvolvimento da literatura angolana de expressão portuguesa».

Obra ímpar pelo seu estilo – que inovava no uso da língua, fortemente marcada pelo português falado em Angola, como afirmaria Augusto Abelaira (Presidente do Júri que votou o prémio), – pela capacidade de criação literária, pela feitura de um universo novelístico, Luuanda foi, na altura, o texto que revelou um autor que se conta hoje entre os maiores da literatura de expressão portuguesa.



VIEIRA, José Luandino – Luuanda. Lisboa: Editorial Caminho. Outubro 2004. 158 pág. Brochura.

Espero que vos tenhas despertado o interesse e que sejam tentados a uma leitura (ou releitura) de alguma das suas obras.

Saudações bibliófilas.

Fontes consultadas:

Luuanda – Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Luuanda)

BEBIANO, Deize Pereira. “Língua Portuguesa e Identidade Nacional em José Luandino Vieira”. (http://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/291-língua-portuguesa-e-identidade-nacional-em-josé-luandino-vieira)

COELHO, Alexandra Lucas, “Luandino Vieira Quebra um Aparente Silêncio de Quase 30 Anos” (entrevista ao Suplemento Mil Folhas, Público, 15/12/2006)

GONÇALVES, Adelto – Luandino Vieira e a literatura como “arma”

ROSA, Patrícia Simões Oliveira, “José Luandino Vieira: A Palavra em Liberdade”.

SÁ, Ana Lopes de, “Luanda literária a várias cores O tema do racismo em Luandino Vieira e Uanhenga Xitu”.

SILVA, Patrícia Soares, José Luandino Vieira: afirmação de uma real identidade angolana. (http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/luandino.rtf)

Notas:
(1) Leia-se: Censura em Portugal – Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Censura_em_Portugal)

(2) Leia-se Diário de Notícias – Luandino Vieira recusa Camões por "razões pessoais" (http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=641087)