Camilo Pessanha
Entre aqueles que viram em Camilo Pessanha um poeta notável, contam-se nomes como Fernando Pessoa e Luís de Montalvor, a quem este poeta misterioso deixa um grupo de poemas para se publicarem na revista Centauro, periódico de vanguarda vindo a lume, em número único, no ano de 1916. (1)
Neste poema, vêem-se, perdidos, um país (Portugal) e o poeta (Camilo Pessanha) que canta a decaída da pátria.
Revista "Centauro" (2)
Com efeitos, foi na revista «Centauro» dirigida por Luís de Montalvor e da qual apenas saiu um único número em Outubro de 1916 que apareceu o primeiro conjunto de poemas de Camilo Pessanha impresso.
A revista abre com a "Tentativa de um ensaio sobre a Decadência", onde Luiz de Montalvor apela para uma recuperação do simbolismo, cuja breve explicação baseia numa teoria dos símbolos, bebida em Maeterlinck, movimento literário enaltecido por conter uma "teoria de libertação", "um fundo espiritual poético e misterioso", mais adiante identificado como "flôr da arte decadente": ser-se decandente "É ser-se, enfim, andrógino e equívoco de qualquer maneira. É ser-se, enfim, todos, sem ser o que todos são, [...] Só são decadentes os que receberam o mandato de Deus e da Beleza [...]".
Luis Montalvor
É neste contexto que é feita a publicação dos poemas inéditos de Camilo Pessanha (posteriormente recolhidos em Clepsidra, 1920), como expressão mais pura do simbolismo português. Nela colaborarão Alberto Osório de Castro (Quatro Sonetos), Fernando Pessoa (Passos da Cruz, 14 sonetos), Raul Leal (A Aventura de um Satyro ou a Morte de Adonis, conto), Júlio de Vilhena (Ultima Nau) e Silva Tavares (Poemas da Alma Doente).
Luís Felipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos, conhecido por Luis de Montalvor, nasceu em Cabo Verde a 31 de janeiro1891 e faleceu em Lisboa a 2 de março de 1947. Foi um poeta modernista; um dos fundadores da revista "Orpheu" (1915); cria a revista "Centauro" (1916) e a editorial "Àtica", em 1930, revelando-se um inovador nas artes de impressão, pois rapidamente esta editora se impôs no panorama nacional pelo aspecto gráfico das suas edições e pela criteriosa selecção dos seus títulos.
Em 1942 iniciou a publicação das Obras Completas de Fernando Pessoa.
Edições Atica
Como já aqui se disse, «Clepsydra» abre com “Inscrição” :Eu vi a luz de um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
Neste poema, vêem-se, perdidos, um país (Portugal) e o poeta (Camilo Pessanha) que canta a decaída da pátria.
Talvez nunca um movimento literário – o simbolismo – se tenha adequado com tanta precisão ao estado de espírito de um indivíduo e ao plano do contexto em que este se inseria. Portugal, na passagem do século XIX ao XX, ainda não se recuperara dos efeitos nocivos do Ultimatum inglês.
A imersão do povo português num pessimismo reflectiu-se, certamente, na literatura, e estes versos de Camilo Pessanha são uma ilustração perfeita desse estado da “alma lusa”
Este outro soneto (3) que publico, mostra um dos traços mais caros à lírica de Pessanha: a riqueza de imagens. Num turbilhão que parece ser o resultado de alucinações - decorrentes do ópio? -, vêem-se figuras que, uma vez unidas, criam um panorama ao mesmo tempo raro e aliciante. Ansiar por tudo, mas muito pouco conquistar; tudo querer e, no entanto, só insucessos alcançar. Projectado na voz enunciadora do soneto, Camilo Pessanha parece mesmo expor o seu drama pessoal de uma forma pouco convencional.
Este, talvez o factor que mais seduziu os seus contemporâneos e as gerações posteriores.
Uma precisão despida de compostura é a forma encontrada, pelo poeta, para se expressar ... e nessa arte foi “mestre”.
... leões alados
Tatuagens complicadas do meu peito:
Troféus, emblemas, dois leões alados...
Mais, entre corações engrinaldados,
Um enorme, soberbo, amor-perfeito...
E o meu brasão... Tem de oiro, num quartel
Vermelho, um lis; tem no outro uma donzela,
Em campo azul, de prata o corpo, aquela
Que é no meu braço como que um broquel.
Timbre: rompante, a megalomania...
Divisa: um ai, - que insiste noite e dia
Lembrando ruínas, sepulturas rasas...
Entre castelos serpes batalhantes,
E águias de negro, desfraldando as asas,
Que realça de oiro um colar de besantes!
É na China que Camilo Pessanha passará os seus últimos dias. A sua farta barba está cada vez maior e desgrenhada; a sua magreza, cada vez mais mórbida; o seu vício pelo ópio, cada vez mais forte. Os seus últimos anos são marcados pela obscuridade e pela decadência moral. Ainda que, aparentemente, querido pelos nativos, o seu círculo de amizades é muito reduzido. A frequência a prostíbulos não cessa e o organismo de Pessanha, minado pela tuberculose, não pode ser senão vencido. Em 1 de março de 1926, vem a falecer.
Camilo Pessanha com João Pereira Vasco em Macau
Assim como os poemas compostos pelo autor, também a vida de Camilo Pessanha se mostra intrigante. Não se sabe se pela distância da metrópole, não se sabe se pela personalidade enigmática do poeta, a verdade é que, em torno dele, criou-se uma mitologia pessoal que amplifica e distorce os factos. Dele diz-se que, no período final da vida, não raro recebia despido os conhecidos. Afirma-se, também, que vagava pelas ruas de Macau tal qual um mendigo, com a roupa rota e vários traços de sujidade.
Mas a “história” mais notória acerca de Pessanha, no entanto, é a de que nunca pusera um verso lírico no papel.
A sua própria editora, Ana de Castro Osório, chegou a afirmar em entrevista: "Camilo Pessanha nunca escreveu um só dos seus versos. Compõe-nos nas suas horas de inspiração, e guarda-os na memória."
No entanto, hoje sabe-se que isto não corresponde à verdade. Ainda que pudesse não manter muitos dos originais que compunha, o grande número de variantes que se encontram dos poemas resulta, provavelmente, desse facto, mas Pessanha escrevia os seus textos. Os manuscritos que se encontraram e as folhas avulsas que por Lisboa circulavam são prova disso.
«Camões» Textos de Camilo Pessanha
e Wenceslao de Moraes
Além de se destacar como poeta criador, tem-se, também, um Pessanha que se deslumbra diante das simultâneas opulência e singeleza da cultura oriental. Inspirado por uma tal simpatia, compôs textos esparsos (estudos sobre artes plásticas e poesia, bem como traduções) que viriam, postumamente, a ser reunidos num volume: «Leituras Chinesas – Kuok Man Kau Fo Shü». Mas é, de fato, a sua poesia que desperta o interesse da crítica e da historiografia literárias.
Desde o primeiro momento, pode dizer-se, os seus textos poéticos foram o foco de uma quantidade considerável de estudos críticos (geralmente, sob o tema da brevidade). Equívoco justificável. Pelas inovações que propõe, a lírica do poeta foge aos padrões convencionais da produção portuguesa até então. Espelhos de angústias, os seus poemas reflectem o hermetismo das imagens e mesmo da estrutura embaça e amplifica o universo que se apresenta - muito próximo do onírico, podemos mesmo dizer. A evasão simbolista (a ansiar um lugar indefinível) encontra eco na proposta estética do poeta, ele próprio a perseguir um mundo pouco palpável.
Aqui fica mais uma “porta entreaberta” para a visão deste poeta, hoje ilustrado com alguns dos seus versos, que tem muitas outras, por onde se pode entrar, para se fazer vários estudos sobre si.
Saudações bibliófilas.
(1) Outros projectos tinha, mas como sempre, as ideias cruzam-se ao sabor da minha imaginação e, como tal, parece-me que este artigo tão envolto em simbolismo será uma boa forma de comemorar o primeiro aniversário do blog já a 28 deste mês...espero que gostem, tanto ou mais do que eu.
(2) Montalvor, Luís de, pseud., dir.; Centauro, ed. com. Ed. facsimilada A. 1, n. 1 (Out./Dez. 1916) Lisboa : Contexto, 1982. 25 cm Facsimile da edição de Lisboa : Lemos de Napoles, 1916
(3) Publicado pela primeira vez na revista Centauro, sob o título "Tatuagens" .
Es curioso como los literatos a veces provocan que en su alrededor se forme un halo de misterio y de mitología que los refuerze.
ResponderEliminarMe gustó esto que nunca escribió un poema porque los memorizaba... y otras anécdotas que nos retratan un poeta bohemio en el sentido más literal del término.
¿Una vida poética tópica a pesar de él?