segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Livros muçulmanos em Portugal


No decurso das minhas anteriores divagações bibliófilas e fruto das minhas modestas pesquisas bibliográficas, referi, dum modo sumário, a história das primeiras impressões e seus impressores em Portugal.
Foi aflorada a questão da inexistência de livros impressos em árabe, quando a sua influência na nossa cultura é bem marcante.

Escola muçulmana

E cito Nuno Crato que diz: «Devemos à civilização islâmica a preservação dos escritos clássicos e a sua transmissão posterior ao Ocidente renascentista. Mas não só. Conhecem-se ainda mal as possíveis fontes de origem islâmica de Francisco Maurolico, Pedro Nunes, Nicolau Copérnico e de outros homens da ciência europeia. Mas as contribuições da ciência árabe no campo das matemáticas, das ciências náuticas e da astronomia deixaram marcas indeléveis. Basta pronunciar a palavra “álgebra”, por exemplo». (1)

Com efeito, só se conhecem livros impressos em árabe a partir do século XVI, de que desconheço a existência de qualquer impressor no nosso país.
No entanto, existe uma vasta produção de manuscritos árabes, escritos a partir do século IX, que certamente circularam no período referido.

O segundo califa de Abbasid, no período de 754 a 775 foi Abu Ja'far Abdallah ibn Muhammad al-Mansur (712 – 775), ou simplesmente Al-Mansur.
No ano 773, Al-Mansur recebeu um hindu erudito, um astrónomo chamado Mankha, que era capaz de falar sobre os céus como se fosse a reminiscência de uma viagem pessoal. Impressionado com os seus conhecimentos, Al-Mansur notou que o mundo islâmico poderia estar a ser muito prejudicado por desprezar o conhecimento acumulado pelas outras civilizações. Quando o astrónomo indiano Mankah presenteou Al-Mansur com uma cópia do «Siddhanta», revelando ao califa a fonte de seu grande conhecimento, Al-Mansur ordenou que os astrónomos persas começassem imediatamente a traduzir este importante texto científico.
Foi o ponto de partida para a tradução dos textos gregos ao saberem que estes eram a origem de grande parte do conhecimento incorporado ao «Siddhanta».

Entre os textos adquiridos no início do século IX pelos árabes estava o «Mathematike syntaxeos biblia ιγ» de Ptolomeu, o maior texto astronómico até então escrito. Os árabes mais tarde deram-lhe um novo nome, «Almagest». A data da sua primeira tradução para o árabe foi, provavelmente, o ano 827.

«Almagest»

De posse do «Almagest», traduzido para a sua língua, os árabes tinham os fundamentos básicos a partir do quais poderiam iniciar a sua própria investigação na ciência astronómica. Com o seu estudo, os filósofos árabes manifestaram um espírito crítico perante a ciência grega. Para eles Ptolomeu não devia ser aceito cegamente.
Foi o grande matemático e astrónomo Al-Kwarizmi (780-850) que recebeu o encargo de verificar e, possivelmente, actualizar o trabalho escrito por Ptolomeu.

Dos seus autores destaco Ibn al-Haytham.


Ibn al-Haytham

Abu Ali al-Hasan ibn al-Hasan ibn al-Haytham (965-1039), conhecido também como al-Basri ou pelo nome latinizado de Alhacen, foi um dos grandes nomes da ciência islâmica. Escreveu mais de 200 trabalhos sobre vários assuntos dos quais 50 sobreviveram (23 são sobre Astronomia).

O trabalho mais importante de al-Haytham foi sobre Optica. O seu livro «Kitab al-Manazir» (Livro de Óptica), escrito entre 1011 e 1021, é considerado como um dos mais importantes tratados de Física escritos até hoje por iniciar uma revolução nesta ciência. Neste livro al-Haytham provou que as propostas de Euclides, Ptolomeu e Aristóteles estavam erradas e desenvolveu a teoria que explica o processo da visão por meio de raios de luz que atingem o olho provenientes de cada ponto de um determinado objecto.

Entre os anos 1025 e 1028 Ibn al-Haytham escreveu o livro «Al-Shukuk 'ala Batlamyus», traduzido como «Dúvidas relativas a Ptolomeu». Nele Ibn al-Haytham criticava muitos dos trabalhos de Ptolomeu, incluindo o «Almagest» e seu livro «Optica». Segundo al-Haytham alguns dos artifícios matemáticos introduzidos por Ptolomeu na sua descrição do universo, em particular o equante, não satisfaziam as exigências de um movimento circular uniforme. Em seguida Ibn al-Haytham propôs o primeiro modelo não-ptolomaico rejeitando os equantes e ecentricos postulados por Ptolomeu, mas continuou a aceitar o seu modelo geocêntrico.

Durante a Idade Média, os livros de al-Haytham sobre Cosmologia foram traduzidos para o latim, hebreu e várias outras línguas. Muitos historiadores consideram-no o maior cientista de toda a Idade Média e que os seus trabalhos permaneceram insuperados por aproximadamente 600 anos até a época de Johannes Kepler.

Espero não os ter maçado muito com estas minhas divagações, mas penso ter sido importante fazer este parêntesis nos meus artigos para se formar uma ideia mais completa da produção literária e das suas raízes.

Saudações bibliófilas

(1) Para leitura e consulta deixo, na integra, a versão pdf do texto de Nuno Crato:

3 comentários:

  1. RUI.
    Muy interesante el hecho que nos presentas, sobre la falta de impresos portugueses (XV) en árabe, sobre todo cuando lo comparamos con la información de tus anteriores entradas. ¿Cual será la razón? ¿ tendrá que ver con la naturaleza y simbolismo de la caligrafía? planteas una cuestión que da para muchas reflexiones.
    Por otro lado, es muy cierto que hablar de historia de la ciencia sin mencionar a los árabes resulta imposible.
    Saludos.

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  2. Rui,
    Para el estudio del libro musulmán es imprescindible el catálogo de la Bibliteca Nacional de Francia: L'art du livre arabe.
    Aquí nos cuenta toda la historia de las publicaciones y como a pesar de diversos intentos desde el s. XVI en occidente o en oriente pero impresos cristianos en lengua árabe no fue hasta el s. XVIII que se inició en los paises musulmanes la impresión de libros musulmanes. Así, fue en el s. XIX donde las ediciones impresas se multiplicaron por Oriente porque hasta ese momento el manuscrito era lo que se valoró.

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  3. No meu artigo pretendi apenas lançar a questão da inexistência de livros impressos em árabe, quando é conhecida a importância que os seus escritos tiveram no desenvolvimento dos vários ramos das ciências.

    É bem sabido que não existem na Península livros impressos em árabe...nem seria de esperar outra coisa!
    Se os muçulmanos (ou mouros) como lhes queiramos chamar, foram expulsos da mesma e se os seus escritos eram duplamente heréticos: escritos por “infiéis” e transportando perspectivas científicas contrárias aos dogmas da Santa Madre Igreja, os seus escritos nunca poderiam passar pelas malhas da Censura da Inquisição.
    Por outro lado sempre tiveram, por questões religiosas, relutância em fazer imprimir os seus manuscritos.

    Deixo aqui mais um pequeno detalhe retirado do «Catálogo» da «MOSTRA BIBLIOGRÁFICA – Encontro do Português com as Línguas não Europeias: textos interlinguísticos» evento que decorreu na Biblioteca Nacional de Portugal de 2 de Junho a 12 de Setembro de 2008:
    “O convívio com o árabe iniciou-se com a invasão e ocupação muçulmana da Península Ibérica (711); prosseguiu na campanha do norte de África (sécs. XV e XVI); e prolongou-se na memória lexical portuguesa, numa herança moçárabe muito abrangente. Encontra-se na toponímia e num vocabulário abundante; nomeia vários objectos e factos da vida quotidiana, da actividade artesanal, da agricultura, da administração pública, do comércio e da organização militar. O primeiro roteiro impresso conhecido deste vocabulário, de origem árabe, é o de Frei João de Souza, «Vestígios da Língua Arábica em Portugal» (1789)”.

    No entanto, os seus manuscritos de uma excelente qualidade gráfica, como já referi, são um marco da sua civilização e que coexistiram com os nossos livros impressos, razão deste meu parêntesis na divulgação dos impressores portugueses.

    A informação de Galderich, pela sua oportunidade e importância, merece o meu (e o nosso) agradecimento.

    Seria excelente que outros trouxessem mais informações...a “Tertúlia” é mesmo para isso!

    Saudações bibliófilas

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