quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Questão Coimbrã



Nos primeiros anos do terceiro quartel do séc. XIX, após a longa crise da implantação do liberalismo em Portugal e sua adaptação à estrutura histórica do país, o Romantismo português propriamente dito já tinha dado quanto dele se podia esperar.



Almeida Garrett


Depois da morte de Almeida Garrett – vulto impar deste período com intensa actividade política e literária, renovador do teatro em Portugal – , a insurgência inerente ao movimento romântico personificara-se em Alexandre Herculano, cuja obra foi, fundamentalmente, «a primeira tentativa de uma história crítica de Portugal». Mas a rebeldia por ele representada desapareceu com a sua retirada para Vale de Lobos. Restava António Feliciano de Castilho, em redor do qual se agruparam em Lisboa as hostes ultra-românticas. Castilho, porém, era exactamente o contrário dum rebelde. Grande purista, mestre do idioma, dotado de escassa imaginação criadora, nunca fora realmente romântico, embora seja em regra mencionado como terceiro mentor do movimento. Formado na dissolução do neoclassicismo arcádico, que nunca abandonou, encarnava uma peculiar adaptação das formas externas do Romantismo a um espírito pseudo-clássico. Fórmula esta que chegara nessa altura a entronizar-se como gosto oficial do constitucionalismo. Era ele, pois, o obstáculo com que havia de tropeçar a nova rebeldia da geração intelectual que por volta de 1865 se organizava em Coimbra. Esta geração já desde 1861 dava provas do seu pendor para a rebeldia à disciplina universitária com ruídos, tumultos, irreverências e revoltas – que indicavam claramente a inconformidade da juventude académica com os valores oficiais da sociedade em que vivia.



Alexandre Herculano


A chamada «Questão de Coimbra» ou do «Bom senso e Bom gosto» foi a primeira manifestação importante dessa mocidade, conhecida hoje nos manuais pelos nomes de «Geração», «Escola» ou «Dissidência de Coimbra» e também «Geração de 70», e que, com a adição de novos elementos afins, havia de realizar novas demonstrações dos seus intuitos reformistas da vida pública nacional, reagindo contra a degenerescência romântica e o atraso cultural do país.

Com esta polémica famosa, que foi uma das mais importantes polémicas literárias portuguesas e a maior em todo o século XIX, como explica Margarida Vieira Mendes, "alastrou de forma explosiva, de Novembro de 1865 a Julho do ano seguinte, em cartas, crónicas e artigos de imprensa, opúsculos, folhetins, poesias e textos satíricos, alusões em conferências (...) ou mesmo discursos parlamentares" (in Dicionário do Romantismo Literário Português, Editorial Caminho, 1997) podemos dizer que se inicia o espírito contemporâneo nas letras portuguesas.



António Feliciano de Castilho


Castilho tornara-se um padrinho oficial dos escritores mais novos, tais como Ernesto Biester, Tomás Ribeiro ou Manuel Joaquim Pinheiro Chagas. Dispunha de influência e relações que lhe permitiam facilitar a vida literária a muitos estreantes, serviço que estes lhe pagavam em elogios.

Em redor de Castilho formara-se assim um grupo em que o academismo e o formalismo vazio das produções literárias correspondia à hipocrisia das relações humanas, e em que todo o realismo desaparecia, grupo que Antero de Quental chamaria de «escola de elogio mútuo».



Manuel Joaquim Pinheiro Chagas


O motivo da «Questão» foi aparentemente trivial. Nesse ano de 1865, Manuel Joaquim Pinheiro Chagas, um dos jovens corifeus da roda lisboeta do cego patriarca literário, publicara o «Poema da Mocidade», ingénua biografia lírica em quatro cantos, típica do saudosismo ultra-romântico.
Solicitado a apadrinhar com um posfácio esta obra, Castilho aproveitou a ocasião para, sob a forma de uma Carta ao Editor António Maria Pereira, censurar um grupo de jovens de Coimbra.
Na Carta, entre grandes elogios, indigitava o jovem poeta para uma cadeira de Literatura no Curso Superior de Letras, introduziu incidentalmente referências ironicamente adversas a Antero e a Teófilo, aludindo aos «altos» rumos metafísicos da poesia dos dois «mancebos».
Atacava a moderna escola de Coimbra e a sua poesia ininteligível, ridicularizando o aparato filosófico e os novos modelos literários de que ela se nutria ("temporal desfeito de obras, de encómios, de sátiras, de plásticas, de estéticas, de filosofias e de transcendências"), numa referência às teorias filosóficas e poéticas expostas nos prefácios a «Visão dos Tempos» e «Tempestades Sonoras» (ambas de 1864), de Teófilo Braga, e na nota posfacial das «Odes Modernas», de Antero de Quental (de Julho de 1865)



Antero de Quental
Fotografia, A. desconhecido, ca. 1864


Sentindo-se visado, Antero de Quental respondeu com o panfleto «Bom-senso e bom-gosto carta ao excelentissimo senhor Antonio Feliciano de Castilho » (1), em que definiu "a bela, a imensa missão do escritor" como "um sacerdócio, um ofício público e religioso de guarda incorruptível das ideias, dos sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras", que exige, por um lado, uma alta posição ética, por outro lado, uma total independência de pensamento e de carácter. Como consequência, e numa clara alusão a Castilho, Antero repudiava a poesia que cultiva a "palavra" em vez da "ideia"; a poesia decorativa dos "enfeitadores das ninharias luzidias"; a poesia conservadora dos que "preferem imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir"; em suma, a poesia que "soa bem, mas não ensina nem eleva". Estavam marcadas as posições: de um lado os intelectuais conservadores; do outro a nova geração, aberta às recentes correntes europeias.

Seguiu-se “Bom-senso e bom-gosto Folhetim a proposito da carta que o senhor Anthero do Quental dirigiu ao senhor Antonio Feliciano de Castilho “ de Pinheiro Chagas, que acorreu em defesa de Castilho.



Teófilo Braga


Ao mesmo tempo, Teófilo Braga solidarizava-se com Antero no folheto “As theocracias litterarias Relance sobre o estado actual da litteratura portugueza”, no qual afirmava que Castilho devia a celebridade à circunstância de ser cego. Neste folheto, Teófilo Braga escreve: “Sobre tudo uma das primeiras condições da arte é a verdade; e a verdade nunca se encontra aonde não ha caracter. A arte sem a verdade dá as ampliações rhetoricas, insuffladas de synongmos, a que entre nós se chama estylo classico, á Frei Luiz de Sousa, em que se relê depois de lêr, e se torna a lêr, em que se voltam de mil maneiras as formas arredondadas, em que não ha um pensamento, e em que prima o sr. Castilho. E esta sua prosa é muito portugueza na dicção; portugueza de dois séculos atraz, quinhentista pela fórma intertelada e urbana, seiscentista pelo requinte, e sobre tudo dissonante para quem conhece a verdadeira eurythmia da lingua, pela mistura insólita e desnatural da gravidade academica com as locuções desenfadadas e legitimas do nosso povo.”



Teófilo Braga
Caricatura (2)


Pouco depois Antero desenvolvia as ideias já expostas na Carta a Castilho no folheto «A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais». Neste texto, Antero repudiava uma vez mais "as literaturas oficiais, governamentais, subsidiadas, pensionadas, rendosas, para quem o pensamento é um ínfimo meio e não um fim grande e exclusivo" e preconizava uma literatura que "se dirige ao coração, à inteligência, à imaginação e até aos sentidos, toma o homem por todos os lados; toca por isso em todos os interesses, todas as ideias, todos os sentimentos; influi no indivíduo como na sociedade, na família como na praça pública; dispõe os espíritos; determina certas correntes de opinião; combate ou abre caminho a certas tendências; e não é muito dizer que é ela quem prepara o berço onde se há-de receber esse misterioso filho do tempo - o futuro".

Seguiram-se intervenções de uma parte e de outra, em que o problema levantado por Antero ficou esquecido. Provocou grande celeuma o tom irreverente com que Antero se dirigiu aos cabelos brancos do velho escritor, e a referência de Teófilo à cegueira dele



Ramalho Ortigão


Foi isto o que mais impressionou Ramalho Ortigão, que num opúsculo intitulado «A Literatura de Hoje» (1866) censurava aos rapazes as suas inconveniências, ao mesmo tempo que afirmava não saber o que realmente estava em discussão.
Este opúsculo deu lugar a um duelo de espadas do autor com Antero de Quental, a quem apodou de cobarde por ter insultado o velho António Feliciano de Castilho. Ramalho ficou fisicamente ferido no duelo travado, em 6 de Fevereiro de 1866, no Jardim de Arca d'Água.
Note-se, porém, que neste folheto Ramalho marcou uma atitude de independência, criticando também a fuga de Castilho à luta das ideias.



Camilo Castelo Branco


Outro combatente das hostes de Castilho foi Camilo Castelo Branco, que, em «Vaidades irritadas e irritantes» (1866 ), com o seu temível sarcasmo polémico, veio atacar a nova geração, – que lhe haveria de dar motivo para ulteriores refregas — não suscitou reacções.

Na realidade nada foi acrescentado aos dois folhetos de Antero durante os longos meses que a polémica durou ainda. Eça de Queiroz, em «O crime do padre Amaro», de forma implícita, toma parte pelos jovens literários.



Eça de Queirós


Os artigos, folhetins e opúsculos em apoio de uma e de outra parte multiplicaram-se, até que, a partir de Março de 1866, a polémica começou a declinar em quantidade e qualidade.

No entanto, a rotura provocada pela Questão Coimbrã iria abalar irreversivelmente as estruturas socioculturais do país, ao lançar as sementes para um debate de ideias e um projecto de reforma das mentalidades que norteariam a intervenção da que viria a ser a “Geração de 70”. Este grupo que se sublevou contra Castilho era o mesmo que, acrescido de personalidades com tendências paralelas, havia de tratar, em 1871, nas «Conferências Democráticas do Casino», de colocar Portugal a par da actualidade europeia, ligando-o «com o movimento moderno», estudando «as condições de transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa».

Esta polémica foi a mais importante da nossa história literária, pois nela participaram, numa ou noutra das frentes, praticamente toda a intelectualidade da época e fez emergir uma geração nova, protagonista de uma revolução cultural e literária cuja amplitude ultrapassaria até a do próprio Romantismo. Hoje, já com a perspectiva que dada pela distância histórica, essa geração surgida à vida pública na famosa «Questão» avulta como uma das mais brilhantes constelações que a cultura portuguesa produziu em qualquer época. O carácter regenerador e de revisão de valores, o entusiasmo colocado na reforma do estilo da vida e da literatura do país, o europeísmo cultural, a preocupação com as raízes históricas da decadência, fazem dela um antecedente da grande geração espanhola «de 98», que lhe é devedora em muitos aspectos fundamentais – influência esta que justificaria um estudo.



Antero de Quental


Em jeito de conclusão, leia-se o que Antero de Quental escreveu na sua «Carta a W Storck»: «Quando o fumo [da Questão] se dissipou, o que se viu mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 ou 20 rapazes, que não queriam saber nem da Academia nem dos Académicos, que já não eram católicos nem monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica, filologia, etc.; que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e pela irreverência, mas que, inquestionavelmente, tinham talento e estavam de boa fé, e que, em suma, havia a esperar deles alguma coisa, quando assentassem. Os factos confirmaram esta impressão; os dez ou doze primeiros nomes da literatura de hoje saíram (salvo dois ou três) da Escola Coimbrã, ou da influência dela»


Saudações bibliófilas.


Bibliografia:

A bibliografia desta «batalha» literária, em que intervieram as figuras mais destacadas das letras nacionais, está recolhida, veja-se: Inocêncio – «Dicionário Bibliográfico Português», VIII, 404-408; Teófilo Braga – «Modernas Ideias na Literatura Portuguesa», II, pp. 179-184; «Catálogo da Biblioteca de F. Palha», pp. 166-171; J. de Araújo – «Antero de Quental - In Memoriam», Apêndice, pp. X-XV).


(1) Ficam aqui algumas versões em eBook do «Project Gutenberg – Online Book Catalog» para uma melhor compreensão dos factos.
Quero enaltecer o esforço e a grandiosidade deste projecto e apelar ao contributo de todos para o seu êxito.

(2) Teófilo Braga é activo na política portuguesa desde 1878, ano em que concorre a deputado pelos republicanos federalistas. Exerce vários cargos de destaque nas estruturas do Partido Republicano Português. Em 1 de Janeiro de 1910 torna-se membro efectivo do directório político, conjuntamente com Basílio Teles, Eusébio Leão, José Cupertino Ribeiro e José Relvas. A 28 de Agosto de 1910 é eleito deputado por Lisboa, e em Outubro do mesmo ano torna-se presidente do Governo Provisório. A 29 de Maio de 1915, foi eleito pelo Congresso, com 98 votos a favor, contra um voto de Duarte Leite Pereira da Silva e três votos em branco. Presidente de transição, face à demissão de Manuel de Arriaga, cumprirá o mandato até ao dia 5 de Outubro do mesmo ano, sendo substituído por Bernardino Machado.

4 comentários:

  1. Cada día me gusta más el s. XIX y sus disputas tanto literarias como políticas... Y sobretodo ver como se tomaban a pecho estas dispustas, hasta llegar a un duelo.
    A pesar de todo, me quedo con la «escola de elogio mútuo»!
    Tendremos que aplicar este término a algunos movimientos literarios y culturales que conozco...

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  2. Rui.

    No deja de asombrarme el enorme paralelismo que existió entre nuestros países en muchos de los acontecimientos del siglo XIX.
    Tu artículo nos recuerda el poder y la influencia que tenían los hombres de letras.

    Saludos.

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  3. Estimados amigos

    Se o silêncio é óptimo para uma boa reflexão, sem uma crítica pertinente ou sem uma boa troca de pareceres não se pode confirmar essa mesma opinião!

    Vem isto a propósito, de eu , com esta “estória” da polémica literária portuguesa mais famosa, ter aproveitado para fazer desfilar a maioria dos vultos mais marcantes da literatura portuguesa do séc. XIX, interligá-la com o artigo das “Conferências Democráticas do Casino”, apresentar alguns dos textos básicos desta mesma polémica, preparar o terreno para apresentar um dos cortes, que a estas mesmas ideias, vai ser feito ao fim de pouco tempo.

    Embora seja ao sabor do impulso da imaginação (tenho três artigos idealizados, mas com este nem sonhava!) tentei delinear uma trajectória para uma compreensão destes personagens-escritores e permitir a divulgação da sua obra no contexto destas posições e polémicas. Mostrar que temos bons escritores e, que para além disso, foram homens, políticos e, mesmo, soldados que souberam e quiseram lutar pelas suas ideias.
    E, pouco a pouco, vão passando por aqui escritores e alguns livros.
    Nesta fase interessa-me mais a luta das ideias do que o seu resultado – os livros.
    No entanto, estou certo que qualquer bibliófilo, mesmo não sendo um grande apaixonado por este século, desdenharia ter obras destes autores na sua biblioteca.
    Chegará a altura de render a minha homenagem a esses ”objectos” preciosos, melhor ou pior “vestidos” (ou seja brochados ou com encadernações de luxo) tão queridos do bibliófilo.

    Quem, com gosto pela leitura, não “ficará com um bichinho” para dar uma “espreitadela” por uma obra dalgum destes “barbudos” ou “bigodaças”?
    Se tiver conseguido despertar esse interesse consegui o meu objectivo, senão... não fui “suficientemente artista”, pelo que terei de tentar de novo!

    Saudações bibliófilas

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  4. Certamente, caríssimo.
    Tens razão, como sempre, Também não gosto de exageros.
    Não chego a ser um “velho do restelo”, mas também encaro a modernidade com certo cuidado, sou partidário do meio termo, do equilíbrio. Nem tudo com rótulo
    de modernidade é aceitável. Principalmente nesse universo do livro que segundo alguns pode
    até desaparecer ante a mídia eletrônica, discurso em que não acredito muito.
    Certa vez um encadernador brasileiro, partidário da total modernidade, uma espécie de clone do Marinete, fez a seguinte comparação: Imagine que alguns cientistas, por meios tecnológicos, conseguiram trazer de volta à vida um nobre do século XVII que acharam Congelado no pólo norte e após lhe reestabelecer a saúde, chegam para o conde e lhe diz em tom exortativo;
    _ Senhor Conde, o senhor já está liberado para viver o resto de sua vida, e aqui estão suas roupa
    Que remendamos e limpamos. Pode vesti-las, o senhor só poderá usar essas roupas e nenhuma outra, pois do contrário seria descaracterizado como nobre do século XVII. (fim da estória).
    Após ressaltar o absurdo do desfecho chamou a atenção dos ouvintes para a semelhança deste, Com o que se faz com restauração de livros.
    Confesso que achei essa comparação muito sarcástica.
    Imagine aplicar essa idéia na restauração de um Botticelli o um Picasso? (como citaste),
    Obras únicas!
    Como desrespeitar a incolumidade de um livro encadernado que atravessou séculos
    Intocado e de repente um “deus” simplesmente ignora isso e altera pra sempre a obra?
    Um escritor brasileiro mencionou que a encadernação é a vestimenta do livro. Um livro em brochura é um livro de pijama ou em hobby de chambre, ou seja, a única coisa no livro que não é definitiva é a encadernação. Certo, mas e quando a encadernação é original? como as de editor? Ou Quando é assinada por um expert? Ou ainda, quando é o retrato de uma época ou de um estilo, (como as imperiais, por exemplo)?
    Outro aspecto que também não faz o menor sentido é encadernação de época cheia de florões e vinhetas de séculos passados em um livro lançado ontem ou vice versa.
    Como disse anteriormente, acho que não há limites para a arte, contudo essa deve ser regida pelo bom senso e pela ética, atitudes Imprescindíveis em um encadernador.

    Grande abraço.

    Marco Pedrosa.

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