José Mindlin na sua biblioteca
Proponho hoje uma abordagem diferente sobre a bibliofilia: o que pensam os “outros” de nós.
Todos nós conhecemos textos brilhantes sobre bibliofilia escritos por iminentes bibliófilos, caso de Octave Uzanne por exemplo, mas será curioso ter uma ideia do que pensam os “outros” sobre a nossa grande paixão.
Octave Uzanne – Bouquinistes et bouquineurs: Physionomie des quais de Paris.
Ilustração
Vem isto a propósito de um texto em versão pdf que o meu amigo Prof. Fabiano Cataldo (1) me enviou há algum tempo de um estudo realizado sobre: “Consumo, Colecionismo e Identidade dos Bibliófilos: uma etnografia em dois sebos (2) de Porto Alegre” por Neusa Rolita Cavedon, Rodrigo Bisognin Castilhos, Lívia Donida Biasotto, Indira Nahomi Caballero e Fabiana de Lima Stefanowski; publicado em: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 345-371, Jul./Dez. 2007.
Com efeito os seus autores descrevem este trabalho como: “No presente artigo, buscamos desvendar o comportamento de consumo dos colecionadores de livros. Por meio do método etnográfico, percorremos o universo dos bibliófilos que circulam por dois sebos de Porto Alegre. O trabalho de campo revelou aspectos que extrapolam a visão funcionalista utilitária da aquisição de bens, evidenciando sociabilidades e reações emocionais ligadas ao consumo. Os referenciais de comportamento do consumidor e da antropologia do consumo nos permitiram acessar algumas particularidades dos bibliófilos, que incluem sociabilidades masculinas, consumo obsessivo, construção e reforço de uma identidade por meio do consumo. A principal contribuição do estudo reside na análise de um universo consumidor com características extremas, o que provê subsídios para a compreensão de alguns elementos do consumo na sociedade contemporânea, notadamente no que tange às propriedades simbólicas dos bens e os processos de apropriação e personalização das mercadorias quando da sua passagem do domínio da produção para o domínio do consumo.” (3)
O leitor – Gravura de A. Canella in
Octave Uzanne – Le Livre. Paris, A. Quantin, 1880.
Com base na definição de Rouveyre (2003, p. 15): “o livro é uma obra escrita por qualquer pessoa esclarecida sobre qualquer assunto de ciência, para instrução e entretenimento do leitor. Pode-se ainda definir um livro como sendo obra de um homem de letras, coligida para comunicar ao público e à posteridade tudo quanto o autor possa ter inventado, visto, experimentado e compilado, devendo constituir material considerável para encerrar-se num volume.”
O livro
Os autores citam a análise de Baudrillard (1972, p. 14): “os objetos nunca se esgotam naquilo para que servem, e é nesse excesso de presença que ganham a sua significação de prestígio, que ‘designam não já o mundo, mas o ser e a categoria social de seu possuidor” assim como Douglas e Isherwood (2004, p. 123-124), para quem os bens são usados para marcar, no sentido de categorias de classificação, nesse caso, de uso público: “Os bens são dotados de valor pela concordância dos outros consumidores. Eles se reúnem para classificar eventos, mantendo julgamentos antigos ou alterando-os […] cada indivíduo está no esquema de classificação cujas discriminações está ajudando a estabelecer […] a espécie de mundo que criam em conjunto é construída a partir de mercadorias, escolhidas por sua adequação, para marcar eventos numa escala de graduação apropriada.”
Livraria Alfarrabista Miguel de Carvalho
Coimbra
O estudo é realizado em duas livrarias-antiquárias: O Beco dos Livros – O prédio antigo pintado de azul, em frente à Casa de Cultura Mário Quintana e próximo a outros espaços culturais do bairro Centro, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o Memorial do Rio Grande do Sul e o Santander Cultural, nos faz perceber que a escolha geográfica vem ao encontro de um determinado público que provavelmente circula por esse entorno visando a usufruir bens e serviços culturais. Em especial, a Casa de Cultura Mário Quintana, local de inúmeras actividades culturais como cinema, exposições de artes plásticas dentre outras, deve atrair seus frequentadores também para o sebo Beco dos Livros.” e a Livraria Nova Roma – “Localizada à rua General Câmara, número 428, a Livraria Nova Roma dista alguns metros da Biblioteca Pública do Estado, estando próxima ainda ao Teatro São Pedro, sendo, igualmente, circunscrita em um reduto cultural do Centro da capital gaúcha. O caixote de saldos na porta do estabelecimento configura-se como um grande chamariz para quem por ali transita. A loja abarrotada de livros torna-se pequena, mas aconchegante. Uma mesa maior reúne os saldos de um real, a grande atracção do local, não só pelo preço, mas pela renovação constante dos livros expostos.”
Consumo, Colecionismo e Identidade dos Bibliófilos:
uma etnografia em dois sebos de Porto Alegre. (pág. 356)
Consumo, Colecionismo e Identidade dos Bibliófilos:
uma etnografia em dois sebos de Porto Alegre (pág. 357)
Mais adiante, os autores referem que Moraes (2005, p. 21) faz referência a esse “amor pelos livros”: “O prazer de colecionar, a emoção de encontrar um livro procurado há anos, a volúpia de completar as obras de um autor, é, para o milionário que paga uma fortuna porum livro, a mesma do pobretão que encontra num sebo o volume sonhado”. Mindlin é jornalista, advogado, livreiro, editor e empresário e, igualmente, umbibliófilo, também revelou sua emoção em relação ao contato com o livro raro: Além do conteúdo, edição, encadernação, diagramação, tipografia, ilustração, ou papel, o livro exerce sobre mim uma atração física. Não me satisfaz ver um livro numa vitrine, sem poder pegá-lo. Minha tese é que a gente deve poder tocar naquilo que gosta, sentir objetos e pessoas […] Quando, depois de anos e anos de procura, encontra-se um livro raro, o coração bate mais forte. Sente-se uma emoção grande, mas não se pode deixar que ela transpareça diante do livreiro. Por motivos óbvios… (Mindlin, 1997, p. 22-24).”
Neste trabalho, “ Podemos acompanhar a narrativa do dr. Aurélio sobre a coleção na qual estava empenhado em conseguir exemplares, a obra de Lima Barreto. A sua escolha se deveu ao fato do autor ser um mulato contemporâneo de Machado de Assis que se dedicou não a relatar aspectos da aristocracia carioca, mas sim de pessoas populares como o personagem Policarpo Quaresma. Embora não tenha conseguido as primeiras edições, parecia satisfeito em ter comprado a terceira edição da Brasiliense, com capa dura, coberta por um invólucro de papel com uma ilustração de época. A compra ocorreu no sebo Martins Livreiro, situado na rua Riachuelo, foram 17 exemplares ao preço de R$ 20,00 cada um. O primeiro volume faltante, ele conseguiu adquirir em outra loja do Beco que não a da Andradas. Revelou amar tanto essa coleção que, à noite, enquanto escuta jazz, ocupa-se em restaurar a coleção objetivando tornar imperceptíveis pequenas imperfeições. Com medo de danificar a coleção, adquiriu outros exemplares destinando-os à leitura, permitindo-se assim um manuseio mais livre. Moraes (2005) revela que Mário de Andrade era um bibliófilo que, ao receber um exemplar autografado por um autor conhecido, costumava guardá-lo tal qual o recebera, sem folheá-lo. Para efetuar a leitura comprava outro exemplar do mesmo livro e esse sim era riscado, sublinhado, com observações acrescidas às margens.”
“Dr. Aurélio lembra que desde criança gostava de colecionar coisas, figurinhas, carrinhos e, depois de adulto, livros. Esse último objeto representa um maior dispêndio monetário, mas, segundo o referido psiquiatra, “a gente precisa ter”. Segundo Baker e Gentry (1996), quando criança nós colecionamos por diversos motivos, tais como para crescer como pessoa, por paixão, para mostrar capacidade de adquirir “mais” que os outros, para melhorar nossa identidade e para mostrar que somos únicos. Temos, então, que a substituição do objeto da coleção quando da passagem para a vida adulta não invalida algumas de suas motivações, que vêm desde a infância. Fica evidente a motivação pelo destaque pessoal e pela busca por identidade no caso dos nossos colecionadores de livros. Da mesma forma, a mudança de objeto representa uma conformação com os padrões socialmente aceitos, onde de parte de um homem não se espera que mantenha uma coleção de figuras, mas sim algo de acordo com o seu status de homem. Como bem colocam Douglas e Isherwood (2004, p. 172): “para cada status, um certo grau de consumo é considerado apropriado”.
Victor Hugo – Les Châtiments. Nova edição ilustrada.
Eugène Hugues, Editeur, rue Thérèse, 8, Paris, s.d. (1884).
Paris, Typographie A. Quantin, rue St-Benoit, 7.
1 volume in-8º grande (28,7 x 20 cm) de (10)-335 págs.
(Colecção do autor)
Mais adiante, podemos ler: “Na Nova Roma, um cliente manifestou, certa ocasião, a sua percepção sobre alguns questionamentos feitos a quem coleciona livros. Uma das perguntas que revelou ser bastante comum é a seguinte: “Você já leu todos os livros que adquiriu?” Para essa pessoa, é curioso porque ninguém faz a mesma pergunta a um colecionador de canetas ou selos. No seu entender a coleção de livros não é para ser lida, mas simplesmente olhada, tal como os selos e as canetas que se usados implicam o desaparecimento da coleção. Nesse caso, o colecionador não obtém o objeto para ser lido, mas pela carga simbólica depositada nele (Baudrillard, 1972). Isso nos mostra o caráter eminentemente autotélico de qualquer coleção; por mais útil que seja o objeto, ao se tornar parte de uma coleção, ele é despojado de sua função utilitária (Belk et al., 1988).”
Ou ainda: “Sr. Ronaldo, outro bibliófilo que conhecemos na Nova Roma, parece pactuar com essa visão, pois, para ele, colecionar não significa ler todos os livros. Nas suas palavras, “a raridade vicia” e o colecionismo nesse caso passa a ter um certo fetiche. Acordar de madrugada e admirar as raridades que possui faz parte desse fetiche. Relatou ter um exemplar do Tronco do Ipê, de José de Alencar, datado de 1871, a raridade não se dá pela datação, mas sim pela dificuldade que se constitui encontrá-lo, a obra apresenta cinco páginas de errata.”
Citando, mais uma vez, esse grande bibliófilo que foi José Mindlin: “Mindlin (1997, p. 15- 16) explica como se tornou um bibliófilo e até certo ponto a sua narrativa vai ao encontro daquilo que pudemos verificar em campo na convivência com bibliófilos de Porto Alegre: O livro exerce uma atração multiforme que vai muito além da leitura, embora esta seja um ponto de partida fundamental. Em primeiro lugar, existe a ilusão de que se vai conseguir ler mais do que na realidade se consegue. Depois vem o desejo de ter à mão o maior número possível de um autor de quem se gosta – já é o começo de uma coleção. Conseguindo o conjunto, que sempre se quer o mais completo possível, surge o interesse pelas primeiras edições, geralmente raras, e a atração pelo livro como objeto, e também como objeto de arte, em que entra a qualidade do projeto gráfico, a ilustração, a diagramação, o papel, a tipografia, a encadernação; e aí já surge a busca da raridade. Quando se chega a esse estágio, aquele que pensava em ser na vida apenas um leitor metódico, está irremediavelmente perdido. Sua relação com o livro passa a ter uma dimensão quase patológica, pois a compulsão de possuí-lo é mais ou menos irresistível (mais mais do que menos).”
Bernardim Ribeiro – Menina e Moça
Bernardim Ribeiro – Menina e Moça
E mais uma outra pequena história: “Dentre as vivências do sr. Ronaldo como bibliófilo existe o relato de umasituação em particular. Certa ocasião colocou anúncios em um jornal local de grande circulação, mencionando comprar livros usados e antigos. Em razão disso, certo dia, aparece em sua casa um rapaz portando um livro a ser vendido. A esposa do sr. Ronaldo cientificou o rapaz de que seu marido não se encontrava no momento e o rapaz garantiu voltar mais tarde. Ao chegar à sua residência, o sr. Ronaldo fica sabendo que se tratava do livro Menina Moça, de Bernardim Ribeiro, realmente uma raridade. Temeroso devido à incerteza sobre o retorno ou não do rapaz, o sr. Ronaldo aguardava a chance de negociar aquela obra. O rapaz volta ao local e faz a sua proposta para a venda do livro. A identificação por parte do sr. Ronaldo da utilização de papel trapo garantia a antiguidade da obra, porém, ao verificar um defeito na lombada do livro, o bibliófilo, num “ímpeto de maldade”, como ele mesmo menciona, faz desse defeito o mote para a sua negociação e consegue adquirir o livro por um preço muito baixo, tão baixo que até hoje parece ter um certo remorso por ter se aproveitado do desconhecimento do vendedor em face da preciosidade que possuía.”
Sobre a busca insaciável pelas primeiras edições podemos ler: “O prazer decorrente da busca pelas primeiras edições de livros antigos e consagrados, segundo dr. Aurélio, vai além do prazer da leitura, envolve o cheiro de fungo exalado pelo livro. Nesse caso, evidenciamos que os objetos com pátina estabelecem uma relação do objeto com uma época remota da própria vida do colecionador ou de um período de grande efervescência cultural-literária no Brasil ou no mundo, remetendo a “um espaço temporal fora do aqui e agora” (Almeida; Rocha, 2006, p. 13). Dr. Aurélio diz que ao adentrar nesses espaços é como penetrar em outro mundo. Importante lembrar que os sebos estudados são convidativos a umareação nostálgica. Objetos antigos são utilizados como decorativos, reconstruindo desordenadamente aspectos culturais do passado (Featherstone, 1997, p. 135-136). Dr. Aurélio, sobre os livros, diz: “eles não nos questionam, são passivos na estante, quando se quer, se vai lá e os pega, senão, eles continuam lá e não nos trazem preocupações. Outra coisa interessante nas bibliotecas é a convivência de autores, célebres autores, que hoje estão mortos e durante a vida eram inimigos”.
Jacques de La Sarraz du Franquesnay - Le Ministre Public dans les Cours Etrangères,
ses fonctions et ses prérogatives. Par le sieur J. de La Sarraz du Franquesnay.
A Paris, chez Etienne Ganeau, libraire rue St-Jacques, aux armes de Dombes, 1731
(Colecção do autor)
As observações do dr. Aurélio atinentes às questões de gênero são bastante taxativas no que concernem à incompreensão das mulheres em se tratando da compra de livros por bibliófilos. No seu dizer:
As mulheres só incomodam, acham que só se deve trabalhar e para que gastar tanto dinheiro em livro? Por isso que quando eles morrem, elas querem é se desfazer logo daquelas porcarias, que só acumula pó. Mandam para o lixo e as mais espertas vendem. As viúvas, esse são o negócio, a chave de tudo para comprar livros. Conheço um livreiro, que não vou dizer o nome, que até já se associou numa funerária para ter uma proximidade com as viúvas.”
Disse conhecer uma pessoa que precisa esconder os livros adquiridos dentro de panelas para não ser descoberto por sua mulher, mas que encontra nessa estratégia uma maneira de ir montando a respectiva biblioteca. Talvez essa aversão feminina à compulsão dos maridos bibliófilos se deva àquilo que Rouveyre (2003) entende como: “efeitos nocivos imputados aos livros”. Para ele, os livros
demandam a maior parte do nosso tempo livre e de nossa atenção, conduzem nossas idéias a assuntos que não dizem nada à utilidade pública, inspiram nosso desprazer pelas ações costumeiras e pelo cotidiano da vida civil, tornam-nos preguiçosos e impedem-nos de usar nosso talento inato e o nosso conhecimento, fornecendo-nos, a qualquer instante, os assuntos inventados por outros. (Rouveyre, 2003, p. 40).”
Citando outro grande bibliófilo, Ruben de Moraes: “Moraes (2005) relata a história de um amigo que morreu em decorrência da frustração de não poder adquirir mais livros em razão do medo que possuía de sua esposa. Quando ele faleceu, ela não hesitou em vender a biblioteca, amealhando uma pequena fortuna. Esses relatos e mesmo evidências podem ser capturados na convivência com os bibliófilos e justificam a existência de um ex-libris feito por Haroldo Ferreira, com a inscrição: “Viúvas, alegria do sebo”
“Viúvas, alegria do sebo”
Ex-libris de Haroldo Ferreira (2004)
Sobre livreiros e bibliófilos podemos ler: “O bibliófilo dr. Aurélio parece perceber diferenças entre os sebos. Para ele, no Beco encontra paz, ninguém o incomoda, os funcionários não o atrapalham, controlando ou oferecendo mercadorias, o atendimento é considerado excelente, rápido, destacando-se a gentileza e atenção da proprietária Neiva. Já a Livraria Nova Roma é qualificada pelo cliente como aquela que vende mais barato e que se constitui em ponto de encontro entre homens, um “clube de amigos”.
Sr. Lúcio foi dono de uma livraria, porém guardava muitos livros bons para si e vendia o restante, dessa prática resultou uma pequena biblioteca pessoal de bons livros e um acúmulo de dívidas a serem pagas. Enquanto procurava livros de Castañeda, referiu que: “dizem que o homem é o melhor amigo do homem, mas eu acho que é o livro”.
Rubens Borba de Moraes – O Bibliófilo Aprendiz (1ª edição)
(Colecção do autor)
Moraes (2005) chama a atenção para o fato de colecionador e livreiro serem coisas diferentes, e que quando se misturam raramente dão certo. Relatou o caso de um amigo bibliófilo que resolveu abrir uma livraria como forma de aumentar a biblioteca pessoal com um menor custo. Da mesma forma que o sr. Lúcio, o livreiro da narrativa de Moraes só disponibilizava aos clientes as obras que não lhe interessavam, os rebotalhos eram postos à venda sem sucesso, viuse então obrigado a vender a livraria antes de ir à falência. É bem possível que Moraes estivesse se referindo a Mindlin, uma vez que o primeiro deixou de herança para o segundo a sua biblioteca pessoal e o segundo ao relatar sua trajetória em livro conta que ao ser dono de uma livraria:
[…] comprei na Europa coisa de dois ou três mil volumes, de literatura geral, arte, e viagens, principalmente sobre o Brasil, com muitas edições importantes, e, quando chegavam os pacotes, Blum, eu e uma mocinha que trabalhava conosco […] sentíamos a maior alegria. Mas quando se vendia um bom livro, era uma tristeza…! porque nós não podíamos ficar com os livros – tínhamos a obrigação moral de vendê-los, dada a contribuição do terceiro sócio. (Mindlin, 1997, p. 123-124).
Mindlin acabou se desfazendo da livraria, optando por sua biblioteca, pois chegara à conclusão que a manutenção das duas seria inviável, daí a nossa inferência com relação à narrativa de Moraes.
NOUVEAUX CONTES A RIRE, ET AVENTURES PLAISANTES OU RECRÉATIONS FRANÇAISES. 20ª edição. Com gravuras em talhe-doce. Tomos I (e II).
Cologne, Roger Bontemps, 1722.
2 volumes petits in-8 (16 x 10.5 cm) de (8)-374-(12) et (4)-354-(12) pages.
(Colecção do autor)
Como conclusão os autores afirmam: “A imersão no universo dos bibliófilos nos revelou, ainda, a presença de características importantes relativas à prática de colecionar (Belk et al., 1988).O “vício” da raridade e o cuidado obsessivo com os livros aparecem como importantes categorias para os bibliófilos. Ademais, os livros sofrem uma espécie de sacralização quando são incorporados a uma coleção; incorporação essa que retira também o caráter utilitário do livro, tornando a prática de colecionar algo contido em si mesmo.
A busca pela “surpresa” e pela raridade nos diferentes sebos da cidade mostrou um tipo de comércio ao mesmo tempo transacional e relacional entre livreiros, vendedores esporádicos e bibliófilos. Transacional, quando se levam em conta as práticas oportunistas de compra e venda de livros, onde o objetivo é adquirir a obra pelo preço mais barato ou vendê-la pelo preço mais caro.
Nesse caso, o domínio da informação sobre o valor das obras é determinante para o (in)sucesso do vendedor ou do comprador. O caráter relacional se revela na fidelidade ao livro, mais especificamente, à categoria de produto “livros usados”, e aos sebos de uma maneira geral, capazes de serem os portadoresdos significados relevantes para os bibliófilos.
Alexandre José de Melo Morais (1816-1882) –
Corographia historica, chronographica, genealogica, nobiliaria, e politica do Imperio do Brasil.
Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1858-1863. 5 v.l.
Por fim, o colecionismo se revelou um comportamento situado no extremo de um contínuo, onde o consumo é não-racional e simbólico (em oposição ao racional e ao utilitário), desde o processo de tomada de decisão e compra até o uso (exibição) do produto. Como todo o comportamento extremo, a análise dos colecionadores pode nos auxiliar a visualizar mais claramente alguns processos de consumo na sociedade contemporânea, notadamente no que tange às propriedades simbólicas que os bens carregam consigo, e também na compreensão dos processos de apropriação e personalização dos bens quando da sua passagem do domínio da produção para o domínio do consumo. Nesse sentido, pesquisas futuras podem se beneficiar dos resultados aqui encontrados para proceder tais análises.”
Como qualquer outro tipo de estudo, que será sempre objecto de análises contraditórias, este tem alguns pontos que podem servir-nos de reflexão – ainda que possamos estar ou não de acordo com eles – mas penso que, no essencial, o retrato traçado engloba muito dos nossos traços.
Saudações bibliófilas.
Notas:
(1) Prof. Fabiano Cataldo de Azevedo – Bibliotecário formado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor de História do Livro e das Bibliotecas no curso de biblioteconomia da UNIRIO. Pesquisador e bolsista da Fundação Biblioteca Nacional. Membro do Pólo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras do Real Gabinete Português de Leitura. Trabalhou, como bolsista PCI, no Museu de Astronomia e Ciências Afins, onde integrou grupo de pesquisa sobre gestão de conservação em acervos bibliográficos. Participou como pesquisador em projectos e publicações, além de projectos relacionados à preservação e conservação documental e biblioteconomia de acervos raros. Possui experiência em análise e descrição de manuscritos e livros dos séculos XVI - XIX. Tem artigos publicados em periódicos da área de biblioteconomia.
Refira-se que no dia 19 de Fevereiro irá realizar uma conferência na Biblioteca Municipal de Cascais – SDR subordinada ao tema: “Paixão pelas Bibliotecas – O Real Gabinete Português de Leitura”.
(2) Livreiros-antiquários / alfarrabistas.
(3) Optou-se, nas citações, por manter a ortografia brasileira conforme o texto.
Rui.
ResponderEliminarEs un estudio muy interesante el que haces favor de compartir, muy revelador de la conducta del bibliófilo.
El exlibris de Haroldo Ferreira
¡Increible!
Saludos.
Interesantes reflexiones sobre los bibliófilos. En esta línea de análisis antropológico recomiendo, por los divertido y ameno de su contenido, la obra de Francis Mendoza, la pasión por los libros.
ResponderEliminarLa biblioteca de Mindlin es enviadable... la vida se ve, se siente y se disfruta de una manera bien diferente desde un lugar como ese.
¡¡Feliz Año Nuevo!!
Rui,
ResponderEliminarHoy he visto en internet la noticia de un estudio universitario en el que se demostraba que las camareras con pechos más grandes y escotes más generosos reciben mejores propinas que las otras...
Siempre es bueno reflexionar sobre nuestras aficiones pero este estudio que nos presentas me parece un poco como el que menciono. Los bibliófilos somos una sub-raza humana de la que, a pesar de todas nuestras diferencias, nos conocemos nuestras virtudes y nuestros defectos y todos, quien más y quien menos se siente identificado con lo que se cuenta en el interesante estudio. A pesar de ello, estoy de acuerdo con Diego en que el libro que menciona nos retrata desde dentro y con más conocimiento de causa aún que no sea antropólogo.
La bibliofília, a pesar de las diferencias entre nosotros (de aquí la diferencia de blogs bibliófilos!) tiene unos puntos en común que los foráneos sólo entienden un poco. A pesar de todo, siempre es bueno tener otras perspectivas.
Estimados amigos,
ResponderEliminarCom este texto sobre este estudo pretendi apenas dar a conhecer uma visão do bibliófilo “de fora do nosso mundo”.
Claro que este estudo é discutível – nem eu estou completamente de acordo com ele – mas encerra alguns detalhes em que somos bem retratados. Quis apenas, com ele lançar a discussão sobre o tema, e julgo ter conseguido…
Marco quanto ao ex-libris de Haroldo Ferreira, deixo-te duas histórias de que tive conhecimento recentemente junto dum amigo livreiro-antiquário:
Um bibliófilo tinha grandes problemas com a mulher quando comprava livros, pelo que para não a melindrar muito comprava só livros pequenos – in 8º. Quando faleceu a mulher chamou de imediato um livreiro para avaliar a biblioteca. Qual não foi o seu espanto ao conhecer o valor da referida biblioteca, pelo que não pode deixar de comentar: “Olha se eu o tivesse deixado comprar livros grandes!”
Ou esta outra: Havia um bibliófilo especializado em adquirir edições de “Os Lusíadas”, que adquiria habitualmente em leilões, por uma outra pessoa, pois nunca pôs os pés numa sala de leilões! Os livros eram-lhe entregues posteriormente na sua residência. Quando faleceu e se procedeu ao inventário da sua biblioteca, a maioria dos livros ainda estava dentro dos embrulhos – bastara-lhe o “prazer da caça!”
Mas isto são histórias de todos nós.
Com este estudo pretendi precisamente mostrar como analisam estas atitudes os que estão fora do nosso universo coleccionista.
Claro, caro amigo Diego – e deu-me grande prazer voltar a ler um dos teus bons comentários no meu blogue – o livro que referes é de leitura bem agradável, mas pertence ao nosso universo como muitos outros que todos nós conhecemos. E, já agora, quem não gostaria de estar sentado no lugar do José Mindlin naquele sofá a contemplar aquela majestosa biblioteca (em todos os aspectos)?
Amigo Galderich, o teu comentário, como sempre com a boa ironia que te caracteriza, resume integralmente aquilo que somos: “una sub-raza humana”, mas com grande espírito de união e de troca de impressões aberta sem que isso possa ofender qualquer um dos outros.
Eu diria mesmo que nos podemos considerar como uma “confraria” com uns rituais muito próprios, mas onde a amizade se sobrepõe acima das divergências que podemos ter quanto ao universo coleccionista – esta é uma das grandes riquezas da bibliofilia!
Um grande abraço para vós.
"o livro exerce sobre mim uma atração física. Não me satisfaz ver um livro numa vitrine, sem poder pegá-lo."
ResponderEliminarah! eu tenho esta "doença"! :D
obrigada pela partilha!
ResponderEliminarPoderia ser pior. Poderia dizer que temos rabo e chifre. Brincadeira à parte, o artigo interessante. Abraços
ResponderEliminaranita,
ResponderEliminarDe facto, para que servirá um livro atrás de uma vitrine?
O livro não é um bibelot nem uma peça fina de cristal ou porcelana delicada, para se resguardar, é um objecto que transmite uma experiência e conhecimentos – é para ser lido!
Para mim, é uma sensação sempre diferente quando abro um livro e o começo a ler … se me fascina (o que acontece invariavelmente, pois só leio aquilo que numa “primeira espreitadela” na livraria me despertou algum interesse) entro noutra dimensão e consigo transportar-me no tempo.
Sou um leitor inveterado assumido!
Bach,
ResponderEliminarQue não temos rabo nem chifre também estou de acordo, mas que exista quem nos considere uns “diabinhos” julgo que sim.
Para não falar dos que olham de soslaio para aqueles indivíduos que conseguem estar tanto tempo a folhear e a falar sobre um livro e, ainda por cima tão velho e escrito, por vezes, em caracteres tão estranhos. Coitados são mesmo uns “tontinhos”!
Passe a brincadeira, nunca me diverti tanto com um dos textos que publiquei no blogue.
O meu obrigado a todos.
Um abraço para ti.